A Garganta da Serpente
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Décima terceira charla:
A Raposa e o Corvo

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

Na décima terceira rodada das fábulas, a honra coube ao grego. La Fontaine, depois do sucesso da noite anterior, recolhera-se à glória e, provavelmente, não voltasse a abrir a boca durante aquela estada. Talvez não para narrar das suas histórias inéditas porque, para outras coisas, talvez abrisse.

Madame voltara a encantar-se com o francês que, além de fazer biquinho para falar o seu idioma pátrio, era de grande sensibilidade, como o demonstravam seus escritos e muito inteligente. Talvez que, com o tempo, não se revelasse um bom amante. Mas continuaria sendo inteligente e afinal, néscios amantes, sabia bem, porque já tivera muitos, havia em qualquer lugar.

Esopo, estava feliz. Fora bem recebido naquela casa onde a hospitalidade era a marca maior. A senhora do capataz, ao seu ver, às vezes passava-se um pouquinho. Primeiro andara a entregar a canjica para o colega. Agora, havia virado o vetor na sua direção e isso o deixava ligeiramente inquieto, porque o marido era uma alma buena e acolhedora e não merecia passar por aquilo e afinal, embora a acolhida, não se importaria, quando chegasse a hora de partir, porque deixariam o casal entre quatro paredes e entregue à sua própria sorte, para que se resolvessem. Ou para que tudo continuasse igual, até que um dia... Bem, até que um dia, a patroa tomasse a estrada, porque ele conhecia bem o tipo e sabia que, mais cedo ou mais tarde, elas tomavam.

O gaudério, sentou à mesa, esparramou as folhas de almaço onde fazia os necessários apontamentos, enumerou os presentes e outras coisas necessárias e perguntou:

- É a sua vez, não é, senhor Esopo?...

O grego concordou que era e começou:

- Na... Na... Narrarei esta noite a fábula da Raposa e do Corvo...

A viúva, que estava ainda sentada ao seu lado, mas esticada na cadeira, tentando alcançar com o pezinho as partes do francês, por baixo da mesa, a quem voltara a endereçar sorrisos e gestos, perguntou:

- E será da mesma raposinha malvada da história de mon amour?

O grego não soube dizer se era ou não e começou:

- A... A... A raposa encontrou o Corvo pousado em um galho, com um pedaço de queijo no bico e, faminta, logo pensou numa forma de enganá-lo e apoderar-se do pitéu...

- Mas que raposinha mais safada!... Parecida comigo... - interferiu a senhora.

- Madame também aprecia queijos? - quis saber La Fontaine que, como bom francês, apreciava.

- Não, bijou... Aprecio bons pitéus e, principalmente, preparadores de pitéus, aos quais devoro de sobremesa...

La Fontaine, que não era nenhum gourmet, desistiu do diálogo e o grego pode prosseguir:

- Mu... Mu... Muito ardilosa, disse: "Como são bonitas as suas plumas, meu amigo..." E... E... Logo a seguir, perguntou: "E a sua voz? Se... Se... Será que é tão bonita também?..."

A madame voltou a interromper:

- Eu também tinha uma bela voz...

Esopo não lhe deu atenção e continuou:

- O... O... O Corvo, com os elogios, ficou todo prosa e abriu o bico para soltar a voz e lá veio o queijo, árvore abaixo, para a boca da Raposa...

O gaúcho não se conteve e elogiou a história:

- Muito bonita, senhor Esopo... Prova, se não me engano, que quem tudo quer, tudo perde, não?

O grego confirmou, com a cabeça, que era isso mesmo e estava ainda gaguejando para ratificar, quando voltou a ser interrompido pela moça:

- Devo confessar, senhor Esopo, que, quando eu cantava, também muitas vezes fui parar na boca alheia... - aí, retificou: - Nos braços, quero dizer...

O capataz encolheu-se com aquela e a moça, vendo que o humilhava, prosseguiu:

- Foi uma época muito boa da minha vida...

Esopo, que quase nunca, por problemas de idioma, entendia as coisas que ela dizia, perguntou:

- A... A... A senhora também recebia elogios, quando cantava?

Ela sorriu e explicou:

- Na verdade, embora eu fizesse parte do coral da repartição, era mais cantada do que cantava e os elogios, mais para o meu desempenho, gemendo de prazer, do que cantando...

O grego, só agora entendendo mais ou menos o que ela dissera, arrependeu-se de ter feito a pergunta e silenciou.

Monsieur, saiu em defesa do dono da casa:

- Madame deve ter sentido na carne então que, quanto mais a adulavam, mais devia cuidar do que era seu, conforme a moral da fábula que acabamos de ouvir, não?

- Para lhe dizer a verdade, mon petit, naquela época, quem não cuidava, era o meu marido... - aí, sorrindo, explicou: - Que em consequência, como dizia um amigo comum, trazia a cabeça sempre cobertinha de judiarias...

- De maus pensamentos? - perguntou o francês, que não entendera também o sentido da expressão que ela utilizara.

Foi a vez do gaudério responder:

- Não, senhor La Fontaine, de guampas mesmo...

O francês considerou o que ouvira, de um e de outro e inclinando-se para perto do capataz, segredou-lhe:

- Se monsieur vier comigo para a França, deste mal, estará livre...

Madame que, pela prática, tinha ouvidos muito afinados para ouvir segredos e palavras murmuradas à meia-voz, pela mesma experiência também, garantiu:

- Monsieur vai me desculpar mas, deste, ninguém está livre!...

La Fontaine não quis entrar em liça verbal e limitou-se, com humor e agudez de espírito, dando o caso por encerrado, a profetizar:

- Aux grand maux, grands remèdes...

Mas a madame gostava de uma contenda e não se deu por vencida:

- Posso ser uma doença, monsieur, mas tenho convicção de que todos os que provaram, adoeceram com prazer e outros tantos, teriam vendido a alma ao Diabo por, deste mal, terem igualmente padecido...

O gaúcho, achando que a conversa já fora longe demais, interrompeu:

- Estamos muy lejos do assunto que nos reúne em tão agradável tertúlia, senhores...

A viúva ficou espumando de raiva por não poder dar uma lição naquele francês que ela até já estava achando que nem mesmo era macho de verdade, mas aquiesceu ao chamamento do marido e calou-se.

Esopo, que era o água morna das charlas, perguntou:

- Ma... Ma... Madame já leu a Odisseia?

- Se eu já li o quê?...

- A... A... A Odisseia, madame?...

Ela pensou um pouquinho para tentar lembrar e, não conseguindo, respondeu:

- Acho que não, senhor Esopo...

- Pe... Pe... Pena, madame, pois é um grande livro...

Agora foi a vez do marido, que já o lera, várias vezes:

- De qualquer sorte, senhor Esopo, a querida não faz o gênero...

- Nã... Nã... Não o entendi, senhor Tuquinha...

O gaúcho explicou:

- De ficar esperando... Bordando, enquanto o marido ficava vinte anos fora de casa...

Monsieur acrescentou, irônico:

- Bordar, madame certamente muito bordaria...

O capataz não gostou da observação, porque afinal, boa ou ruim, a mulher era sua e observou, com jeito e com cautela, para não ofender o visitante:

- Senhor La Fontaine, com todo o respeito, o senhor não acha que se a madame é puta, o problema é meu?

Monsieur concordou que fora longe demais e desculpou-se:

- Pardon, monsieur...

O gaudério aceitou as escusas, porque, também, a moça não era mesmo flor que se cheirasse e não valia à pena um estremecimento com tão ilustre cidadão por sua causa e continuou:

- Voltando à vaca fria... Hay algo que alguém queira acrescentar a charla?

O grego, que já abrira a boca demasiadas vezes naquela noite e quase sempre dera bola fora, declinou da oportunidade.

Monsieur La Fontaine pensou em dizer alguma coisa, mas o silêncio, sábio, acabou prevalecendo.

O gaúcho olhou para a patroa, que ainda estava amuada e perguntou:

- E tu, querida?...

A chinoca pensou e repensou e, como safadeza era o seu forte e sapiência não, lascou:

- Essa tal de Odisseia de que o senhor Esopo falou não é aquela história que fala do cavalo de pau?...

O capataz concordou:

- É verdade... Dedica uma parte à tomada de Troia e ao ardil usado pelos gregos... Mas por que a pergunta, querida?...

- Pitéu... Eu gostei do termo...

- E o que tem a ver pitéu com gregos e com cavalos de madeira?...

- É que eu estava a pensar se, enquanto vocês continuam aqui na cozinha a perder tempo com essas fábulas bobas, eu não encontraria, lá no quarto, um cavalo desses, com o bojo cheio de soldados bonitos e viris que estivessem sequiosos por lambuzar-se com um pitéu como eu...?

(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo )

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