(baseado em: A Salamanca do Jarau, de J. Simões Lopes Neto)
O gaúcho escapulira lindaço da tal de Boitatá. Bem que
a bruta tentara, ao fim da entrevista, assim como o personagem central da escritora
Anne Rice, abocanhar o entrevistador para, ao invés de sugar-lhe o fluido
do corpo, como faria aquele, os olhos, que lhe eram mais do feitio e gosto.
Mas o gaudério fora esperto e, na hora agá, contara com o laço
que deixara enrodilhado, à feição, com a armada grande
como mandava o livro de Lendas do Sul, que havia sido escrito pelo Simões
Lopes Neto, e que ele, leitor ávido, transformara em manual indispensável
e lera e relera tantas e tantas vezes que sabia de cor e salteado. Pois bueno,
o vivente era oferecido como china de puteiro e não contente ainda com
as aventuras porque passara nas últimas noites, queria mais. E teve.
Foi assim:
A china velha andava a rebolquer-se para apartar-se do abraço do chirú
que nunca se abombava e então, meio por birra, meio por despeito, deu
de ir-se aos pelegos na varanda, emburrado, para dormir solito porque era melhor
do que mal acompanhado. Mal acompanhado não era o termo certo. Acompanhado
por mulher na qual as vontades se haviam arrefecido e não lhe nutria
mais o mesmo querer de antanho, isso sim, verdade seja dita.
Mas nem tudo era perda. Tinha as suas vantagens. Dentre elas, a de poder traquear
folgado; pitar deitado, o que muito lhe gustava; ler, a luz de vela, algum livreco
arrebanhado na biblioteca do deputado e, principalmente, não tendo com
quem charlar, deixar as ideias arrodeando soltas na cachola e cogitar.
E cogitar a la larga.
Dera de cismar, de uns tempos para cá, com a Salamanca do Jarau, história
entreverada de bruxas, princesas e fadas espanholas que lhe parecia meio sem
propósito, para não dizer sem pé e sem cabeça. Das
suas leituras, depreendera que um outro guasca, o Blau, pé-rachado como
ele, andara, em épocas remotas, a desvendar-lhe os mistérios,
por acaso, uma vez que estava em andanças atrás de um boi barroso
que lhe havia sumido. E, se o Blau pudera, ele também podia. Então,
botou os arreios no Malacara e ia alta a noite quando deixou as casas, de mansinho,
e enveredou para o fundo dos campos, pelo trilho tantas vezes percorrido e que
era certo que levava aos mitos Rio-grandenses porque sabia que, muito mais importante
do que estar no lugar certo, na hora certa, era preciso acreditar. E acreditar,
ele acreditava, porque era um gaúcho bueno de coração e
de alma, coisa fundamental para tornar possível a aparição
das criaturas.
Ia ao tranquito, com a luz da lua que estava a pino, a imprimir-lhe a sombra
sob as patas do cavalo quando sentiu que se lhe arrepiavam os cabelos da nuca
e lhe corria um frio pela espinha. Um tremor passou-lhe pelo corpo. Mas não
era dele, era do Malacara, que tremia e lhe transmitia a reverberação,
porque era só um animal e não gente. E não homem, que não
se assusta nem se abichorna com coisas do outro mundo.
Da boca de um capão, saltou a aparição.
O índio retesou as rédeas, fazendo o flete estacar e como era
ele que se achegava, a ele cabia cumprimentar:
- Valha Jesus Cristo e boa-noite!
- Amém e para o andante também! - Disse o vulto que emergira da
reboleira. E continuou: - Aonde vai o viajante?
- Ando em busca da Salamanca do Jarau! - disse o gaúcho.
- E o que conhece o vivente da tal Salamanca?
- Só o que hey lido e ouvido...
- E se escreveu muito?
- Alguma cousa...
- Quem escreveu?
- Um ou outro homem bueno e culto...
- E o viajante escreveu também?
- Não!... Sou um bagual burro e ignorante que não tem afeição
pela pena...
- Mas tem escrito! - disse o ser, que tudo sabia.
- Uma carta ou outra... - concordou o Tuquinha, encabulado.
- É uma pena, pois tenho ouvido dizer que leva jeito. - comentou a assombração, aproximando-se do gaúcho.
- Talvez as ideias sejam buenas, mas...
- Mas?...
- É que falta alguma coisa...
- Como o que? - perguntou o ser, sem lhe dar folga.
- Não sei bem... - atrapalhou-se o gaudério, pouco à vontade
- Talvez que me falte incentivo...
- Mas não posso acreditar que careça de apoio!
- Mas falta... Falta muito...
- O vivente tem as ideias... Tem facilidade com as palavras... Tem os
meios... O que é que pode faltar?
- Quem leia e quem comente, talvez...
- Mas isso há... Têm os irmãos... Os amigos... A patroa...
- A patroa não...
- Não tem patroa?
- Tenho! Não é isso...
- Então é o que? - perguntou novamente a criatura.
- É que a patroa não lê... Acha que é tudo besteira
e perda de tempo... - lamentou-se o chirú.
- Então que não leia... Azar é o dela!
- Mas é por ela que escrevo...
- Pois continue a escrever...
- É difícil, pois cada vez que me abanco, ela torce o nariz, com
cara de quem não está gostando...
- Mas se não lê, não pode gostar! - exclamou a alma penada.
- Não! É que para ela, escrever é como gastar pólvora
em chimango... Pior. Fazer serviço à-toa...
- Entendo a sua situação... - concordou, finalmente. - Mas vamos
ao que interessa: O que traz o vivente à minha presença?
O Tuquinha desmontou do cavalo, amarrou as rédeas numa macega e chegou-se ainda mais perto do interlocutor.
- De verdade? - perguntou.
- De verdade! - respondeu o ser.
- É que li a sua história, contada por um escritor pelotense e
achei meio enrolada...
- Como assim, enrolada?
- Meio sem pé nem cabeça, como as histórias da Tia Anastácia...
- Da tia de quem?
- Da Tia Anastácia, uma negra pachorrenta que mora no Sítio do
Pica-Pau Amarelo...
- E esse sítio fica aqui no Basílio?
- Não... Fica em São Paulo, eu acho. Não lembro bem...
- Não vem ao caso. Mas são enroladas por que?
- Sempre tem uma moça que foi enfeitiçada, uma fada piedosa, uma
bruxa velha, um príncipe que foi transformado em sapo ou um rei que está,
via de regra, muito triste, coisa que sabemos bem, não hay no Brasil...
- explicou o Tuquinha que, de fato, achava que as histórias contadas pela gorda cozinheira não tinham
nada a ver com a nossa cultura.
- Eu nunca havia pensado nisso... - ponderou o ser, pensativo.
- Mas também não vem ao caso porque já foram escritas e
não há como cambiar. - disse o gaúcho, que queria entrar
no assunto propriamente dito. - Já que estou aqui, gostaria de ouvir
a sua história contada da própria boca...
- Pois então eu conto. - disse a aparição.
- Sou todo ouvidos...
- Foi assim: Do lado de lá do oceano, em terras de Espanha, existia uma
cidade chamada Salamanca, onde viviam os mouros que haviam dominado a península...
- Estou sabendo... - disse o gaudério, adelgaçando, com ajuda
de uma prateada pequena, uma palha escolhida para o pito que estava para enrolar.
A aparição continuou:
- Eram os mouros grandes conhecedores de magias, que praticavam com auxílio
de um condão mágico que mantinham escondido das luzes do sol,
que muito malefício lhe causava, em uma furna profunda, no regaço
de uma fada enjarocada que, em verdade, era uma princesa moça e bonita...
- Eu não disse!... - apartou o índio, aproveitando para levar
a mecha em brasa ao palheiro recém feito.
- Eu nunca tinha percebido. - concordou o narrador.
- De qualquer sorte estamos na Espanha, que é terra... - justificou o
ouvinte - Mas continue a história...
- Numa batalha que se deu, disputadíssima, os mouros que haviam feito
muita mofa do jejum, foram derrotados e, aqueles que não pediram perdão
e não beijaram a Estrela de Belém, atirados ao mar. Alguns vieram
acostar nestas terras buenas do Continente em busca de riquezas que lhes permitissem
alçar outra vez a Meia-Lua...
- Não diga!
- É verdade... Vieram em naus espanholas, fingindo-se cristãos
e, para sua segurança e das suas tramoias, trouxeram escondida
a fada velha... E poder e força tinha a dita fada, pois nem os navios
naufragaram nem se extraviaram e vieram certinho encostar às praias da
gente pampeana.
- E aí, o que aconteceu? - quis saber o índio velho, que estava adorando a história e queria saber mais.
- Aí que era gente má aquela que chegara. Mouros assassinos e
espanhóis renegados, de almas condenadas e corações cheios
de maldades... Na primeira noite de sexta-feira, ao reunirem-se para evocar
o seu deus, o Diabo, receberam a sua visita, em carne e osso, que nestas bandas
do mundo era chamado de Anhangá-pitã e que muy contente ficou
ao saber a que vinham aqueles malfeitores, uma vez que ele, sozinho, pouco ou
nada pudera fazer para corromper os habitantes daquelas terras nativas cujas
almas eram simples e sem cobiça.
- E o que achou o capeta dessa coisa toda?
- Gostou... Muito e tanto, o tal maldoso, que pegou do condão mágico
e esfregou-o no suor do corpo e transformou-o em pedra transparente e, lançando
seu bafo sobre a pedra moura, transformou-a na Teiniaguá sem cabeça
e por tal, encravou no corpo da encantada, a pedra, que era o condão
e, como ia nascendo o sol, a cabeça que era transparente ficou vermelha
como brasa e tão brilhante que incendiava os olhos dos viventes que se
punham a fitá-la, cegando-os...
A aparição fez uma pausa para tomar fôlego. Arriou o corpanzil
no chão, a gosto, porque a narrativa seria longa. O bagual, aproveitando
o interlúdio, foi até o pingo, onde apanhou um pedaço de
pão caseiro e uma linguiça de porco que trouxera no embornal
e voltou para junto do ser do outro mundo, sentando-se ao seu lado e oferecendo-lhe
um naco das guloseimas.
A alma aceitou e repetiu e então, cuspindo para o lado um pedacinho de
tripa que lhe ficara entre os dentes, deu continuidade:
- Então se desfez a reunião e batizaram por Salamanca àquela
furna onde se encontravam e o nome tomou firmeza e se esparramou, pela boca
do povo, servindo para as furnas todas que hay no mundo, em lembrança
da cidade dos mouros mágicos.
- E depois? - quis saber o gaúcho.
- Depois se levantou uma tormenta e Anhangá-pitã socou a Teniaguá
num bocó de couro, montou nele e correu água acima, pelo Rio Uruguai,
por miles e miles de léguas, até o nascedouro. Lá, ensinou
à Teniaguá todas as vaqueanagens de todas as furnas repletas de
tesouros escondidos pelos mãos-de-vaca que existem na Terra, impossíveis
para os medrosos e achadiço de valentes e muito mais que esses tesouros,
outros tantos, que só os olhos dos zaoris podiam encontrar.
- Isso eu li na história... - assentiu o gaúcho, boquiaberto por
estar sabendo ser verdade tudo o que lera, tal e qual.
E a entidade, afastando o pigarro da garganta, com uma tossidela, deu continuidade
ao relato:
- O capeta, no entanto, só não tomou consciência de que
a Teiniaguá era mulher...
- Não? - perguntou o gaudério, espantado.
- Não... Depois, cansado, dormiu sono pesado, esperando a tropilha de
desgraças novas que, semeadas, deveriam vingar para sempre e assombrar
as gentes do sul...
- Continue... - pediu o índio velho, que estava encantado com a narrativa que estava desembrulhando muitos embrulhos que tinha dentro da cabeça
desde que, a lenda, lera.
- Amanhã à noite, vivente... Amanhã à noite...
* * * * *
Na noite seguinte o gaudério apresentou-se na orla do capão
em que encontrara a assombração, cedinho, quando ia ainda tomando
posição no firmamento a estrela Vésper. Levara junto, um
quarto de capão de sobreano, que pusera ao fogo que armara bem arrumado,
com lenha escolhida. Quando a graxa tenra pegou a derreter sobre o brasedo,
inundando com seu aroma as ventas de quem andava ao redor, saiu do boqueirão
a criatura, séria como viúva em retrato e veio se aproximando
do acantonado, de narinas fungadoras, abertas, farejando as delícias
do assado e como era ele quem chegava, a ele cabia cumprimentar:
- Boa-noite Seu Tuquinha!
- Para o senhor também seu vivente, por graça e obra do bom Jesus!
- respondeu o gaúcho.
- O que o amigo está sapecando aí neste fogo?
- Trouxe um pedaço de ovelha para matar aquela que nos mata...
- A fome! - disse a assombração, que era rápida para charadas.
O Tuquinha cortou uma lasca, no ponto, e ofereceu para a coisa.
- Obrigado... - disse ela, abocanhando o pedaço - Deliciosa!
- Então se abanque que está pronta... Hay um pouco de canha numa
guampa presa aos arreios do Malacara...
A assombração, a caminho, deu de mão na aguardente e se
acomodou ao lado do gaúcho para dar combate ao assado. Comeram que se fartaram,
até branquear os ossos do borrego. E tomaram também o caldo do
chifre, que era lá das bandas de Santo Antônio da Patrulha e ainda,
para arrematar, lamberam uma rapadura de açúcar mascavo. Depois,
estiraram-se para trás, sobre o poncho do gaúcho e ficaram a olhar
para riba e a arrotar.
- O vivente estava contando a sua história... - lembrou o índio.
- É verdade... Onde parei?
- Na parte em que o Diabo dormiu, sem saber que a Teiniaguá era mulher...
- Isso... Isso mesmo...
- Então?...
A assombração coçou a pança onde o assado estava
sendo corroído, tirou uma gordurinha de entre os dentes, com a unha do mindinho, lambeu as pontas
dos dedos para tirar o melado da rapadura e deu início a charla, com
sua voz macia:
- Na borda da cidade em que eu habitava havia uma lagoa larga e funda... Eu
fora batizado com a água benta da pia da paróquia e na minha cabeça,
por onde tal água escorrera, também entraram pensamentos maus...
E no meu peito, tantas vezes ungido pelos óleos santos, fez morada o
pecado... A minha boca provou do sal piedoso e também dos beijos da tentadora...
Assim era o destino. Tempo e homem viriam libertar-me, quebrando o encantamento
que me amarrava e que havia de durar duzentos anos...
- Mas sempre foi assim? - perguntou o Tuquinha, penalizado.
- Não... Houve tempo em que eu cuidava dos altares e ajudava na missa
dos padres de São Tomé, do lado oeste do grande Rio Uruguai...
Sabia acender as velas perfumosas, sacudir o turíbulo, dizer as palavras
do missal. Repicar os sinos, bater as horas, dobrar os finados...
- Como o sacristão da capela do Padre Libório?
- Isso... Até que um dia...
O gaúcho esperou que a criatura se desembaraçasse das lembranças
e depois, paciencioso, ajudou um pouco:
- Até que um dia?...
- Até que um dia, na hora do mormaço, quando todos estavam à
sombra, dormitando e não havia uma alma nas ruas sobre as quais o sol
faiscava, saí da igreja pela portinhola da sacristia e fui levado, por
mão invisível, até a margem da lagoa que fervia e borbulhava
sem fogo por baixo...
- Não diga!
- Pelo hábito, quis fazer o Pelo-Sinal e a mão quedou pesada...
Quis rezar o Padre-Nosso ou o Credo, mas a lembrança não veio...
Pensei em correr aos sinos e fazê-los soar em dobre para chamar o povo
e os santos padres para esconjurar aquela obra do inferno e nada... Fiquei sem
força na vontade...
- A la pucha!
- Outra força, no entanto, acalmou tudo e apenas a água fumegante
ficou fazendo subir os lodos onde boiavam os peixes e os muçuns e os
cágados, que haviam morrido sem gritar... Então, da lagoa brotou
um clarão mais forte que o sol de meio-dia, vermelho, varando aquela
água toda, desde o fundo e veio crescendo na direção da
barranca onde eu estava e se transformou naquela que os que nunca viram juravam
ser verdade e que eu, que estava frente-a-frente, jurava ser mentira... A Teiniaguá...
A Teiniaguá maldita, de cabeça de pedra luzente da qual havia
ouvido o santo padre falar...
- E te agarrou a bandida? - perguntou o Tuquinha, ansioso.
- Escuite...
- Agarrou ou não agarrou?
- Entrecerrei os olhos, coando a vista e vi, por entre as pálpebras trêmulas,
a medonha vir se chegando, deixando um rastro de água que escorria e
secava num instante, do seu corpo verde e agitado...
- E então?
- Então me lembrei que se da água saía, na água
viveria e corri com esforço, atrás de uma guampa igual a esta
da qual há pouco bebemos, que vira atirada no meio das guanxumas e tomando-a,
enchi-a da água vermelha da lagoa, assentei-a no solo, entre os pés
e quando a Teiniaguá saltou sobre mim, agarrei-a de jeito e, às
pressas, soquei-a guampa adentro e correndo de volta para o meu quarto, ao lado
da sacristia, guardei-a na canastra e sentei-me por riba.
- E ninguém viu essa façanha?
- Ninguém... Ninguém... - disse a aparição, com
a cabeça longe, como se estivesse revivendo aqueles momentos.
- E depois?
- Fiquei ali abancado, pensando...
- Pensando?
- Sim... Pois pelo dizer do padre superior, aquele que aprisionasse a Teiniaguá
seria mais rico que o Papa de Roma... Que o imperador Carlos Magno... Que o
rei da Trebizonda...
- Até mais do que o doutor Érico Ribeiro?
- Mais!... Muito mais... Eu não pensava mais com a cabeça. Na
verdade, era uma sensação nova e esquisita... Eu via com os olhos,
mas o pensamento ia à frente, como se pudesse sentir e tatear as coisas...
- Acho que sei como é... - assentiu o gaudério.
- Sabe?
- Sei... É como sonhar com mulher bonita...
- Pode ser... - concordou a alma penada - Pode ser...
- E então? - cutucou o gaúcho, que queria saber o resto da história.
- Aos meus olhos, tato e tudo o mais, foram se escancarando as posses e se abrindo
as portas de castelos e palácios suntuosos, com escadarias de mármore
e lustres de cristal, com cocheiras repletas de belos cavalos e carruagens e
empregados aos milhares...
- Que vida! - exclamou o gaudério.
- E tinha mais ainda... - continuou a coisa - Muito mais... Campos e mais campos,
até aonde a vista alcançava e ainda além, todos semeados
e sãos, com os trigais balouçando ao vento e os paióis
cheios até a boca... E nos palácios, ouro e joias finas
e diamantes brilhantes como o sol, que eu ia dedilhando e pegando e pesando
e contando e descansava e tornava a contar e era sempre maior a conta atual
que a anterior...
- Deus nos livre!...
- Tudo eu podia e a tudo possuía, porque era minha a Teiniaguá
que estava aprisionada...
- E então? - perguntou o Tuquinha, ansioso pela continuação.
- Então ouvi o dobrar dos sinos, chamando para as rezas da tarde e pela
primeira vez não foram tocados por mim... Tranquei portas e tranquei
janelas e tendo trazido mel de lixiguana que é o mais fino, para alimentar
a Teiniaguá, ao aproximar-me da canastra, meus pés enraizaram
no piso, os sentidos se arriscaram e o coração mermou no compassar
do sangue: Linda... Linda e nua, na minha frente estava uma moça!
- A Teiniaguá?!
- Ela... Ela mesma...
- E aí?
- Com voz suave e hálito trescalando a flores, falou: "Eu sou a
princesa moura encantada, transformada por Anhangá-pitã em Teiniaguá,
que os outros chamam carbúnculo e temem e desejam porque eu sou a rosa
dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo... Muitos têm me procurado
com o peito cheio de torpezas e eu lhes hei escapado das mãos ambicioneiras
e dos olhos cobiçosos... Tu, não... Tu não me procuraste
ganoso... Então, subi ao teu encontro e me trataste bem, pondo água
no corno e trazendo mel para o meu sustento... Se quiseres todas as riquezas
que eu sei, entrarei de volta para a guampa e poderás andar, levando-me
onde eu te encaminhar e serás senhor de tudo... Se, no entanto, resolveres
não me esconjurar e ao invés de ser dono dos tesouros, quiseres
ficar comigo, que sou princesa, jovem, e tenho o corpo rijo e nunca tocado,
então serei teu par porque estava escrito..."
- E então criatura? - suplicou o gaúcho.
- Então foi amarelando na cabeça da moura o crescente dos infiéis
e foi se embalando no silêncio da fala induzidora a cruz do meu rosário
e a minha alma foi saindo de mim e então cada noite ela era o meu ninho
e a minha perdição até que raiava a alva e já era
dia quando ela desaparecia ante a minha face cavada de olheiras...
- A la pucha, caraco! - exclamou o gaudério. - Continue...
- Durante o dia, crivado de pecados eu trocava o amém nas missas... Batia
a hora errada nos sinos... Uma noite, ela quis misturar o vinho do santo sacrifício
ao mel... Eu trouxe do altar o cálice consagrado e de boca para boca
o passamos, por lábios incendiados... Por fim, embebedados, caímos
abraçados...
- E quando acordaram?
- Quando dei de mim, estava cercado pelos padres e pelos beatos e pelas corocas
a desfiar as contas, descomposto como Deus me pôs no mundo...
- Que aperto!
- Para completar minha sina, no chão, caído, o cálice dourado,
lavorado de palmas que o padre-mor limpava e re-limpava com a ponta da batina
e mais, no chão também, atirada, uma charpa de fino tecido, com
bordados estrambóticos, deixando que se divisasse a meia lua maldita
para os cristãos...
- E a princesa?
- Nada!... Nem sombra... Só a canastra com o corno no intestino e o mel
de lixiguana, dentro de um porongo, que era para a fome do seu corpo...
- E os padres, os beatos e as corocas?
- Farejaram no ar o cheiro mulherengo e não foi preciso mais nada...
- E no que deu? - suplicou o ouvinte.
- Puseram-me a ferros, aos gritos, aos esconjuros... E então me arrancaram
as unhas, quebraram-me os dedos em busca da confissão que me salvaria
a alma.
- E confessaste?
- Não!... Nunca... Não abri a boca porque abri-la seria confessar
que ela era linda...
- E os padres inquisidores?
- Os padres pressentiram a Teiniaguá por serem sabidos e não toleraram
a minha falta porque havia dado passo falso com bicho imundo que era a moura
sedutora...
- E aí?
- Aí que me sentenciaram ao garrote infame e levaram-me para o patíbulo
ao som dos sinos a dobrar finados e das gentes que na cara me cuspiam e se persignavam
desviando o olhar...
- E te apertaram o pescoço?
- Antes chorei uma lágrima pela Teiniaguá querida que eu nunca
mais veria nem nunca mais envolveria num abraço convulso na hora do êxtase
dos nossos corpos...
- Afinal, te garrotearam ou não? - perguntou outra vez o gaúcho, em desespero, por ver que a criatura se perdia em divagações.
- Pela minha lágrima vertida, quando já não havia mais
esperança de nada, nem de piedade dos homens, nem de milagres do céu,
enquanto dentro do meu penar floreteava um laivo de saudade, como um fio de
água que escorre por entre as pedras e as vai escavando ao longo dos
séculos ou como uma umidade que vai manchando a taipa do açude
e vai crescendo e aumentando até que se transforma num filete a escorrer
e a carrear consigo as terra e a leiva, até que ninguém mais,
nem bicho, nem homem, nem o capeta e nem mesmo Deus segura, também assim
a minha crença naquele querer que me arrebatara, me fazia, no fundo da
alma e do pensamento, crer que eu seria salvo pela minha fada adorada... Pela
minha moura encantada... Pela virgem que viera desde a Espanha, no porão
escuro de uma nau, para entregar-se a mim, humilde sacristão dos Sete
Povos e fazer-me senhor e cativo...
- Assim vais me matar do coração! - exclamou mais uma vez o gaudério, que não via a hora de saber do desfecho de tão
medonha enrascada.
A criatura parou de falar e ficou deitada como estava, de olhos baços,
enxergando além do que os olhos viam e sentindo além do que os
sentidos sentiam.
O Tuquinha, por respeito, deixou-o camperear pelos pensamentos, coisa que sabia
ser boa porque, ele mesmo, muitas vezes, troteava também para outros
tempos e outras plagas, quando e onde, tinham sido vãos os medos e descabidos
os temores.
Decorridos alguns minutos, a assombração se pôs de pé,
olhou para o tamanho da sombra que a luz da lua emprestava aos corpos e disse
para o ouvinte:
- Estou muito cansado... Vamos deixar o resto da história para amanhã...
Dito isto, desejou uma boa-noite ao gaúcho, agradeceu pelo assado,
pela pinga e pela rapadura melada e ganhou o mato, desaparecendo.
* * * * *
Na terceira noite o índio velho escapuliu de fininho. Escapuliu da
mulher, que andava de cara amarrada e com as baterias da neurastenia recém
trocadas, soltando fagulhas e descargas para todos os lados. Principalmente
para o dele, que se havia tornado pacato e conciliador e pelo bem comum, deixara
de retrucar às rabugices. Então, enquanto a viúva piscava,
ele deu de mão no pingo e desceu o lançante que levava ao rincão
onde já, por duas longas noites, havia encontrado e levado longa charla
com a criatura, que agora sabia, não era ninguém mais, nem ninguém
menos que o sacristão da paróquia de São Tomé das
Missões, casualmente, lindeiro do outro índio com quem se avistara,
em noite passada que ainda ia próxima, o famoso Sepé Tiaraju,
autêntico herói gaúcho que perdera a vida em defesa do torrão
natal.
Ao contrário das noites anteriores, esta estava escura porque muy nublado
estava o céu e roncava um vento de viração que não
ia dar coisa buena.
Mas compromisso era compromisso e chovessem canivetes ou o que quer que fosse,
ele, que era cumpridor, não iria deixar o vivente esperando. E não
deixou, de modo que, quando a criatura assomou de detrás da capororoca,
a linguiça gorda já estava gotejando sobre o braseiro, inundando
com seu aroma peculiar as adjacências, até que o vento espantasse
e, para o bem da verdade, já havia entornado uma meia guampa de cana,
mais por picuinha, para chegar de volta às casas alto e assim atucanar
a china, do que por outra coisa qualquer. Bueno, um pouquinho de mágoa,
talvez. Mas pouca. Bem pouca.
- Boa-noite, seu moço! - saudou a criatura.
- Boa-noite, sacristão! Que Deus esteja contigo. - respondeu ele.
Como a criatura era uma morta-de-fome que não comia há duzentos anos ou mais, e era o gaudério piedoso, fez com que ele se aproximasse
do braseiro e fosse recortando, ele mesmo, as porções que queria,
sem cerimônia. E recortou. E bebeu.
Quando esturricaram as tripas com a linguiça, mordiscaram ainda umas dez ou doze rapadurinhas de leite que haviam sido trazidas enroladas num
lenço e como fazia frio, junto ao braseiro que morria se abancaram, para
as falas da noite. E começaram:
- Eu dizia ainda ontem?... - iniciou o sacristão.
- Que estava com o atilho no pescoço!
- Isso... Isso mesmo...
- E então, o que aconteceu?
- A minha dor e a minha saudade pela moura acabaram saindo de mim e pontearam
para o rumo de outra saudade e de outra dor que só podiam ser da Teiniaguá
e então, um vento ruim desandou sobre a lagoa e fez tremer o chão
com força tal, que as frutas caíram e os animais se ajoelharam,
assustados e o povo, o povo que pedia a minha morte abriu num gritedo de "valha-me
Jesus Cristo e Ave Maria" e se dispersaram apavorados e logo a seguir se
ouviu, de dentro do vento, um vozerio ainda maior e mais alto, esbravejando
que soltassem este vivente...
- E soltaram?
- Pasmaram os santos padres e esconjuraram aquela aparição que
não aparecia e só fustigava e então, na força da
religião, alinharam-se os sacerdotes e os leigos no abrigo do Santíssimo
e aspergiram água benta sobre o povo amedrontado e o carrasco começou
a torcer a clava que por sua vez torcia e retesava o fio que me sufocava...
- Que coisa! Que coisa! - exclamava o Tuquinha.
- Aí a terra cuspiu o fogo de todos os borralhos, que saiu zunindo pelas
rachaduras que se haviam aberto no solo... E das portas das casas e das aberturas
da paróquia e pela santa-fé das coberturas, brotaram as labaredas
comburentes que não queimavam... E da lagoa brotou um trovão e
se abriu a água e, lá do fundo, do fundo daquele mar de lodo vermelho,
que saiu se arrebentando pelos barrancos, em borbotões, surgiu a Teiniaguá,
enorme, acima das copas das árvores... Acima das torres dos sinos...
E veio na nossa direção... Na minha, na dos padres santos, na
do algoz que me sufocava... E o povo de guaranis que era simples, botou a berrar
para que me libertassem, pois que iam as roças minguar, as tetas secar
o leite, os homens perder a tenacidade, as crianças a pureza do batismo...
Os cavalos extraviar... E os padres, os padres velhos e sabidos, que já
haviam feito muito exorcismo e já haviam afastado das gentes simples
muita coisa ruim, sentiram as forças espirituais mermarem e se afastaram,
de cabeças baixas, em direção do povoado e atrás
deles foi o carrasco, foram os guardas armados que me haviam conduzido até
o cadafalso e foi também o povo rude e aparvalhado, sem olhar para trás...
- Então escapaste?
- Não! Aí é que começou o meu sortilégio...
Aí é que começou...
- Benza Deus!
- Livre do vil garrote, acompanhei a Teiniaguá... Fui no rastro do seu
cheiro... Nas pegadas do seu corpo saboroso... Por castigo para aquelas gentes
orientais, ela cerrou as gretas das cavernas que escondiam os tesouros do lado
oeste do grande Uruguai e vadeamos para o nascente, tomando o caminho para o
Cerro do Jarau, que ficou sendo o depositário das riquezas das salamancas
do mundo inteiro.
- Então enricaste! - perguntou o gaudério.
- Escuite... - respondeu a criatura - Escuite... Por duzentos anos aprendi as
sabedorias árabes e tenho tratado de fazer feliz a alma dos homens poucos
que sabem bem que é diferente mandar e ser mandado... Nunca mais dormi
um único sono nem nunca mais bebi um único gole ou comi o que
quer que fosse até que te encontrei... Passaram-se as décadas
e eu trilhava e retrilhava os caminhos das cavernas escuras, pisando ouro em
pó e vendo as montanhas de tesouros que vieram dos reinos de Castela
e Aragão ou do longínquo México ou ainda das Minas Gerais...
Olhei tanto até que enfarei por não poder usar nem gastar... E
desde então só me tem sido permitido acompanhar os homens de alma
rija e tranquilo coração que têm vindo em busca desta
Salamanca que tornei famosa...
- Então é verdade que outros vieram antes de mim?
- Verdade! Alguns poucos valentes que tiveram a coragem de enfrentar as profundezas
das rochas e arrostar os perigos, estes entraram atrás dos tesouros...
- Entraram e saíram?
- Não... A maioria deixou resgate de si mesmos para a nossa liberdade
que hay de chegar um dia... E se pereceram, foi porque vieram com cobiça
ou vícios ou pior ainda, ódios e nenhum foi como tu, que me saudaste
três vezes e mencionaste o Cristo crucificado...
- Nem o Blau? - perguntou o índio velho.
- Blau?
- Sim, o Blau Nunes, tropeiro pobre como os frades franciscanos que, conforme
li, arrostou os perigos do cavername e conseguiu sair...
- Ah, agora lembro!... - disse a criatura - O Blau... Este esteve aqui uma feita,
saudou-me como tu... Entrou no labirinto das cavernas e acabou saindo mais pobre
do que entrara porque queria mais do que podia...
- E o dobrão de ouro?
- Ele o devolveu porque não lhe trouxe sorte e ao final, todos se afastaram
dele...
- Entendo...
- Mas agora é tua vez... Três vezes me citaste o Cristo e, depois
de tanto esperar, chegou a hora da minha liberdade... Entra na capororoca de
onde eu saí e encontrarás a furna escura e cheia de mistérios
e de perdições. Governa o teu pensamento e mantém a língua
presa, pois que é o pensamento dos homens que os faz ficar acima de todos
os seres e é a língua maldita que os põe a perder... Vai!
Entra com a alma forte e o coração sereno...
- O amigo tem certeza que quer mesmo que eu entre? - perguntou
o Tuquinha, para que a assombração confirmasse.
- Tenho!
E dito isso, levantou-se de perto do braseiro que já havia morrido e desapareceu no meio da noite. O gaúcho ficou solito... Solito.
Lançou um olhar de despedida para o Malacara, largou sobre ele o poncho, para protege-lo do frio, fez o pelo-sinal e avançou em direção
da reboleira de onde o sacristão surgira e deparou-se com a boca negra
da toca que estava ali, mas não estava. Explico: O gaudério conhecia
os campos do Basílio como conhecia a palma da mão e conhecia o
ventre da viúva e sabia que ali não havia greta, nem caverna,
nem nada, porque as gretas e as cavernas da lenda ficavam para as bandas dos
Sete Povos. Mas havia. Por obra do Diabo ou de Deus, havia. Como não
era homem de recuar, foi entrando boca à dentro, cuidando as enredadeiras
que havia no chão. Era um corredor de pedras a pique, escavadas pela
natureza e por ele foi andando e dando voltas e mais voltas e abrindo com o
peito os espinheiros e mantendo os ouvidos surdos para as lamúrias e
para os convites que em baixa voz murmuravam as almas daqueles que haviam entrado
antes dele e de lá não haviam logrado escapar e ainda pelejavam
entre aquelas paredes frias. Arrostou feras que o desafiaram e deixou-as para
trás porque ia de coração sereno. E o fogo que sobre ele
se despejava em vigorosas labaredas também deixou para trás e
foi indo e indo, sem parar... Encontrou, mais adiante, um bando de anões,
mas deixou-os para trás, assim como as formosas donzelas que o quiseram
seduzir e continuou enfrentando os perigos todos, em número de sete,
porque ia de alma forte e de coração sereno.
E logo que se cumpriu a sétima prova, surgiu-lhe por diante uma figura
de cara branca e triste que provavelmente lhe viera atrás por aquele
caminho que percorrera e tomando-lhe da mão, conduziu-o até uma
velha megera, que disse:
- "Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei... Paisano, escolhe!
Para ganhar a parada em qualquer jogo... De naipes, que as mãos ajeitam...
De dados, que a sorte revira... De cavalos, que se cotejam... De ossos, que
se sopesam... Da rifa... Queres?"
- Não acredito em jogo nem em jogos de azar... Nas pencas, safo que sou,
conheço o vencedor pela luz do olhar... Não!
- "Para a viola tocar e cantar... Amarrando nas suas cordas o coração
das mulheres que te escuitarem e que hão de sonhar contigo, e ao teu
chamado irão - obedientes, como aves varadas pelo olhar das cobras -
deitar-se entregues ao dispor dos teus beijos, ao apertar dos teus braços,
ao resfolegar dos teus desejos... Queres?"
- Eu tenho a mulher que quero e o amor que me embala as horas e me faz passar
os anos... Não há mais ninguém que eu queira... Não!
- "Para conhecer as ervas, as raízes, os sucos das plantas e assim
poderes curar os males dos que tu estimares ou desfazer a saúde dos que
te aborrecerem... E saber simpatias fortes para dar sonhos ou loucura... Para
tirar a fome, relaxar o sangue, gretar a pele e espumar os ossos... Ou para
ligar apartados, achar cousas perdidas, descobrir invejas... Queres?"
- Não creio em coisas que não sejam pela vontade de Deus, nem
para os amigos, nem para os inimigos. Não!
- "Para não errar golpe - de tiro, lança ou faca - em teu
inimigo, mesmo no escuro ou na distância, parado ou correndo, destro ou
prevenido, mais fortes que tu ou astuciosos... Queres?"
- Contra um desafeto bato-me de frente, em igualdade de condições.
Não!
- "Para seres mandão, no teu distrito, e que todos te obedeçam
sem resmungos... Seres língua com os estrangeiros e que todos te entendam...
Queres?"
- Nunca gostei que me respeitassem pela força e sim pela convicção
das minhas ideias e das minhas ações... A única
fala estrangeira que me interessa e a castelhana irmã que eu já
falo e entendo. Não!
- "Para seres ricaço de campo e gado e manadas de todo o pelo...
Queres?"
- Sou o guardião dos campos do meu amigo, o deputado e por sermos amigos,
seus campos e seu gado meus também são. Não!
- "Para fazeres pintura em tela; versos harmoniosos; novelas de sofrimento;
autos de chocarrice; musicas de consolar; lavores no ouro; figuras no mármore...
Queres?"
- A arte é para os artistas que têm sensibilidade e saber. Não!
- "Pois que em sete poderes te não fartas, nada te darei, porque
do que foi prometido nada quiseste, vai-te!"
O índio velho, ao contrario do Blau Nunes, que muito queria a moça
Teiniaguá encantada porque era dona de tudo, saiu arrastando um passo
depois do outro e voltou pelos mesmos corredores gelados e escuros, agora vazios
de vozes, de imagens, de choros e de sussurros e deu voltas e contra-voltas
e acabou por dar na boca da furna.
Saltou fora da urna, que de imediato se fechou e desapareceu e cruzando a capororoca,
montou no Malacara e ia dar de rédeas, quando o Sacristão lhe
surgiu pelo lado, branco e triste e estendendo-lhe a mão em despedida,
disse?
- Não quiseste nada porque mantiveste a alma forte e o coração
sereno... Tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem segurar
a língua... Não sei se foi acertada ou não a tua escolha...
Mas como és pobre e isso te aflige e aflige ainda mais a tua mulher e
a tua família, dar-te-ei, como presente, esta moeda de ouro que está
vazada pelo condão mágico. Ela te dará tantas outras quantas
quiseres, mas sempre de uma em uma. Leva-a em lembrança deste amigo que
por três noites seguidas te encontrou na reboleira deste mato e provou
da comida e da canha que trouxeste com humildade e bondade...
Dizendo isto, aproximou-se e, tomando a mão do gaúcho, na sua palma, marcada de profundas cicatrizes, depositou a lembrança.
O Tuquinha olhou para a moeda que poderia significar a grande mudança
da sua vida, sopesou-a e, devolvendo-a ao Sacristão, disse:
- Hei de lembrar-me sempre de ti, mesmo não levando a moeda que me ofereces...
Antes a minha pobreza de ouro e de prata, mas rodeado dos que amo; da minha
mãe velha e da avó que é ainda mais; dos tios queridos;
dos meus irmãos amados e cunhados que também são irmãos;
das filhas gentis e amorosas que se vão encaminhando na vida e serão
melhores que eu; da china amiga que vem passando hora ruim, mas que sei que
me quer bem e dos seus irmãos e parentes, que a mim me querem igual;
dos netos e dos sobrinhos que hão de nos dar continuidade; dos amigos,
que não vejo com frequência, mas que sei estarem lá,
pro causo de necessidade; dos demais parente que conheço ou não;
dos inimigos, que em verdade, não sabem porque o são e de ti,
Sacristão sofredor, que esbugalhaste a vida pelo amor da Teiniaguá
e que agora vives um sofrer eterno, aprisionado nos grotões escuros do
Rio Grande - estes, são o maior tesouro que tenho e que pode alguém
almejar...
E quando a moeda que era a ultima tentação voltou à mão
do amigo
Sacristão, neste mesmo momento, enquanto a pataca de ouro arrodeava ainda,
ouviu-se um imenso estouro que se propagou por léguas e mais léguas,
começando nas coxilhas do Basílio, cortando o Continente de São
Pedro, até o Cerro do Jarau, lá nas bandas do Quarai, fazendo
uma língua de fogo aparecer, e se alteando desde o fundo da terra, trazendo
com ela a fumaça negra dos tesouros todos que queimavam nas cavernas
subterrâneas e neste mesmo momento ainda, o vulto branco que era aquela
assombração com a qual o gaudério se encontrara e de cuja
boca ouvira toda a historia, transformou-se novamente no Sacristão risonho
que fora outrora, no tempo dos padres e dos guaranis e saindo, por sua vez,
do macegal, a velha coroca que oferecera o mundo ao gaúcho, transformou-se
em Teniaguá e a Teniaguá na princesa moura e esta, numa índia
muy linda que deu a mão ao rapaz e desapareceu com ele no meio da noite
para, finalmente, irem viver o seu idílio, agora para todo o sempre,
pois quando fora o Blau, a liberdade só durara o tempo equivalente ao
que ele ficara com o dobrão mágico, mas agora era diferente; não
quisera nada o gaúcho que era bueno e era singelo e assim, por falta
de cobiça e de ganância, quebrara de vez o encanto.
O Tuquinha, deixado solito, desamarrou o Malacara, montou-o e tocou para casa,
onde pretendia dormir ainda o que restava da noite, declinando da companhia
solitária dos pelegos na varanda, no quarto, abraçado na patroa.
(Porto Alegre, 13/Abril/2003)
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