A Garganta da Serpente
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Tuquinha e a Salamanca do Jarau

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

(baseado em: A Salamanca do Jarau, de J. Simões Lopes Neto)

O gaúcho escapulira lindaço da tal de Boitatá. Bem que a bruta tentara, ao fim da entrevista, assim como o personagem central da escritora Anne Rice, abocanhar o entrevistador para, ao invés de sugar-lhe o fluido do corpo, como faria aquele, os olhos, que lhe eram mais do feitio e gosto. Mas o gaudério fora esperto e, na hora agá, contara com o laço que deixara enrodilhado, à feição, com a armada grande como mandava o livro de Lendas do Sul, que havia sido escrito pelo Simões Lopes Neto, e que ele, leitor ávido, transformara em manual indispensável e lera e relera tantas e tantas vezes que sabia de cor e salteado. Pois bueno, o vivente era oferecido como china de puteiro e não contente ainda com as aventuras porque passara nas últimas noites, queria mais. E teve. Foi assim:

A china velha andava a rebolquer-se para apartar-se do abraço do chirú que nunca se abombava e então, meio por birra, meio por despeito, deu de ir-se aos pelegos na varanda, emburrado, para dormir solito porque era melhor do que mal acompanhado. Mal acompanhado não era o termo certo. Acompanhado por mulher na qual as vontades se haviam arrefecido e não lhe nutria mais o mesmo querer de antanho, isso sim, verdade seja dita.

Mas nem tudo era perda. Tinha as suas vantagens. Dentre elas, a de poder traquear folgado; pitar deitado, o que muito lhe gustava; ler, a luz de vela, algum livreco arrebanhado na biblioteca do deputado e, principalmente, não tendo com quem charlar, deixar as ideias arrodeando soltas na cachola e cogitar. E cogitar a la larga.

Dera de cismar, de uns tempos para cá, com a Salamanca do Jarau, história entreverada de bruxas, princesas e fadas espanholas que lhe parecia meio sem propósito, para não dizer sem pé e sem cabeça. Das suas leituras, depreendera que um outro guasca, o Blau, pé-rachado como ele, andara, em épocas remotas, a desvendar-lhe os mistérios, por acaso, uma vez que estava em andanças atrás de um boi barroso que lhe havia sumido. E, se o Blau pudera, ele também podia. Então, botou os arreios no Malacara e ia alta a noite quando deixou as casas, de mansinho, e enveredou para o fundo dos campos, pelo trilho tantas vezes percorrido e que era certo que levava aos mitos Rio-grandenses porque sabia que, muito mais importante do que estar no lugar certo, na hora certa, era preciso acreditar. E acreditar, ele acreditava, porque era um gaúcho bueno de coração e de alma, coisa fundamental para tornar possível a aparição das criaturas.

Ia ao tranquito, com a luz da lua que estava a pino, a imprimir-lhe a sombra sob as patas do cavalo quando sentiu que se lhe arrepiavam os cabelos da nuca e lhe corria um frio pela espinha. Um tremor passou-lhe pelo corpo. Mas não era dele, era do Malacara, que tremia e lhe transmitia a reverberação, porque era só um animal e não gente. E não homem, que não se assusta nem se abichorna com coisas do outro mundo.

Da boca de um capão, saltou a aparição.

O índio retesou as rédeas, fazendo o flete estacar e como era ele que se achegava, a ele cabia cumprimentar:

- Valha Jesus Cristo e boa-noite!

- Amém e para o andante também! - Disse o vulto que emergira da reboleira. E continuou: - Aonde vai o viajante?

- Ando em busca da Salamanca do Jarau! - disse o gaúcho.

- E o que conhece o vivente da tal Salamanca?

- Só o que hey lido e ouvido...

- E se escreveu muito?

- Alguma cousa...

- Quem escreveu?

- Um ou outro homem bueno e culto...

- E o viajante escreveu também?

- Não!... Sou um bagual burro e ignorante que não tem afeição pela pena...

- Mas tem escrito! - disse o ser, que tudo sabia.

- Uma carta ou outra... - concordou o Tuquinha, encabulado.

- É uma pena, pois tenho ouvido dizer que leva jeito. - comentou a assombração, aproximando-se do gaúcho.

- Talvez as ideias sejam buenas, mas...

- Mas?...

- É que falta alguma coisa...

- Como o que? - perguntou o ser, sem lhe dar folga.

- Não sei bem... - atrapalhou-se o gaudério, pouco à vontade - Talvez que me falte incentivo...

- Mas não posso acreditar que careça de apoio!

- Mas falta... Falta muito...

- O vivente tem as ideias... Tem facilidade com as palavras... Tem os meios... O que é que pode faltar?

- Quem leia e quem comente, talvez...

- Mas isso há... Têm os irmãos... Os amigos... A patroa...

- A patroa não...

- Não tem patroa?

- Tenho! Não é isso...

- Então é o que? - perguntou novamente a criatura.

- É que a patroa não lê... Acha que é tudo besteira e perda de tempo... - lamentou-se o chirú.

- Então que não leia... Azar é o dela!

- Mas é por ela que escrevo...

- Pois continue a escrever...

- É difícil, pois cada vez que me abanco, ela torce o nariz, com cara de quem não está gostando...

- Mas se não lê, não pode gostar! - exclamou a alma penada.

- Não! É que para ela, escrever é como gastar pólvora em chimango... Pior. Fazer serviço à-toa...

- Entendo a sua situação... - concordou, finalmente. - Mas vamos ao que interessa: O que traz o vivente à minha presença?

O Tuquinha desmontou do cavalo, amarrou as rédeas numa macega e chegou-se ainda mais perto do interlocutor.

- De verdade? - perguntou.

- De verdade! - respondeu o ser.

- É que li a sua história, contada por um escritor pelotense e achei meio enrolada...

- Como assim, enrolada?

- Meio sem pé nem cabeça, como as histórias da Tia Anastácia...

- Da tia de quem?

- Da Tia Anastácia, uma negra pachorrenta que mora no Sítio do Pica-Pau Amarelo...

- E esse sítio fica aqui no Basílio?

- Não... Fica em São Paulo, eu acho. Não lembro bem...

- Não vem ao caso. Mas são enroladas por que?

- Sempre tem uma moça que foi enfeitiçada, uma fada piedosa, uma bruxa velha, um príncipe que foi transformado em sapo ou um rei que está, via de regra, muito triste, coisa que sabemos bem, não hay no Brasil... - explicou o Tuquinha que, de fato, achava que as histórias contadas pela gorda cozinheira não tinham nada a ver com a nossa cultura.

- Eu nunca havia pensado nisso... - ponderou o ser, pensativo.

- Mas também não vem ao caso porque já foram escritas e não há como cambiar. - disse o gaúcho, que queria entrar no assunto propriamente dito. - Já que estou aqui, gostaria de ouvir a sua história contada da própria boca...

- Pois então eu conto. - disse a aparição.

- Sou todo ouvidos...

- Foi assim: Do lado de lá do oceano, em terras de Espanha, existia uma cidade chamada Salamanca, onde viviam os mouros que haviam dominado a península...

- Estou sabendo... - disse o gaudério, adelgaçando, com ajuda de uma prateada pequena, uma palha escolhida para o pito que estava para enrolar.

A aparição continuou:

- Eram os mouros grandes conhecedores de magias, que praticavam com auxílio de um condão mágico que mantinham escondido das luzes do sol, que muito malefício lhe causava, em uma furna profunda, no regaço de uma fada enjarocada que, em verdade, era uma princesa moça e bonita...

- Eu não disse!... - apartou o índio, aproveitando para levar a mecha em brasa ao palheiro recém feito.

- Eu nunca tinha percebido. - concordou o narrador.

- De qualquer sorte estamos na Espanha, que é terra... - justificou o ouvinte - Mas continue a história...

- Numa batalha que se deu, disputadíssima, os mouros que haviam feito muita mofa do jejum, foram derrotados e, aqueles que não pediram perdão e não beijaram a Estrela de Belém, atirados ao mar. Alguns vieram acostar nestas terras buenas do Continente em busca de riquezas que lhes permitissem alçar outra vez a Meia-Lua...

- Não diga!

- É verdade... Vieram em naus espanholas, fingindo-se cristãos e, para sua segurança e das suas tramoias, trouxeram escondida a fada velha... E poder e força tinha a dita fada, pois nem os navios naufragaram nem se extraviaram e vieram certinho encostar às praias da gente pampeana.

- E aí, o que aconteceu? - quis saber o índio velho, que estava adorando a história e queria saber mais.

- Aí que era gente má aquela que chegara. Mouros assassinos e espanhóis renegados, de almas condenadas e corações cheios de maldades... Na primeira noite de sexta-feira, ao reunirem-se para evocar o seu deus, o Diabo, receberam a sua visita, em carne e osso, que nestas bandas do mundo era chamado de Anhangá-pitã e que muy contente ficou ao saber a que vinham aqueles malfeitores, uma vez que ele, sozinho, pouco ou nada pudera fazer para corromper os habitantes daquelas terras nativas cujas almas eram simples e sem cobiça.

- E o que achou o capeta dessa coisa toda?

- Gostou... Muito e tanto, o tal maldoso, que pegou do condão mágico e esfregou-o no suor do corpo e transformou-o em pedra transparente e, lançando seu bafo sobre a pedra moura, transformou-a na Teiniaguá sem cabeça e por tal, encravou no corpo da encantada, a pedra, que era o condão e, como ia nascendo o sol, a cabeça que era transparente ficou vermelha como brasa e tão brilhante que incendiava os olhos dos viventes que se punham a fitá-la, cegando-os...

A aparição fez uma pausa para tomar fôlego. Arriou o corpanzil no chão, a gosto, porque a narrativa seria longa. O bagual, aproveitando o interlúdio, foi até o pingo, onde apanhou um pedaço de pão caseiro e uma linguiça de porco que trouxera no embornal e voltou para junto do ser do outro mundo, sentando-se ao seu lado e oferecendo-lhe um naco das guloseimas.

A alma aceitou e repetiu e então, cuspindo para o lado um pedacinho de tripa que lhe ficara entre os dentes, deu continuidade:

- Então se desfez a reunião e batizaram por Salamanca àquela furna onde se encontravam e o nome tomou firmeza e se esparramou, pela boca do povo, servindo para as furnas todas que hay no mundo, em lembrança da cidade dos mouros mágicos.

- E depois? - quis saber o gaúcho.

- Depois se levantou uma tormenta e Anhangá-pitã socou a Teniaguá num bocó de couro, montou nele e correu água acima, pelo Rio Uruguai, por miles e miles de léguas, até o nascedouro. Lá, ensinou à Teniaguá todas as vaqueanagens de todas as furnas repletas de tesouros escondidos pelos mãos-de-vaca que existem na Terra, impossíveis para os medrosos e achadiço de valentes e muito mais que esses tesouros, outros tantos, que só os olhos dos zaoris podiam encontrar.

- Isso eu li na história... - assentiu o gaúcho, boquiaberto por estar sabendo ser verdade tudo o que lera, tal e qual.

E a entidade, afastando o pigarro da garganta, com uma tossidela, deu continuidade ao relato:

- O capeta, no entanto, só não tomou consciência de que a Teiniaguá era mulher...

- Não? - perguntou o gaudério, espantado.

- Não... Depois, cansado, dormiu sono pesado, esperando a tropilha de desgraças novas que, semeadas, deveriam vingar para sempre e assombrar as gentes do sul...

- Continue... - pediu o índio velho, que estava encantado com a narrativa que estava desembrulhando muitos embrulhos que tinha dentro da cabeça desde que, a lenda, lera.

- Amanhã à noite, vivente... Amanhã à noite...

* * * * *

Na noite seguinte o gaudério apresentou-se na orla do capão em que encontrara a assombração, cedinho, quando ia ainda tomando posição no firmamento a estrela Vésper. Levara junto, um quarto de capão de sobreano, que pusera ao fogo que armara bem arrumado, com lenha escolhida. Quando a graxa tenra pegou a derreter sobre o brasedo, inundando com seu aroma as ventas de quem andava ao redor, saiu do boqueirão a criatura, séria como viúva em retrato e veio se aproximando do acantonado, de narinas fungadoras, abertas, farejando as delícias do assado e como era ele quem chegava, a ele cabia cumprimentar:

- Boa-noite Seu Tuquinha!

- Para o senhor também seu vivente, por graça e obra do bom Jesus! - respondeu o gaúcho.

- O que o amigo está sapecando aí neste fogo?

- Trouxe um pedaço de ovelha para matar aquela que nos mata...

- A fome! - disse a assombração, que era rápida para charadas.

O Tuquinha cortou uma lasca, no ponto, e ofereceu para a coisa.

- Obrigado... - disse ela, abocanhando o pedaço - Deliciosa!

- Então se abanque que está pronta... Hay um pouco de canha numa guampa presa aos arreios do Malacara...

A assombração, a caminho, deu de mão na aguardente e se acomodou ao lado do gaúcho para dar combate ao assado. Comeram que se fartaram, até branquear os ossos do borrego. E tomaram também o caldo do chifre, que era lá das bandas de Santo Antônio da Patrulha e ainda, para arrematar, lamberam uma rapadura de açúcar mascavo. Depois, estiraram-se para trás, sobre o poncho do gaúcho e ficaram a olhar para riba e a arrotar.

- O vivente estava contando a sua história... - lembrou o índio.

- É verdade... Onde parei?

- Na parte em que o Diabo dormiu, sem saber que a Teiniaguá era mulher...

- Isso... Isso mesmo...

- Então?...

A assombração coçou a pança onde o assado estava sendo corroído, tirou uma gordurinha de entre os dentes, com a unha do mindinho, lambeu as pontas dos dedos para tirar o melado da rapadura e deu início a charla, com sua voz macia:

- Na borda da cidade em que eu habitava havia uma lagoa larga e funda... Eu fora batizado com a água benta da pia da paróquia e na minha cabeça, por onde tal água escorrera, também entraram pensamentos maus... E no meu peito, tantas vezes ungido pelos óleos santos, fez morada o pecado... A minha boca provou do sal piedoso e também dos beijos da tentadora... Assim era o destino. Tempo e homem viriam libertar-me, quebrando o encantamento que me amarrava e que havia de durar duzentos anos...

- Mas sempre foi assim? - perguntou o Tuquinha, penalizado.

- Não... Houve tempo em que eu cuidava dos altares e ajudava na missa dos padres de São Tomé, do lado oeste do grande Rio Uruguai... Sabia acender as velas perfumosas, sacudir o turíbulo, dizer as palavras do missal. Repicar os sinos, bater as horas, dobrar os finados...

- Como o sacristão da capela do Padre Libório?

- Isso... Até que um dia...

O gaúcho esperou que a criatura se desembaraçasse das lembranças e depois, paciencioso, ajudou um pouco:

- Até que um dia?...

- Até que um dia, na hora do mormaço, quando todos estavam à sombra, dormitando e não havia uma alma nas ruas sobre as quais o sol faiscava, saí da igreja pela portinhola da sacristia e fui levado, por mão invisível, até a margem da lagoa que fervia e borbulhava sem fogo por baixo...

- Não diga!

- Pelo hábito, quis fazer o Pelo-Sinal e a mão quedou pesada... Quis rezar o Padre-Nosso ou o Credo, mas a lembrança não veio... Pensei em correr aos sinos e fazê-los soar em dobre para chamar o povo e os santos padres para esconjurar aquela obra do inferno e nada... Fiquei sem força na vontade...

- A la pucha!

- Outra força, no entanto, acalmou tudo e apenas a água fumegante ficou fazendo subir os lodos onde boiavam os peixes e os muçuns e os cágados, que haviam morrido sem gritar... Então, da lagoa brotou um clarão mais forte que o sol de meio-dia, vermelho, varando aquela água toda, desde o fundo e veio crescendo na direção da barranca onde eu estava e se transformou naquela que os que nunca viram juravam ser verdade e que eu, que estava frente-a-frente, jurava ser mentira... A Teiniaguá... A Teiniaguá maldita, de cabeça de pedra luzente da qual havia ouvido o santo padre falar...

- E te agarrou a bandida? - perguntou o Tuquinha, ansioso.

- Escuite...

- Agarrou ou não agarrou?

- Entrecerrei os olhos, coando a vista e vi, por entre as pálpebras trêmulas, a medonha vir se chegando, deixando um rastro de água que escorria e secava num instante, do seu corpo verde e agitado...

- E então?

- Então me lembrei que se da água saía, na água viveria e corri com esforço, atrás de uma guampa igual a esta da qual há pouco bebemos, que vira atirada no meio das guanxumas e tomando-a, enchi-a da água vermelha da lagoa, assentei-a no solo, entre os pés e quando a Teiniaguá saltou sobre mim, agarrei-a de jeito e, às pressas, soquei-a guampa adentro e correndo de volta para o meu quarto, ao lado da sacristia, guardei-a na canastra e sentei-me por riba.

- E ninguém viu essa façanha?

- Ninguém... Ninguém... - disse a aparição, com a cabeça longe, como se estivesse revivendo aqueles momentos.

- E depois?

- Fiquei ali abancado, pensando...

- Pensando?

- Sim... Pois pelo dizer do padre superior, aquele que aprisionasse a Teiniaguá seria mais rico que o Papa de Roma... Que o imperador Carlos Magno... Que o rei da Trebizonda...

- Até mais do que o doutor Érico Ribeiro?

- Mais!... Muito mais... Eu não pensava mais com a cabeça. Na verdade, era uma sensação nova e esquisita... Eu via com os olhos, mas o pensamento ia à frente, como se pudesse sentir e tatear as coisas...

- Acho que sei como é... - assentiu o gaudério.

- Sabe?

- Sei... É como sonhar com mulher bonita...

- Pode ser... - concordou a alma penada - Pode ser...

- E então? - cutucou o gaúcho, que queria saber o resto da história.

- Aos meus olhos, tato e tudo o mais, foram se escancarando as posses e se abrindo as portas de castelos e palácios suntuosos, com escadarias de mármore e lustres de cristal, com cocheiras repletas de belos cavalos e carruagens e empregados aos milhares...

- Que vida! - exclamou o gaudério.

- E tinha mais ainda... - continuou a coisa - Muito mais... Campos e mais campos, até aonde a vista alcançava e ainda além, todos semeados e sãos, com os trigais balouçando ao vento e os paióis cheios até a boca... E nos palácios, ouro e joias finas e diamantes brilhantes como o sol, que eu ia dedilhando e pegando e pesando e contando e descansava e tornava a contar e era sempre maior a conta atual que a anterior...

- Deus nos livre!...

- Tudo eu podia e a tudo possuía, porque era minha a Teiniaguá que estava aprisionada...

- E então? - perguntou o Tuquinha, ansioso pela continuação.

- Então ouvi o dobrar dos sinos, chamando para as rezas da tarde e pela primeira vez não foram tocados por mim... Tranquei portas e tranquei janelas e tendo trazido mel de lixiguana que é o mais fino, para alimentar a Teiniaguá, ao aproximar-me da canastra, meus pés enraizaram no piso, os sentidos se arriscaram e o coração mermou no compassar do sangue: Linda... Linda e nua, na minha frente estava uma moça!

- A Teiniaguá?!

- Ela... Ela mesma...

- E aí?

- Com voz suave e hálito trescalando a flores, falou: "Eu sou a princesa moura encantada, transformada por Anhangá-pitã em Teiniaguá, que os outros chamam carbúnculo e temem e desejam porque eu sou a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo... Muitos têm me procurado com o peito cheio de torpezas e eu lhes hei escapado das mãos ambicioneiras e dos olhos cobiçosos... Tu, não... Tu não me procuraste ganoso... Então, subi ao teu encontro e me trataste bem, pondo água no corno e trazendo mel para o meu sustento... Se quiseres todas as riquezas que eu sei, entrarei de volta para a guampa e poderás andar, levando-me onde eu te encaminhar e serás senhor de tudo... Se, no entanto, resolveres não me esconjurar e ao invés de ser dono dos tesouros, quiseres ficar comigo, que sou princesa, jovem, e tenho o corpo rijo e nunca tocado, então serei teu par porque estava escrito..."

- E então criatura? - suplicou o gaúcho.

- Então foi amarelando na cabeça da moura o crescente dos infiéis e foi se embalando no silêncio da fala induzidora a cruz do meu rosário e a minha alma foi saindo de mim e então cada noite ela era o meu ninho e a minha perdição até que raiava a alva e já era dia quando ela desaparecia ante a minha face cavada de olheiras...

- A la pucha, caraco! - exclamou o gaudério. - Continue...

- Durante o dia, crivado de pecados eu trocava o amém nas missas... Batia a hora errada nos sinos... Uma noite, ela quis misturar o vinho do santo sacrifício ao mel... Eu trouxe do altar o cálice consagrado e de boca para boca o passamos, por lábios incendiados... Por fim, embebedados, caímos abraçados...

- E quando acordaram?

- Quando dei de mim, estava cercado pelos padres e pelos beatos e pelas corocas a desfiar as contas, descomposto como Deus me pôs no mundo...

- Que aperto!

- Para completar minha sina, no chão, caído, o cálice dourado, lavorado de palmas que o padre-mor limpava e re-limpava com a ponta da batina e mais, no chão também, atirada, uma charpa de fino tecido, com bordados estrambóticos, deixando que se divisasse a meia lua maldita para os cristãos...

- E a princesa?

- Nada!... Nem sombra... Só a canastra com o corno no intestino e o mel de lixiguana, dentro de um porongo, que era para a fome do seu corpo...

- E os padres, os beatos e as corocas?

- Farejaram no ar o cheiro mulherengo e não foi preciso mais nada...

- E no que deu? - suplicou o ouvinte.

- Puseram-me a ferros, aos gritos, aos esconjuros... E então me arrancaram as unhas, quebraram-me os dedos em busca da confissão que me salvaria a alma.

- E confessaste?

- Não!... Nunca... Não abri a boca porque abri-la seria confessar que ela era linda...

- E os padres inquisidores?

- Os padres pressentiram a Teiniaguá por serem sabidos e não toleraram a minha falta porque havia dado passo falso com bicho imundo que era a moura sedutora...

- E aí?

- Aí que me sentenciaram ao garrote infame e levaram-me para o patíbulo ao som dos sinos a dobrar finados e das gentes que na cara me cuspiam e se persignavam desviando o olhar...

- E te apertaram o pescoço?

- Antes chorei uma lágrima pela Teiniaguá querida que eu nunca mais veria nem nunca mais envolveria num abraço convulso na hora do êxtase dos nossos corpos...

- Afinal, te garrotearam ou não? - perguntou outra vez o gaúcho, em desespero, por ver que a criatura se perdia em divagações.

- Pela minha lágrima vertida, quando já não havia mais esperança de nada, nem de piedade dos homens, nem de milagres do céu, enquanto dentro do meu penar floreteava um laivo de saudade, como um fio de água que escorre por entre as pedras e as vai escavando ao longo dos séculos ou como uma umidade que vai manchando a taipa do açude e vai crescendo e aumentando até que se transforma num filete a escorrer e a carrear consigo as terra e a leiva, até que ninguém mais, nem bicho, nem homem, nem o capeta e nem mesmo Deus segura, também assim a minha crença naquele querer que me arrebatara, me fazia, no fundo da alma e do pensamento, crer que eu seria salvo pela minha fada adorada... Pela minha moura encantada... Pela virgem que viera desde a Espanha, no porão escuro de uma nau, para entregar-se a mim, humilde sacristão dos Sete Povos e fazer-me senhor e cativo...

- Assim vais me matar do coração! - exclamou mais uma vez o gaudério, que não via a hora de saber do desfecho de tão medonha enrascada.

A criatura parou de falar e ficou deitada como estava, de olhos baços, enxergando além do que os olhos viam e sentindo além do que os sentidos sentiam.

O Tuquinha, por respeito, deixou-o camperear pelos pensamentos, coisa que sabia ser boa porque, ele mesmo, muitas vezes, troteava também para outros tempos e outras plagas, quando e onde, tinham sido vãos os medos e descabidos os temores.

Decorridos alguns minutos, a assombração se pôs de pé, olhou para o tamanho da sombra que a luz da lua emprestava aos corpos e disse para o ouvinte:

- Estou muito cansado... Vamos deixar o resto da história para amanhã...

Dito isto, desejou uma boa-noite ao gaúcho, agradeceu pelo assado,

pela pinga e pela rapadura melada e ganhou o mato, desaparecendo.

* * * * *

Na terceira noite o índio velho escapuliu de fininho. Escapuliu da

mulher, que andava de cara amarrada e com as baterias da neurastenia recém trocadas, soltando fagulhas e descargas para todos os lados. Principalmente para o dele, que se havia tornado pacato e conciliador e pelo bem comum, deixara de retrucar às rabugices. Então, enquanto a viúva piscava, ele deu de mão no pingo e desceu o lançante que levava ao rincão onde já, por duas longas noites, havia encontrado e levado longa charla com a criatura, que agora sabia, não era ninguém mais, nem ninguém menos que o sacristão da paróquia de São Tomé das Missões, casualmente, lindeiro do outro índio com quem se avistara, em noite passada que ainda ia próxima, o famoso Sepé Tiaraju, autêntico herói gaúcho que perdera a vida em defesa do torrão natal.

Ao contrário das noites anteriores, esta estava escura porque muy nublado estava o céu e roncava um vento de viração que não ia dar coisa buena.

Mas compromisso era compromisso e chovessem canivetes ou o que quer que fosse, ele, que era cumpridor, não iria deixar o vivente esperando. E não deixou, de modo que, quando a criatura assomou de detrás da capororoca, a linguiça gorda já estava gotejando sobre o braseiro, inundando com seu aroma peculiar as adjacências, até que o vento espantasse e, para o bem da verdade, já havia entornado uma meia guampa de cana, mais por picuinha, para chegar de volta às casas alto e assim atucanar a china, do que por outra coisa qualquer. Bueno, um pouquinho de mágoa, talvez. Mas pouca. Bem pouca.

- Boa-noite, seu moço! - saudou a criatura.

- Boa-noite, sacristão! Que Deus esteja contigo. - respondeu ele.

Como a criatura era uma morta-de-fome que não comia há duzentos anos ou mais, e era o gaudério piedoso, fez com que ele se aproximasse do braseiro e fosse recortando, ele mesmo, as porções que queria, sem cerimônia. E recortou. E bebeu.

Quando esturricaram as tripas com a linguiça, mordiscaram ainda umas dez ou doze rapadurinhas de leite que haviam sido trazidas enroladas num lenço e como fazia frio, junto ao braseiro que morria se abancaram, para as falas da noite. E começaram:

- Eu dizia ainda ontem?... - iniciou o sacristão.

- Que estava com o atilho no pescoço!

- Isso... Isso mesmo...

- E então, o que aconteceu?

- A minha dor e a minha saudade pela moura acabaram saindo de mim e pontearam para o rumo de outra saudade e de outra dor que só podiam ser da Teiniaguá e então, um vento ruim desandou sobre a lagoa e fez tremer o chão com força tal, que as frutas caíram e os animais se ajoelharam, assustados e o povo, o povo que pedia a minha morte abriu num gritedo de "valha-me Jesus Cristo e Ave Maria" e se dispersaram apavorados e logo a seguir se ouviu, de dentro do vento, um vozerio ainda maior e mais alto, esbravejando que soltassem este vivente...

- E soltaram?

- Pasmaram os santos padres e esconjuraram aquela aparição que não aparecia e só fustigava e então, na força da religião, alinharam-se os sacerdotes e os leigos no abrigo do Santíssimo e aspergiram água benta sobre o povo amedrontado e o carrasco começou a torcer a clava que por sua vez torcia e retesava o fio que me sufocava...

- Que coisa! Que coisa! - exclamava o Tuquinha.

- Aí a terra cuspiu o fogo de todos os borralhos, que saiu zunindo pelas rachaduras que se haviam aberto no solo... E das portas das casas e das aberturas da paróquia e pela santa-fé das coberturas, brotaram as labaredas comburentes que não queimavam... E da lagoa brotou um trovão e se abriu a água e, lá do fundo, do fundo daquele mar de lodo vermelho, que saiu se arrebentando pelos barrancos, em borbotões, surgiu a Teiniaguá, enorme, acima das copas das árvores... Acima das torres dos sinos... E veio na nossa direção... Na minha, na dos padres santos, na do algoz que me sufocava... E o povo de guaranis que era simples, botou a berrar para que me libertassem, pois que iam as roças minguar, as tetas secar o leite, os homens perder a tenacidade, as crianças a pureza do batismo... Os cavalos extraviar... E os padres, os padres velhos e sabidos, que já haviam feito muito exorcismo e já haviam afastado das gentes simples muita coisa ruim, sentiram as forças espirituais mermarem e se afastaram, de cabeças baixas, em direção do povoado e atrás deles foi o carrasco, foram os guardas armados que me haviam conduzido até o cadafalso e foi também o povo rude e aparvalhado, sem olhar para trás...

- Então escapaste?

- Não! Aí é que começou o meu sortilégio... Aí é que começou...

- Benza Deus!

- Livre do vil garrote, acompanhei a Teiniaguá... Fui no rastro do seu cheiro... Nas pegadas do seu corpo saboroso... Por castigo para aquelas gentes orientais, ela cerrou as gretas das cavernas que escondiam os tesouros do lado oeste do grande Uruguai e vadeamos para o nascente, tomando o caminho para o Cerro do Jarau, que ficou sendo o depositário das riquezas das salamancas do mundo inteiro.

- Então enricaste! - perguntou o gaudério.

- Escuite... - respondeu a criatura - Escuite... Por duzentos anos aprendi as sabedorias árabes e tenho tratado de fazer feliz a alma dos homens poucos que sabem bem que é diferente mandar e ser mandado... Nunca mais dormi um único sono nem nunca mais bebi um único gole ou comi o que quer que fosse até que te encontrei... Passaram-se as décadas e eu trilhava e retrilhava os caminhos das cavernas escuras, pisando ouro em pó e vendo as montanhas de tesouros que vieram dos reinos de Castela e Aragão ou do longínquo México ou ainda das Minas Gerais... Olhei tanto até que enfarei por não poder usar nem gastar... E desde então só me tem sido permitido acompanhar os homens de alma rija e tranquilo coração que têm vindo em busca desta Salamanca que tornei famosa...

- Então é verdade que outros vieram antes de mim?

- Verdade! Alguns poucos valentes que tiveram a coragem de enfrentar as profundezas das rochas e arrostar os perigos, estes entraram atrás dos tesouros...

- Entraram e saíram?

- Não... A maioria deixou resgate de si mesmos para a nossa liberdade que hay de chegar um dia... E se pereceram, foi porque vieram com cobiça ou vícios ou pior ainda, ódios e nenhum foi como tu, que me saudaste três vezes e mencionaste o Cristo crucificado...

- Nem o Blau? - perguntou o índio velho.

- Blau?

- Sim, o Blau Nunes, tropeiro pobre como os frades franciscanos que, conforme li, arrostou os perigos do cavername e conseguiu sair...

- Ah, agora lembro!... - disse a criatura - O Blau... Este esteve aqui uma feita, saudou-me como tu... Entrou no labirinto das cavernas e acabou saindo mais pobre do que entrara porque queria mais do que podia...

- E o dobrão de ouro?

- Ele o devolveu porque não lhe trouxe sorte e ao final, todos se afastaram dele...

- Entendo...

- Mas agora é tua vez... Três vezes me citaste o Cristo e, depois de tanto esperar, chegou a hora da minha liberdade... Entra na capororoca de onde eu saí e encontrarás a furna escura e cheia de mistérios e de perdições. Governa o teu pensamento e mantém a língua presa, pois que é o pensamento dos homens que os faz ficar acima de todos os seres e é a língua maldita que os põe a perder... Vai! Entra com a alma forte e o coração sereno...

- O amigo tem certeza que quer mesmo que eu entre? - perguntou

o Tuquinha, para que a assombração confirmasse.

- Tenho!

E dito isso, levantou-se de perto do braseiro que já havia morrido e desapareceu no meio da noite. O gaúcho ficou solito... Solito.

Lançou um olhar de despedida para o Malacara, largou sobre ele o poncho, para protege-lo do frio, fez o pelo-sinal e avançou em direção da reboleira de onde o sacristão surgira e deparou-se com a boca negra da toca que estava ali, mas não estava. Explico: O gaudério conhecia os campos do Basílio como conhecia a palma da mão e conhecia o ventre da viúva e sabia que ali não havia greta, nem caverna, nem nada, porque as gretas e as cavernas da lenda ficavam para as bandas dos Sete Povos. Mas havia. Por obra do Diabo ou de Deus, havia. Como não era homem de recuar, foi entrando boca à dentro, cuidando as enredadeiras que havia no chão. Era um corredor de pedras a pique, escavadas pela natureza e por ele foi andando e dando voltas e mais voltas e abrindo com o peito os espinheiros e mantendo os ouvidos surdos para as lamúrias e para os convites que em baixa voz murmuravam as almas daqueles que haviam entrado antes dele e de lá não haviam logrado escapar e ainda pelejavam entre aquelas paredes frias. Arrostou feras que o desafiaram e deixou-as para trás porque ia de coração sereno. E o fogo que sobre ele se despejava em vigorosas labaredas também deixou para trás e foi indo e indo, sem parar... Encontrou, mais adiante, um bando de anões, mas deixou-os para trás, assim como as formosas donzelas que o quiseram seduzir e continuou enfrentando os perigos todos, em número de sete, porque ia de alma forte e de coração sereno.

E logo que se cumpriu a sétima prova, surgiu-lhe por diante uma figura de cara branca e triste que provavelmente lhe viera atrás por aquele caminho que percorrera e tomando-lhe da mão, conduziu-o até uma velha megera, que disse:

- "Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei... Paisano, escolhe! Para ganhar a parada em qualquer jogo... De naipes, que as mãos ajeitam... De dados, que a sorte revira... De cavalos, que se cotejam... De ossos, que se sopesam... Da rifa... Queres?"

- Não acredito em jogo nem em jogos de azar... Nas pencas, safo que sou, conheço o vencedor pela luz do olhar... Não!

- "Para a viola tocar e cantar... Amarrando nas suas cordas o coração das mulheres que te escuitarem e que hão de sonhar contigo, e ao teu chamado irão - obedientes, como aves varadas pelo olhar das cobras - deitar-se entregues ao dispor dos teus beijos, ao apertar dos teus braços, ao resfolegar dos teus desejos... Queres?"

- Eu tenho a mulher que quero e o amor que me embala as horas e me faz passar os anos... Não há mais ninguém que eu queira... Não!

- "Para conhecer as ervas, as raízes, os sucos das plantas e assim poderes curar os males dos que tu estimares ou desfazer a saúde dos que te aborrecerem... E saber simpatias fortes para dar sonhos ou loucura... Para tirar a fome, relaxar o sangue, gretar a pele e espumar os ossos... Ou para ligar apartados, achar cousas perdidas, descobrir invejas... Queres?"

- Não creio em coisas que não sejam pela vontade de Deus, nem para os amigos, nem para os inimigos. Não!

- "Para não errar golpe - de tiro, lança ou faca - em teu inimigo, mesmo no escuro ou na distância, parado ou correndo, destro ou prevenido, mais fortes que tu ou astuciosos... Queres?"

- Contra um desafeto bato-me de frente, em igualdade de condições. Não!

- "Para seres mandão, no teu distrito, e que todos te obedeçam sem resmungos... Seres língua com os estrangeiros e que todos te entendam... Queres?"

- Nunca gostei que me respeitassem pela força e sim pela convicção das minhas ideias e das minhas ações... A única fala estrangeira que me interessa e a castelhana irmã que eu já falo e entendo. Não!

- "Para seres ricaço de campo e gado e manadas de todo o pelo... Queres?"

- Sou o guardião dos campos do meu amigo, o deputado e por sermos amigos, seus campos e seu gado meus também são. Não!

- "Para fazeres pintura em tela; versos harmoniosos; novelas de sofrimento; autos de chocarrice; musicas de consolar; lavores no ouro; figuras no mármore... Queres?"

- A arte é para os artistas que têm sensibilidade e saber. Não!

- "Pois que em sete poderes te não fartas, nada te darei, porque do que foi prometido nada quiseste, vai-te!"

O índio velho, ao contrario do Blau Nunes, que muito queria a moça

Teiniaguá encantada porque era dona de tudo, saiu arrastando um passo depois do outro e voltou pelos mesmos corredores gelados e escuros, agora vazios de vozes, de imagens, de choros e de sussurros e deu voltas e contra-voltas e acabou por dar na boca da furna.

Saltou fora da urna, que de imediato se fechou e desapareceu e cruzando a capororoca, montou no Malacara e ia dar de rédeas, quando o Sacristão lhe surgiu pelo lado, branco e triste e estendendo-lhe a mão em despedida, disse?

- Não quiseste nada porque mantiveste a alma forte e o coração sereno... Tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a língua... Não sei se foi acertada ou não a tua escolha... Mas como és pobre e isso te aflige e aflige ainda mais a tua mulher e a tua família, dar-te-ei, como presente, esta moeda de ouro que está vazada pelo condão mágico. Ela te dará tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma em uma. Leva-a em lembrança deste amigo que por três noites seguidas te encontrou na reboleira deste mato e provou da comida e da canha que trouxeste com humildade e bondade...

Dizendo isto, aproximou-se e, tomando a mão do gaúcho, na sua palma, marcada de profundas cicatrizes, depositou a lembrança.

O Tuquinha olhou para a moeda que poderia significar a grande mudança da sua vida, sopesou-a e, devolvendo-a ao Sacristão, disse:

- Hei de lembrar-me sempre de ti, mesmo não levando a moeda que me ofereces... Antes a minha pobreza de ouro e de prata, mas rodeado dos que amo; da minha mãe velha e da avó que é ainda mais; dos tios queridos; dos meus irmãos amados e cunhados que também são irmãos; das filhas gentis e amorosas que se vão encaminhando na vida e serão melhores que eu; da china amiga que vem passando hora ruim, mas que sei que me quer bem e dos seus irmãos e parentes, que a mim me querem igual; dos netos e dos sobrinhos que hão de nos dar continuidade; dos amigos, que não vejo com frequência, mas que sei estarem lá, pro causo de necessidade; dos demais parente que conheço ou não; dos inimigos, que em verdade, não sabem porque o são e de ti, Sacristão sofredor, que esbugalhaste a vida pelo amor da Teiniaguá e que agora vives um sofrer eterno, aprisionado nos grotões escuros do Rio Grande - estes, são o maior tesouro que tenho e que pode alguém almejar...

E quando a moeda que era a ultima tentação voltou à mão do amigo

Sacristão, neste mesmo momento, enquanto a pataca de ouro arrodeava ainda, ouviu-se um imenso estouro que se propagou por léguas e mais léguas, começando nas coxilhas do Basílio, cortando o Continente de São Pedro, até o Cerro do Jarau, lá nas bandas do Quarai, fazendo uma língua de fogo aparecer, e se alteando desde o fundo da terra, trazendo com ela a fumaça negra dos tesouros todos que queimavam nas cavernas subterrâneas e neste mesmo momento ainda, o vulto branco que era aquela assombração com a qual o gaudério se encontrara e de cuja boca ouvira toda a historia, transformou-se novamente no Sacristão risonho que fora outrora, no tempo dos padres e dos guaranis e saindo, por sua vez, do macegal, a velha coroca que oferecera o mundo ao gaúcho, transformou-se em Teniaguá e a Teniaguá na princesa moura e esta, numa índia muy linda que deu a mão ao rapaz e desapareceu com ele no meio da noite para, finalmente, irem viver o seu idílio, agora para todo o sempre, pois quando fora o Blau, a liberdade só durara o tempo equivalente ao que ele ficara com o dobrão mágico, mas agora era diferente; não quisera nada o gaúcho que era bueno e era singelo e assim, por falta de cobiça e de ganância, quebrara de vez o encanto.

O Tuquinha, deixado solito, desamarrou o Malacara, montou-o e tocou para casa, onde pretendia dormir ainda o que restava da noite, declinando da companhia solitária dos pelegos na varanda, no quarto, abraçado na patroa.

(Porto Alegre, 13/Abril/2003)

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