A Garganta da Serpente
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Terceira charla:
O feixe de gravetos

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

Na terceira noite, dos autores, o primeiro a assomar foi Esopo. La Fontaine, segundo ele, estava muito ab... aba... abatido e ad... ad... adoentado.

Para o gaúcho, era um causo típico, chamado de "ter medo, mas não ter vergonha", por sinal, doencinha muy da choldra e de fácil cura, com remédio cuja prescrição e fórmula era, há miles e miles de tempo, passada de pai para filho, na família do capataz e em outras tantas, das melhores do Rio Grande e que consistia, via de regra, de uma bela coça de relho, variando, de vivente para vivente, apenas no montante das relhadas.

Mas, - e sempre existe um "mas", - o enfermo era de terra estranha e cultura mais estranha ainda e talvez não viesse a entender bem o benefício da fórmula, nem o milagre da cura. Ou quem sabe, na verdade, não quisesse entender ou curar-se.

Opinião diversa, no entanto, tinha a chinoca, que continuava buscando pleito, mesmo na noite seguinte, acusando o Lindinho de se haver comportado mal frente a tão ilustres criaturas.

Como o gaudério andava pelas caronas, já não fazia muita diferença a opinião dela. Era pena, pois as tertúlias estavam apenas começando e se lograssem chegar a bom termo, muy elucidativas e aclaradoras seriam, pois que os convivas, tirante também as suas dificuldades, - e estava latente serem principalmente do francês contra o grego - decerto, grande contribuição trariam para as cacholas de poucas luzes do casal e de alguns viventes da vila do Basílio, uma vez que sapiência é uma cousa que não se guarda só para si e que acaba se espraiando e se esparramando, como mancha de querosene, por aqui e por ali, chegando àqueles que dela carecem. E carecem, muito, porque às ideias, a luz; assim como ao estomago, a boia; ao corpo, o lenitivo de uma cobertura quando necessita ou ao coração, uma palavra de afeto ou um gesto de carinho, muita falta fazem.

Graças à viúva, que era despachada para essas coisas de tratar com os estranhos e que foi até aos aposentos onde o francês se encontrava, travando com ele longa palestra, que durou mais de hora, o enfermo, por fim, concordou em participar da charla daquela noite e deu o ar da graça, devidamente agasalhado em um robe de seda bordô e apoiado gentilmente pela senhora, com as maçãs do rosto da mesma cor do chambre do convidado. Ou talvez ainda mais escarlates.

- Monsieur concordou em participar, desde que não seja ele, esta noite, a narrar outra fábula... - disse ela, a guisa de explicação.

Esopo prontificou-se a substitui-lo:

- E... E... Eu narro!

Finalmente todos tomaram assento, ao redor da mesa da cozinha e a

reunião, com considerável e justificável atraso, pôde empezar.

- Que fábula o senhor vai contar esta noite? - quis saber a moça.

O grego pensou um pouquinho, visto que havia sido apanhado no

contrapé, por não ser aquela a sua noite de hablar e logo respondeu pois, hay de aclarar-se, histórias da própria pena era o que não lhe faltavam:

- Vo... Vo... Vou contar a do feixe de gravetos...

O gaúcho, que conhecia a fábula, e a verdade que ela encerrava,

exultou de contentamento, o que por si só já foi uma grande redundância, uma vez que exultar significa exatamente alegrar-se ao extremo e portanto, exultar de contentamento é mais ou menos como se alegrar de tanta felicidade.

- Somos todos ouvidos... - autorizou o capataz a que a narrativa

tivesse início. E teve. Ou melhor: Te... Te... Teve.

- U... U... Um fazendeiro tinha muitos filhos que viviam brigando... Nã... Nã... Não havia jeito de conseguir mantê-los em paz e assim, harmonizar a família...

- Isso é muito comum... - comentou a viúva e o narrador

prosseguiu, após nova crise de gagueira, que por sinal, só lhe acometia no início das orações.

- U... U... Um dia, tomou de um feixe de gravetos e pediu a cada um dos filhos que o quebrasse, de encontro aos joelhos...

- Ora, - interferiu La Fontaine, que se estava recuperando - Quem não quebraria um feixe de simples gravetos?...

A chinoca lançou-lhe um olhar abrasador, carregado de paixão por

ver no escritor agora, além da sapiência, que já conhecera, também a masculinidade da força, exclamando:

- Monsieur La Fontaine tem razão, deve ter sido a coisa mais fácil para os robustos e viris rapazes!...

O gaudério trocou as orelhas e olhou para o grego, que interrompera,

educadamente a narrativa, para ouvir o disparate, recomendando:

- Continue...

- To... To... Todos tentaram e não conseguiram...

- Não? - voltou a interromper a moça.

- Nã... Nã... Não... - assegurou-lhe o orador, prosseguindo - O... O... O fazendeiro então tomou o feixe das mãos deles, desamarrando-o e, um a um, quebrou os gravetos...

- Ah! - tornou a exclamar a moça - Assim não vale!

- Deixem o homem contar a história! - exasperou-se o gaúcho.

E Esopo continuou:

- "Ó... Ó... Olhem..." - disse-lhes o pai - "S... S... Se vocês se

unirem, não há inimigo que os possa vencer, ao passo que,

sempre às turras, só têm a perder..."

- Essa eu não entendi!... - disse a moça, que embasbacada a olhar

para a peruca lilás que o francês envergava, perdera o fio da meada:

O Tuquinha explicou, com pouca paciência, por ter de dizer o óbvio:

- Resumindo, minha amada, quer dizer que a união faz a força!

- I... I... Isso mesmo! - aquiesceu o autor, satisfeito por encontrar,

naquela diminuta plateia, pelo menos um ouvinte mais esclarecido e interessado.

- Mas isso é bobagem!... - argumentou o francês - Não podem meia dúzia de gravetos serem inquebrantáveis!...

- É... É... É uma metáfora... - justificou o grego.

- E muito bem elaborada, - lembrou o Tuquinha - tanto que miles de tempos depois, ainda é lembrada...

- Mas eu não lembrava, Lindinho! E o senhor, monsieur?

O francês sacudiu a cabeça, para um lado e para o outro, indicando

que não e a moça, satisfeita com o esquecimento generalizado, perguntou:

- E quem lembrou?...

- Muita gente! - explicou o gaúcho - Os antigos romanos, por exemplo, tinham por símbolo o fascio, que era um feixe de varas amarrado em torno de uma machadinha que os lictores carregavam...

- Mas isso, nos tempos de antanho! - exclamou a moça, com desdém.

Esopo e La Fontaine acompanhavam a discussão, com os olhos

voltados, ora para um, ora para outro dos interlocutores e embora o grego não tomasse partido nem deste, nem daquele, o francês, visivelmente, vibrava com as respostas da moça.

- Mais recentemente serviu de símbolo ao fascismo, quando foi adotado por Mussolini...

- Mussolini? - perguntou a moça - O Lindinho está se referindo àquele homem que disse: "Do alto desta piranha séculos de história nos contemplam!"?

O gaudério quase morreu de vergonha, corrigindo, amigavelmente:

- Não querida, este foi Napoleão, quando invadiu o Egito... E não foi do alto de uma piranha e sim de uma pirâmide!

- Ué, eu sempre achei que fora de uma piranha... - insistiu a moça.

- Não foi, não... E ao que me conste, nem há piranhas no Egito...

A donzela deu um sorrisinho maroto e meteu os pés pelas mãos:

- Não? Mas há em todos os lugares...

- Não, meu amor, piranhas, só nos países tropicais...

A moça fez um muxoxo de desdém, antevendo a vitória e perguntou:

- A França é um país tropical, por acaso?

- Não... - respondeu o gaúcho - Não é, não...

- Pois então? - voltou ela a insistir.

- Pois então, o quê? - perguntou agora ele, que não entendera bem

a extensão da pergunta que ela fizera.

- Na França há muitas piranhas, ora!

- Só se for em algum museu...

- Não! - voltou a moça a objetar - Estão em todas as esquinas!

- Essa eu não entendi... Como assim, nas esquinas?

- Estando... Quando eu estive lá, com o finado, as piranhas se agarravam a ele em todas as esquinas, igual àquelas lá de Porto Alegre, das ruas Voluntários da Pátria e Garibaldi, o que prova, que piranhas existem em qualquer lugar!
- Mas não era desse tipo de piranha que eu achava que tu estavas falando, querida...

- Ah, não? De qual, então?

- Do peixe... Daquele que habita os rios da Amazônia e do Mato Grosso e que agora, até no Ibicuí hay...

- Não!... Era de piranhas, mesmo...

- Mas como alguém pode falar uma coisa dessas quando está... Está... Está inseminando? - perguntou o gaudério.

- Ora, é a coisa mais fácil!... Muitos homens, quando estavam fazendo isso comigo, disseram coisas belíssimas... Então, por quê este tal de Napoleão não o poderia ter dito também?

O gaúcho rezou para que os estrangeiros não tivessem entendido bem

o diálogo e a seguir, chamou novamente os homens às falas, sugerindo:

- Acho que podemos voltar ao tema...

- Mas não há mais o que dizer... - observou La Fontaine, de mau

humor para lá de palpável.

O capataz voltou-se para o orador e perguntou:

- Senhor Esopo, há ainda algo a acrescentar?

- N... Nã... Não... Isso é tudo...

Então acho que podemos ir para a cama, não? - sugeriu o gaúcho,

dando a entender que havia terminado a tertúlia e a prenda, que estava ainda com a cabeça na Lua, perguntou, entre esperançosa e abismada:

- Todos para a mesma?!...

(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo )

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