Chegada a quinta noite, oradores e plateia tomaram assento ao redor
da mesa da cozinha, como se estava tornando hábito.
De um lado, o capataz e o grego. Do outro, a donzela e monsieur La Fontaine,
que parecia haver passado nuit blanche, mais juntinhos do que seria o
normal e decente, trocando cochichos e risinhos que muito incomodavam ao chirú,
que era o marido e a Esopo, que não se conformava em ver que um dos seus
pares se comportava tão mal, fazendo grande desfeita ao homem que os
havia gentilmente convidado para que passassem alguns dias naquela terra tão
linda que era o Rio Grande. Por sorte, La Fontaine não era nenhum Páris,
embora, verdade se dissesse, a viúva em muito superasse Helena e curiosamente,
embora o grego fosse ele, o cavalo, ao que tudo indicava, estava se saindo o
francês.
Madame, que estava se mostrando uma grande touner casaque, retirando
a mãozinha de cima da coxa do escritor francês, iniciou o diálogo,
olhando fixamente para ele:
- Hoje, será mon biscuit a contar uma historinha, não será?
O convidado, devidamente intimado, se retorceu na cadeira, pouco a vontade e
mais uma vez declinou da oportunidade:
- Ainda não estou totalmente restabelecido...
- Coitadinho!... E está aqui nesta cozinha fria ao invés de estar
bem deitadinho e abafado... - compadeceu-se a moça.
Monsieur simulou uma expressão de pobre coitado e o gaúcho
achou que talvez fosse conveniente e necessário apelar mais uma vez para
o grego:
- O senhor não se importaria de usar a palavra novamente?
- C... C... Claro que não... Se... Se... Será um prazer...
- Então está resolvido! - saltou a moça - O senhor Esopo
narra outra história e mon petit bijou fica aninhadinho em mim
que é para não perder o calor do corpo!
O gaudério sacudiu a cabeça, inconformado, enquanto o francês
se refestelava de encontro ao regaço da donzela e voltando-se para o
grego, autorizou, irônico:
- Tout por l'art! É sua a palavra, então...
Esopo selecionou, na memória, uma de suas fábula para aquela noite
e começou a narrativa:
- Vo... Vo... Vou contar-lhes a fábula da Tartaruga e da Lebre...
- Esta é muito boa! - observou o gaúcho.
Ao que o francês deixou escapar:
- Hors de propos!
Ao que a viúva também, por sua vez, chegando-se, sorrateira, até
o ouvido de La Fontaine perguntou, baixinho:
- Hora de propor o quê, monsieur?
- Não é hora de propor nada, sua toupeira, hors de propos quer
dizer fora de propósito!... Inadequado... - exclamou o Tuquinha.
A chinoca murchou um pouco, voltando a aninhar o francês no seu colo,
onde o fecho da blusa se havia aberto um tanto mais e Esopo prosseguiu:
- U... U... Uma lebre, muito cheia de si, estava a caçoar da lerdeza
da tartaruga...
- Que legal!... - exclamou a donzela - Vamos ouvir outra história de
bichinhos!
Feita a observação o grego, que educada e gentilmente interrompera
a narrativa, reiniciou:
- Tã.... Tã ... Tanto fez, que a tartaruga abespinhou-se e desafiou-a
para uma corrida...
- Onde já se viu? - perguntou La Fontaine, desdenhoso - Uma tartaruga
correndo contra uma lebre é um despropósito!...
- Deixem o homem contar! - pediu o gaúcho.
- Ma... Ma... Marcaram a corrida para o dia seguinte e, dada a partida, a lebre
tomou a dianteira e próxima da linha de chegada, deitou-se, tranquila,
para um cochilo...
A viúva cutucou o marido com vara curta:
- Enquanto os cães dormem a caravana passa, não é, Lindinho?
O gaudério voltou a horrorizar-se e corrigiu:
- Enquanto os cães ladram, querida!...
- A... A... A tartaruga continuou a sua marcha, passo após passo e, cruzando
pela lebre, que ia a sono solto, acabou chegando primeiro à linha de
término da carreira...
- Uma beleza de história!... - elogiou o gaúcho, ao que a prenda
completou, com certa ansiedade:
- Por enquanto, está realmente linda, mas vamos deixar o senhor Esopo
concluí-la!
- Ma... Ma... Mas já acabou! - garantiu o orador.
- Acabou? - perguntou a moça, espantada - Mas, então, como é
que ficou?... E a lebre?... E a moral da história?...
O capataz viu-se obrigado a dar uma mãozinha, explicando:
- As fábulas do senhor Esopo não precisam de um final óbvio...
- Ué, mas como que não? - voltou a questionar a donzela.
- Não precisando... Está evidente que a tartaruga ganhou a corrida,
porque a lebre lhe fez pouco caso e considerou-se muito senhora de si...
- Tudo bem, mas qual é a moral?
- A moral intrínseca é que, devagar se vai ao longe!...
- Ah, entendi!... É que nem tu então, não é Lindinho?
- Como eu?... Agora eu é que não entendi...
- No nosso caso... Tu foste chegando de mansinho e ainda estás aqui...
- E o que isto tem a ver com a história?
- É que os outros todos, chegaram de supetão e ficaram uma noite
ou duas apenas... - explicou ela, após o que, emitiu um sonoro
suspiro de saudades daqueles que haviam sido mais apressados.
Monsieur La Fontaine, que às vezes não entendia bem aqueles
diálogos, perguntou:
- E eu, mon petit biscuit?
- O senhor o quê, monsieur?
- Madame acha que sou muito apressado?
A moça ponderou e respondeu:
- Acho que poderias ser um pouco mais...
La Fontaine afundou o rosto no regaço da moça, que gemeu de prazer
e de satisfação e o gaudério continuou, com a propos
de table original:
- Alguém quer fazer um comentário sobre a fábula que acabamos
de ouvir?...
Monsieur pediu a palavra, que lhe foi concedida, iniciando:
- O colega que me desculpe, mas esta história é muito tola!...
Como sempre, foi a hora e a vez do gaúcho defender o grego:
- Não vejo nada de tola, senhor La Fontaine!... Pelo contrário,
é uma grande lição para aqueles que pecam pela soberba...
O grego, agradecido, assentiu, com um movimento de cabeça.
O francês, no entanto, não se deu por vencido:
- De qualquer forma, no mínimo, como madame bem lembrou, falta
um encerramento adequado... Aquilo que em França chamamos de moral da
história...
- A moral da história não é um privilégio nem uma
prerrogativa exclusiva dos franceses, meu amigo... Hay em qualquer parte do
mundo... - voltou a argumentar o capataz, sentindo que se lhe
esquentava o sangue e lhe brotavam ganas de esgoelar o janota.
A viúva, que conhecia os bois com os quais lavrava, observou, pondo água
fria na fervura:
- Lindinho: monsieur La Fontaine está apenas dando a sua opinião,
com a qual, por sinal, concordo plenamente...
O francês, que voltara ao regaço da moça, levantou as mãos,
como a
expressar: eu não disse?!...
O gaudério, que já estava com os testículos enrolados nas
orelhas, objetou, num tom uma oitava acima do normal:
- Fica quieta bicha louca que ao meu ver, as fábulas do senhor Esopo
são muito superiores às suas... - e aí, corrigiu: - À
sua, porque afinal, até agora, só contou uma!
A moça tomou, por sua vez, o partido do francês:
- Lindinho, isso é coisa que se diga!... Monsieur, coitadinho
está adoentado e de... De... De maricas, não tem nadinha!...
O gaudério, que também conhecia a freguesia, resolveu por bem
não
perguntar como é que ela sabia se o historiador era ou não e voltou
à fábula:
- Alguém discorda do sentido da história narrada pelo senhor Esopo
ou da verdade que ela encerra?...
Ninguém quis discordar e a fábula, como atração
da noite, foi dada
por concluída.
A senhora cochichou mais uma vez ao ouvido do francês, que fez sinal com
a cabeça, concordando com o que ela dizia e quebrou o silêncio
que se fizera presente, perguntando:
- Monsieur, Tuquinha...?
O gaúcho, que já estava mais calmo, atendeu-o:
- Pois não, meu senhor?
- Madame informou-me que o senhor pretende levar a mim e ao Esopo para
conhecermos o Herval amanhã...
- É verdade... O senhor gostaria?
- Na verdade, não me sinto ainda completamente recuperado e queria saber
se o senhor não se importaria que eu ficasse em casa fazendo companhia
à madame?...
O gaudério olhou bem para a cara do historiador... Depois, para a da
viúva, que estava com a expressão mais angelical do mundo a apreciar
as pontas dos próprios dedos, para ver se o esmalte não precisava
de algum retoque e por fim, respondeu ao interlocutor, com outra pergunta:
- E na bunada, não vai dinha?
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo )
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