A Garganta da Serpente
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Décima quarta charla:
A raposa, o Urso e o Leão

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

Na décima quarta noite, Esopo iniciou a charla, uma vez que La Fontaine ainda estava vivendo da glória da sua última narrativa. Por sinal, viver da glória de tempos passados era uma constante entre certos presentes daquela tertúlia. Acontece que a viúva, volta e meia, achando-se ligeiramente acima do peso que tivera a vida inteira e não suportando a ideia de que o corpo mudava, com o tempo, estava a maldizer-se e a estudar dietas, na esperança de voltar a ser o que fora e assim, não perder aquilo que mais prazer lhe rendera: o próprio prazer.

- U... U... Um Leão e um Urso encontraram, simultaneamente, um veadinho e se engalfinharam em combate, para ver qual dos dois ficava com a presa...

- Eu aqui a fazer força para emagrecer e o senhor vem contar histórias de comilanças, senhor Esopo!... - explodiu a moça.

- Se... Se... Se a senhora preferir, eu posso contar outra... - disse o grego, desculpando-se e dispondo-se a remediar a situação.

O gaúcho objetou:

- Não, senhor Esopo, senão, terei de refazer a ata!...

O grego fez um gesto, como que a pedir desculpas à senhora, e logo prosseguiu de onde parara:

- U... U... Uma Raposa, que por ali passava, vendo os dois animais extenuados pela luta, apoderou-se do pequeno veado e fugiu com ele entre os dentes e, tanto o Urso quanto o Leão, esgotados e sem forças para levantar-se, murmuraram: "Burros que nós somos! Tanto esforço fizemos e tanta luta travamos para que tudo acabasse nas garras da Raposa!"

- Viu, Lindinho... - observou a viúva - Não adianta ficares a brigar com monsieur, por minha causa, porque quem poderá acabar levando-me será o senhor Esopo!...

Monsieur, que na verdade nunca brigara por ela, pelo contrário, esquivara-se de todas as formas possíveis das suas investidas, esticou o pescoço para o lado do capataz e sussurrou:

- Deixe que se vá, mon petit!...

Esopo, que por sorte quase nunca entendia as tiradas da madame, perguntou:

- Co... Co... Como, senhora?

A chinoca, voltando a introduzir a mãozinha sob o manto do grego, explicou em miúdos:

- Eu dizia ao seu colega e ao meu marido que, enquanto eles, assim como o leão e o urso da sua história, brigam por mim, é bem possível que o senhor acabe me carregando, como o fez a raposa...

Esopo horrorizou-se ante aquela possibilidade e o... O... O frasco, que madame encontrara finalmente sob suas vestes, transformou-se, por desencanto, numa coisinha muy pequerrucha e vil.

- Senhor Esopo! - bradou ela, de mãos quase vazias.

- Po... Po... Pois não, senhora?

- Senhor Esopo... - repetiu - Isso é...? É coisa que se apresente?...

O grego encabulou de todo e o frasco desapareceu por completo, para azar de madame que, por sinal, já vira isso acontecer muito.

O gaúcho, que nem sonhava que por baixo da mesa, nas suas barbas, tal acontecia, chamou-os à razão:

- Voltemos à fábula...

Ao que a viúva, ainda inconformada, respondeu:

- Fábula era o que eu tinha nas mãos, Lindinho!

O capataz não deu atenção ao que ela disse e continuou, fazendo um comentário sobre o tema que fora apresentado pelo senhor Esopo.

- A moral da história, se não me engano, é que por empenhar-nos em não querer repartir o que temos, acabamos perdendo tudo, não?

Ao que monsieur voltou a confidenciar-lhe:

- Eu também preferiria perdê-lo a compartilhá-lo, mon pur sang!

O gaúcho fez ouvidos moucos, mas a viúva, que não usava nem desocupava a moita, eriçou-se:

- Monsieur La Fontaine podia respeitar a casa e sair do colo do meu marido!...

- E madame podia respeitar o marido e tirar as mãos de les petit pois do meu colega!... - retrucou o francês.

Por efeito ou não dessas palavras, a chinoca voltou a colocar as mãozinhas sobre a mesa, fazendo ar de inocente e agradecendo aos céus pela ignorância do Lindinho que, felizmente, não entendia patavina da língua.

Esopo, gaguejando ainda mais do que o de hábito, tentou desviar de todos a atenção do... Do assunto delicado que a viúva tivera em mãos:

- A... A... Acho que... Que... Que...

La Fontaine interrompeu aquele cocorico, dizendo:

- Quem achou alguma coisa, pelo jeito, foi madame!...

E madame arrematou, cáustica:

- Achei e perdi, porque vocês não deixam o bom Esopo concentrar-se!...

O francês voltou a dardejar, ferino:

- Pelo que ouvi, parece ser um costume que os homens têm demonstrado com madame, não?

- Pode ser monsieur... Para lhe falara a verdade, só um... Mas tinha outros predicados...

- E qual seriam, madame?

- É que com a mesma eficiência com que diminuía o frasco, quando mais eu o desejava, também conseguia diminuir o meu saldo de conta corrente, quando menos eu queria...

O gaúcho, que não estava entendendo quase nada daquela entente, achou por bem protestar:

- Por favor, vamos falar a mesma língua...

- Ora, Lindinho, não me venhas falar de língua porque desta, quem entendia mesmo, era um ex-amor que tive, por sinal, filho de uma correligionária...

- E ele falava bem o francês? - perguntou o gaudério, ainda sem entender nada e a esposa retrucou:

- Não, Lindinho, mas como os franceses, ele sabia muito bem o que fazer com ela...

- E fazia? - indagou monsieur, curioso.

- Fazia como ninguém, mon amour... - respondeu a moça.

O grego voltou a insistir em quebrar aquela cadeia de desastres:

- E... E... Eu estava pensando em fazermos um pot-pourri de fábulas amanhã à noite, em despedida...

- Senhor Esopo, - exclamou a viúva - o senhor nem sabe o que essa palavra me lembra...

- Po... Po... Pot-pourri, senhora?...

- Isso mesmo, senhor Esopo... - concordou a moça, com o olhar distante e sonhador.

- E... E... E o quê seria?

- Da festa que fiz com meus ex e novos amores, assim que fiquei viúva... - e complementou: - Voltei a aproveitar a vida, aproveitando um pouquinho de cada um...

O senhor Esopo, mais uma vez, arrependeu-se se ter tentado intervir no rumo da palestra e aquietou-se.

O gaúcho, que já estava, por assim dizer, avec les petit pois enroladas nas orelhas, exclamou:

- Querida, pára de me atormentar!

Ao que lhe respondeu a donzela:

- Lindinho, isso que não sabes, da missa, a metade!

Monsieur La Fontaine, que estava pela bola sete, insistiu:

- Madame deve ter tido muitos amantes, não?

- Monsieur, - retrucou a moça - não tive todos os que quis, mas quis a todos que tive...

O gaúcho voltou a objetar, com sarcasmo:

- Querida, isso parece frase de pára-choques de caminhão!

- Por falar em caminhão... - reiniciou a moça.

La Fontaine meteu o cavalo, interrompendo-a:

- Madame um dia mencionou que já esteve por cima, não?

- Monsieur... - respondeu a prenda - já estive muitas vezes por cima, embora, particularmente, prefira estar por baixo...

Ao que o capataz, feliz, perguntou:

- É por isso que tu estás comigo, não é, querida?...

- Não, Lindinho... Quando eu digo estar por baixo não é no sentido lato, mas sim, no estrito...

O gaúcho não entendeu bem o jogo de palavras jurídico e insistiu:

- Tu estás querendo dizer assim como nós estamos, não?... Na pobreza material e na abundância afetiva?...

- Ora, mon amour, como pode alguém estar bem no amor, estando na miséria material?...

- Eu pensei... Eu pensei, que... - gaguejou o gaúcho.

La Fontaine voltou a pronunciar-se, para tirar o amigo do aperto:

- São todas, gens de même farine, mon ami! - e completou: - Mantenez vouz en arrière gard!

- O que monsieur está querendo dizer com isso?... - perguntou a prenda, com ares de ofendida:

O senhor La Fontaine explicou:

- Ora, madame, traduzindo livremente, que uma bête noire será sempre uma bête noire!...

(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo )

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