Na terceira noite, dos autores, o primeiro a assomar foi Esopo. La Fontaine,
segundo ele, estava muito ab... aba... abatido e ad... ad... adoentado.
Para o gaúcho, era um causo típico, chamado de "ter medo,
mas não ter vergonha", por sinal, doencinha muy da choldra e de
fácil cura, com remédio cuja prescrição e fórmula
era, há miles e miles de tempo, passada de pai para filho, na família
do capataz e em outras tantas, das melhores do Rio Grande e que consistia, via
de regra, de uma bela coça de relho, variando, de vivente para vivente,
apenas no montante das relhadas.
Mas, - e sempre existe um "mas", - o enfermo era de terra estranha
e cultura mais estranha ainda e talvez não viesse a entender bem o benefício
da fórmula, nem o milagre da cura. Ou quem sabe, na verdade, não
quisesse entender ou curar-se.
Opinião diversa, no entanto, tinha a chinoca, que continuava buscando
pleito, mesmo na noite seguinte, acusando o Lindinho de se haver comportado
mal frente a tão ilustres criaturas.
Como o gaudério andava pelas caronas, já não fazia muita
diferença a opinião dela. Era pena, pois as tertúlias estavam
apenas começando e se lograssem chegar a bom termo, muy elucidativas
e aclaradoras seriam, pois que os convivas, tirante também as suas dificuldades,
- e estava latente serem principalmente do francês contra o grego - decerto,
grande contribuição trariam para as cacholas de poucas luzes do
casal e de alguns viventes da vila do Basílio, uma vez que sapiência
é uma cousa que não se guarda só para si e que acaba se
espraiando e se esparramando, como mancha de querosene, por aqui e por ali,
chegando àqueles que dela carecem. E carecem, muito, porque às
ideias, a luz; assim como ao estomago, a boia; ao corpo, o lenitivo
de uma cobertura quando necessita ou ao coração, uma palavra de
afeto ou um gesto de carinho, muita falta fazem.
Graças à viúva, que era despachada para essas coisas de
tratar com os estranhos e que foi até aos aposentos onde o francês
se encontrava, travando com ele longa palestra, que durou mais de hora, o enfermo,
por fim, concordou em participar da charla daquela noite e deu o ar da graça,
devidamente agasalhado em um robe de seda bordô e apoiado gentilmente
pela senhora, com as maçãs do rosto da mesma cor do chambre do
convidado. Ou talvez ainda mais escarlates.
- Monsieur concordou em participar, desde que não seja ele, esta
noite, a narrar outra fábula... - disse ela, a guisa de explicação.
Esopo prontificou-se a substitui-lo:
- E... E... Eu narro!
Finalmente todos tomaram assento, ao redor da mesa da cozinha e a
reunião, com considerável e justificável atraso, pôde
empezar.
- Que fábula o senhor vai contar esta noite? - quis saber a moça.
O grego pensou um pouquinho, visto que havia sido apanhado no
contrapé, por não ser aquela a sua noite de hablar e logo respondeu
pois, hay de aclarar-se, histórias da própria pena era o que não
lhe faltavam:
- Vo... Vo... Vou contar a do feixe de gravetos...
O gaúcho, que conhecia a fábula, e a verdade que ela encerrava,
exultou de contentamento, o que por si só já foi uma grande redundância,
uma vez que exultar significa exatamente alegrar-se ao extremo e portanto, exultar
de contentamento é mais ou menos como se alegrar de tanta felicidade.
- Somos todos ouvidos... - autorizou o capataz a que a narrativa
tivesse início. E teve. Ou melhor: Te... Te... Teve.
- U... U... Um fazendeiro tinha muitos filhos que viviam brigando... Nã...
Nã... Não havia jeito de conseguir mantê-los em paz e assim,
harmonizar a família...
- Isso é muito comum... - comentou a viúva e o narrador
prosseguiu, após nova crise de gagueira, que por sinal, só lhe
acometia no início das orações.
- U... U... Um dia, tomou de um feixe de gravetos e pediu a cada um dos filhos
que o quebrasse, de encontro aos joelhos...
- Ora, - interferiu La Fontaine, que se estava recuperando - Quem não
quebraria um feixe de simples gravetos?...
A chinoca lançou-lhe um olhar abrasador, carregado de paixão por
ver no escritor agora, além da sapiência, que já conhecera,
também a masculinidade da força, exclamando:
- Monsieur La Fontaine tem razão, deve ter sido a coisa mais fácil
para os robustos e viris rapazes!...
O gaudério trocou as orelhas e olhou para o grego, que interrompera,
educadamente a narrativa, para ouvir o disparate, recomendando:
- Continue...
- To... To... Todos tentaram e não conseguiram...
- Não? - voltou a interromper a moça.
- Nã... Nã... Não... - assegurou-lhe o orador, prosseguindo
- O... O... O fazendeiro então tomou o feixe das mãos deles, desamarrando-o
e, um a um, quebrou os gravetos...
- Ah! - tornou a exclamar a moça - Assim não vale!
- Deixem o homem contar a história! - exasperou-se o gaúcho.
E Esopo continuou:
- "Ó... Ó... Olhem..." - disse-lhes o pai - "S...
S... Se vocês se
unirem, não há inimigo que os possa vencer, ao passo que,
sempre às turras, só têm a perder..."
- Essa eu não entendi!... - disse a moça, que embasbacada a olhar
para a peruca lilás que o francês envergava, perdera o fio da meada:
O Tuquinha explicou, com pouca paciência, por ter de dizer o óbvio:
- Resumindo, minha amada, quer dizer que a união faz a força!
- I... I... Isso mesmo! - aquiesceu o autor, satisfeito por encontrar,
naquela diminuta plateia, pelo menos um ouvinte mais esclarecido e interessado.
- Mas isso é bobagem!... - argumentou o francês - Não podem
meia dúzia de gravetos serem inquebrantáveis!...
- É... É... É uma metáfora... - justificou o grego.
- E muito bem elaborada, - lembrou o Tuquinha - tanto que miles de tempos depois,
ainda é lembrada...
- Mas eu não lembrava, Lindinho! E o senhor, monsieur?
O francês sacudiu a cabeça, para um lado e para o outro, indicando
que não e a moça, satisfeita com o esquecimento generalizado,
perguntou:
- E quem lembrou?...
- Muita gente! - explicou o gaúcho - Os antigos romanos, por exemplo,
tinham por símbolo o fascio, que era um feixe de varas amarrado em torno
de uma machadinha que os lictores carregavam...
- Mas isso, nos tempos de antanho! - exclamou a moça, com desdém.
Esopo e La Fontaine acompanhavam a discussão, com os olhos
voltados, ora para um, ora para outro dos interlocutores e embora o grego não
tomasse partido nem deste, nem daquele, o francês, visivelmente, vibrava
com as respostas da moça.
- Mais recentemente serviu de símbolo ao fascismo, quando foi adotado
por Mussolini...
- Mussolini? - perguntou a moça - O Lindinho está se referindo
àquele homem que disse: "Do alto desta piranha séculos de
história nos contemplam!"?
O gaudério quase morreu de vergonha, corrigindo, amigavelmente:
- Não querida, este foi Napoleão, quando invadiu o Egito... E
não foi do alto de uma piranha e sim de uma pirâmide!
- Ué, eu sempre achei que fora de uma piranha... - insistiu a moça.
- Não foi, não... E ao que me conste, nem há piranhas no
Egito...
A donzela deu um sorrisinho maroto e meteu os pés pelas mãos:
- Não? Mas há em todos os lugares...
- Não, meu amor, piranhas, só nos países tropicais...
A moça fez um muxoxo de desdém, antevendo a vitória e perguntou:
- A França é um país tropical, por acaso?
- Não... - respondeu o gaúcho - Não é, não...
- Pois então? - voltou ela a insistir.
- Pois então, o quê? - perguntou agora ele, que não entendera
bem
a extensão da pergunta que ela fizera.
- Na França há muitas piranhas, ora!
- Só se for em algum museu...
- Não! - voltou a moça a objetar - Estão em todas as esquinas!
- Essa eu não entendi... Como assim, nas esquinas?
- Estando... Quando eu estive lá, com o finado, as piranhas se agarravam
a ele em todas as esquinas, igual àquelas lá de Porto Alegre,
das ruas Voluntários da Pátria e Garibaldi, o que prova, que piranhas
existem em qualquer lugar!
- Mas não era desse tipo de piranha que eu achava que tu estavas falando,
querida...
- Ah, não? De qual, então?
- Do peixe... Daquele que habita os rios da Amazônia e do Mato Grosso
e que agora, até no Ibicuí hay...
- Não!... Era de piranhas, mesmo...
- Mas como alguém pode falar uma coisa dessas quando está... Está...
Está inseminando? - perguntou o gaudério.
- Ora, é a coisa mais fácil!... Muitos homens, quando estavam
fazendo isso comigo, disseram coisas belíssimas... Então, por
quê este tal de Napoleão não o poderia ter dito também?
O gaúcho rezou para que os estrangeiros não tivessem entendido
bem
o diálogo e a seguir, chamou novamente os homens às falas, sugerindo:
- Acho que podemos voltar ao tema...
- Mas não há mais o que dizer... - observou La Fontaine, de mau
humor para lá de palpável.
O capataz voltou-se para o orador e perguntou:
- Senhor Esopo, há ainda algo a acrescentar?
- N... Nã... Não... Isso é tudo...
Então acho que podemos ir para a cama, não? - sugeriu o gaúcho,
dando a entender que havia terminado a tertúlia e a prenda, que estava
ainda com a cabeça na Lua, perguntou, entre esperançosa e abismada:
- Todos para a mesma?!...
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo )
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