Na sexta noite, assim como vinha acontecendo, desde que os viajantes haviam
chegado à fazenda, reuniram-se para a propos de table. De um lado,
o gaúcho e Esopo. Do outro, a viúva e La Fontaine.
Evidentemente, que a ida até a cidade do Herval fora cancelada por óbvios
e preventivos motivos e a donzela, que ousara sonhar ficar a sós com
monsieur, ficara a ver navios. Provavelmente, teria ficado a vê-los,
mesmo que a viagem tivesse acontecido, pois ao que se dizia, monsieur não
era muito apreciador do sexo oposto a não ser em público, quando
nada podia acontecer. Na intimidade, corria boato que gostava mesmo era de les
garçons. Mas o gaudério sabia que a mulher e o conviva eram
gens de même farine e não queria patrocinar nenhum jour
de gras dentro da própria casa.
Foi assim que se apresentaram para a charla; o francês, como se nada tivesse
acontecido e a moça, como se houvesse perdido o que havia de melhor.
E talvez perdera. Ou,talvez, não. Nunca saberia.
- Pe... Pe... Pensei em contar-lhes uma história muito interessante esta
noite... - iniciou o grego, para a surpresa de todos, uma vez
que acanhado e tímido, quase nunca se pronunciava.
O gaudério, que achava as fábulas de Esopo infinitamente superiores
às de La Fontaine, embora contra a vontade, argumentou:
- O senhor La Fontaine ainda não nos brindou com nenhuma narrativa, exceto
a da Cigarra e da Formiga...
- Que para mim, - interrompeu a donzela - foi a mais lindinha de todas!...
Os olhares cravaram-se no francês, que se fez de difícil, sugerindo:
- Esopo já está com a língua solta... Deixemos que ele
conte outra das suas historietas...
- Mas a palavra, por direito, é sua... - disse o gaúcho.
La Fontaine tirou a caixinha de rapé do bolso do colete, aspirou e espirrou
três vezes, antes de responder:
- Vamos ouvir Esopo...
O gaúcho, que tinha verdadeira repulsa por gente que se fazia de rogada,
não voltou a insistir, entregando a palavra ao grego, que iniciou:
- Vo... Vo... Vou contar-lhes a história do menino que mentia...
- Ah, então não será uma história de bichinhos?
- perguntou a senhora, que tinha fascinação por animais.
- Nã.... Nã... Não, senhora... - respondeu Esopo, continuando:
- U... U... Um pastor levava, diariamente, o rebanho para fora da sua aldeia...
- Ué, mas se tem rebanho, têm bichinhos! - voltou a interromper
a moça, lançando um olhar inquisidor ao narrador e depois outro,
mais brejeiro, ao francês, que aquiesceu com a propriedade da observação,
dizendo:
- Madame tem razão!...
Como ninguém mais se manifestou, o orador voltou ao tema:
- U... U...
- Um pastor! - ajudou a viúva, que ficava nervosa com a gagueira.
- Nã... Nã... Não, senhora... U... U... Um dia...
La Fontaine fez uma cara de desânimo ante a lerdeza do narrador e a chinoca
aproveitou para subir a mão por sua coxa, sob a mesa, enquanto o fabulista
lutava por continuar:
- U... U... Um dia, quis pregar uma peça nos vizinhos e se pôs
a gritar: "U... U... Um lobo! U... U... Um lobo! So... So... Socorro! Ele
va... Va... Vai comer as minhas ovelhas!"
Monsieur acercou-se do ouvido de madame e ironizou, baixinho:
- Mon petit biscuit, já notou, que até os personagens dele
são gagos?
Madame riu da besteira, aproveitando para levar a mãozinha ainda mais
um pouquinho perna acima do par, que enrubesceu, sob o pó-de-arroz.
O grego, que nada ouviu, prosseguiu:
- O... O... Os vizinhos largaram o trabalho e saíram correndo, para o
campo, para socorrer o menino e encontraram-no às gargalhadas... Do lobo,
nem sombra!
A viúva voltou a observar:
- Que menininho sapeca! - e lançando um olhar de cumplicidade para monsieur,
acrescentou: - Parece alguém que conheço...
- Vá... Vá... Várias vezes ele fez a mesma brincadeira
e quando corriam para ajudá-lo, ele caçoava de todos... U... U...
Um dia, o lobo apareceu mesmo e atacou o rebanho... O menino, morto de medo,
saiu correndo a gritar: "U... U... Um lobo! Um lobo! So... So... Socorro!"
- E os vizinho vieram novamente? - quis saber a dama, que estava prestando mais
atenção na perna do francês do que na história e,
além disso, nunca a tinha lido. Ou se lera, já esquecera.
- Nã... Nã... Não vieram porque acharam que era nova caçoada...
- E o rebanho? - perguntou a madame, horrorizada ante a possibilidade de que
tivesse sido dizimado pelo lobo.
O próprio gaudério, respondeu:
- Ora, querida, o rebanho foi a la gran puta!...
- Que horror, Lindinho! - exclamou ela, tapando a boquinha com a mão.
Não, é claro, a que estava na perna de monsieur, a outra.
- É, sem dúvida, uma bela história. - acrescentou o gaúcho.
- Achei de muito mau gosto! - objetou a moça.
Ao que o capataz, espantado, perguntou:
- De mau gosto? Por que, querida?
- Onde já seu viu deixar que o lobo comesse os pobres bichinhos?
- Ué, mas tu não comes, também?...
A prenda, que finalmente encontrara o que procurava dentro das calças
de La Fontaine, explicou, com ar muy debochado:
- Prefiro comer carne viva!
Monsieur engasgou-se e tossiu diversas vezes.
Quando, finalmente, recuperou-se, perguntou:
- E qual é a moral da história?
Ao que o gaudério, que estava levando tudo muito a sério, explicou,
com ares de entendido:
- Que ninguém acredita, quando um mentiroso diz a verdade!
O autor sacudiu a cabeça, aprovando a interpretação que
o ouvinte dera à fábula e a moça, para impressionar o francês,
confidenciou-lhe ao pé do ouvido:
- Quando eu era casada com meu finado marido, às vezes eu lhe pregava
uma mentirinha...
- Mesmo?... - espantou-se monsieur.
- Mesmo! - confirmou.
- C'est épantant! - exclamou monsieur.
A moça tornou chegar-lhe a boquinha junto ao rosto, prometendo:
- Depois te conto, mon amour!
As orelhas do chirú arderam com aquele tête-à-tête
desavergonhado e resolveu interceder, antes que fosse demasiado tarde:
- Vocês os dois podiam deixar a putaria para outra hora e levar a conversa
mais a sério!...
- Lindinho!... - ofendeu-se a donzela - Que palavrório é esse?
O gaúcho fingiu não ter ouvido a observação e continuou:
- Estávamos ouvindo a fábula contada pelo senhor Esopo e agora
eu gostaria de saber se alguém tem algum comentário inteligente
a fazer?
- Eu tenho! - disse a prenda, faceira por ter algo a acrescentar.
- Pois então, diga...
- O senhor Esopo não disse se o rebanho era de ovelhas, de cabras ou
de porcos!...
O gaudério, que esperava algo de mais profundidade, exasperou-se:
- Nem vem ao caso!... Além disso, de porcos, com certeza, não
era...
- Ué, mas por quê não seria de porcos? - quis saber a moça.
- Porque de porcos, querida, se diz vara!
- Vara, para mim, é outra coisa!...
O marido achou que não seria conveniente perguntar o que ela entendia
por vara, mas ela insistiu, repetindo:
- Vara, para mim, é outra coisa!...
- Querida!... - preveniu-a o capataz.
Ela pensou um pouquinho e tornou a perguntar:
- Lindinho, como é mesmo o nome do lugar onde os porquinhos moram?
- Chama-se pocilga, querida...
Ela olhou bem seriamente para o francês e inquiriu:
- Monsieur tem a sua vara, espero?
La Fontaine inquietou-se na cadeira, mudando de posição e, após
pensar um pouco, respondeu, prudentemente:
- Não, madame!... Não tenho, não...
O gaúcho, que não entendera bem o interesse dela, perguntou-lhe:
- Afinal, querida, que diferença faz se o senhor La Fontaine tem ou não
tem uma vara?
A matraca olhou para o marido, com a expressão mais inocente que poderia
haver no mundo e explicou, brincando com as palavras:
- É que se tivesse, Lindinho, eu ia oferecer a minha pocilga, para que
monsieur pudesse guardá-la!
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo )
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