A Garganta da Serpente
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Quarta charla:
Hércules e o carroceiro

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

Na quarta noite, aparentemente, La Fontaine havia voltado ao normal. Isto é, ao seu estado insuportável de crítico contundente da obra de Esopo, à qual não deixava de, à menor chance, tecer cáusticas, desdenhosas e severas críticas.

Tal atitude surtia três efeitos distintos: o primeiro, no próprio colega de letras, que já devia estar acostumado àquelas crises de ciúmes, uma vez que vinha há uma eternidade convivendo com ele e tinha a grandeza de não lhe dar a mínima pelota. O segundo, na viúva, que encontrara alguém a altura da sua soberba e lhe lançava sorrisinhos e beijinhos, cada vez que ele se pronunciava menosprezando os escritos do grego e enaltecendo os próprios. O terceiro, no gaudério, que se identificara com Esopo, que era um homem simples, porém de muita inteligência - o que não era o seu caso - e perspicácia, na defesa do qual partia sempre, muitas vezes com educação e tato e outras, que nem tanto.

O capataz, que se havia autoproclamado mestre de cerimônias, deu início à noitada de charlas, perguntando:

- Senhor La Fontaine, esta noite lhe cabe, não?

O francês simulou uma rouquidão que não o acometia e a viúva, muy solícita, intercedeu em seu favor:

- Monsieur está um pouco afônico...

- Dor na goela? - quis saber o gaúcho.

La Fontaine sacudiu a cabeça, em gesto de concordância e o grego, gentilmente, sugeriu:

- S... S... Se o colega está indisposto eu posso narrar outra das minhas histórias, no seu lugar...

- Que pena! - exclamou a moça - Eu estava tanto querendo ouvir monsieur dizer outro versinho!...

O gaudério velho, preocupado com a saúde do estrangeiro, sentiu-se na obrigação de perguntar:

- Pegou frio?...

Ao que a moça respondeu, ligeira:

- Não!... - e aí, perdeu-se: - Monsieur faz tudo de ceroulas...

O chirú velho coçou a cabeça, sem saber se havia entendido bem a profundidade do comentário e então, voltando-se para o grego, achou melhor autorizá-lo, antes que a situação transpusesse a linha do admissível:

- Acho então que a palavra está com o senhor...

A chinoca, por debaixo da mesa, encostou a perninha na de monsieur La Fontaine, enquanto Esopo preparava-se e, por fim, a história começou:

- Ho... Ho... Hoje vou narrar a fábula que intitulei de Hércules e o carroceiro...

- Hércules é o nome daquele ginásio de fisiculturismo que existe lá perto de casa, onde rapazes viris e fortes vão exercitar-se!... - informou a donzela, lembrando que gostava de ficar na janela, quando estava na capital, para ver o entra e sai dos moços.

- Mas este, da história, é o semideus da mitologia grega, querida!

Ao que a moça exclamou:

- Nem me fales em semideuses, Lindinho, porque conheci cada um!...

- Ué, tu já estiveste na Grécia?

- Não... Conheci lá em Copacabana!...

- Semideuses em Copacabana?! - espantou-se o gaúcho.

- Isso mesmo, Lindinho, só que com a vírgula bem maior do que aquelas que têm os das estátuas gregas...

O capataz, resolveu dar oportunidade ao narrador, que prosseguiu:

- U... U... Um carroceiro levava uma carroça muito carregada, transitando por uma estrada lamacenta quando as rodas caíram num olho d'água e o veículo atolou...

Neste momento, a moça fez uma pergunta:

- Se atolou ou atolou-se?

O autor da história, que não pensara, na época em que a escrevera, na sutil diferença que poderia haver entre uma e outra forma de expressão e nem agora, decorridos os séculos, conseguia ainda imaginar, respondeu:

- Nã... Nã... Não sei, minha senhora... Fa... Fa... Faz alguma diferença, na vossa língua?

- Muita! - disse ela, explicando: - Aqui no Rio Grande, quando se diz atolou-se, quer-se dizer que foram as rodas traseiras... Quando, por outro lado, diz-se se atolou, foram as rodas dianteiras...

O grego pensou um pouquinho e, não entendendo bem as nuances do idioma, que era para lá de complicado, saiu pela tangente:

- A... A... A carroça em questão tinha apenas duas rodas...

- Ah, então se atolou-se! - explicou a moça, cheia de si.

O francês, que também não entendera nada daquela semântica questão, mas entendendo, no conjunto, que a moça dera uma demonstração inequívoca de sapiência, aplaudiu-a, eufórico.

O gaudério sacudiu a cabeça, contrariado e o grego apressou-se em continuar a charla:

- Po.... Po... Por mais que o carroceiro se lamentasse, os cavalos não conseguiam liberar o veículo... E... E... Então, no auge das suas lamurias, o condutor pediu aos céus pela ajuda de Hércules, que de pronto apresentou-se para ajudá-lo...

- Que moço bonzinho! - voltou exclamar a viúva - Eu, por mais que pedisse um homem aos céus, jamais fui atendida com tanta presteza...

- Ora, querida... E eu? - perguntou o gaúcho, carinhoso.

- Lindinho, vai te olhar num espelho para tomar tenência de quão diferente és de um Hércules!

Esopo tossiu - e até para tossir, gaguejava - e continuou:

- Hé... Hé... Hércules fez a volta na carroça, estando ainda o carroceiro sobre ela, a bendizer o providencial envio de socorro e dirigiu-se ao mortal, dizendo-lhe: "Se fizeres força, junto com os cavalos, para ajudares a remover o veículo deste lodaçal, eu também te ajudarei e juntos, lograremos êxito... Se no entanto não levantares um dedo para sair deste buraco, nem Hércules poderá ajudar-te!"

- E terminou a história? - perguntou a chinoca, que sempre estava a

esperar por mais.

- Te... Te... Terminou. - concordou o autor.

La Fontaine, esquecendo-se que fingira estar impossibilitado de falar, observou, no melhor do seu azedume:

- Para variar, outra história sem pé e sem cabeça!...

A moça concordou plenamente, soprando para ele um beijinho, que decolou da palma da sua mão e foi agarrado no ar pelo destinatário, que o conduziu ao coração.

- Para mim a história está claríssima! - discordou o gaudério.

- Claríssima? Não digas bobagens, Lindinho!

La Fontaine aprovou, em gênero, número e grau a observação da moça e o gaúcho voltou a manifestar-se, explicando:

- A moral da fábula é que devemos ajudar-nos para que os céus também nos ajudem!

- Isso é verdade!... - assentiu a viúva.

O gaudério alegrou-se por ver que, finalmente, concordavam em alguma coisa, mas a alegria durou pouco, pois ela complementou:

- Sempre que pedia aos céus um homem, eu saía para a rua muito bem produzida, que era para facilitar o trabalho divino...

- Além de burra, é puta! - deixou escapar o chirú, baixinho, que era para que os convivas não ouvissem.

- Retira! - exigiu a moça, que ouvira tudo, ofendida.

O gaúcho resignou-se, parcialmente:

- Eu retiro o "burra"!...

A moça satisfez-se e a charla continuou, de onde fora interrompida:

- O... O... O seu Tuquinha tem razão... - iniciou o grego.

- Quanto a eu ser burra? - perguntou a moça, inconformada.

O grego empalideceu:

- Nã... Nã... Não, senhora! Fa... Fa... Falava da interpretação que deu à minha ideia... Era exatamente esta, quando imaginei e escrevi a história...

- No que foi muito bem sucedido, pois a partir dela, todos ficaram cônscios de que não basta esperar ajuda... Hay que se ajudar a si mesmos... - complementou o gaudério.

O grego corou, visivelmente encabulado e a moça achou que, não fosse aquela corcunda medonha, o homem não seria totalmente desprezível, tirando, é claro, a mania que tinha de dormir no chão, sobre um xergãozinho muy diminuto e ralo ao qual, certamente, sua coluna não aguentaria.

- O senhor Esopo é casado? - quis saber ela, melosa.

- Nã... Nã... Não senhora... Não sou, não...
- Pergunto só por perguntar... - explicou a donzela - Porque como diz o Lindinho, cavalo amarrado também pasta...
O grego ficou, desta feita, roxo como um pimentão e foi salvo pelo francês, que perguntou, ofendido:

- A madame acha o colega mais atraente que eu?

- Não, monsieur... Além do mais, o senhor Esopo é um escravo e eu tenho por princípio não promover a ascensão das classes inferiores... Não para o meu leito, é claro!...

Ao que o capataz ironizou:

- Com raras e honrosas exceções, não é, querida?

A moça pensou um pouquinho, avivando a memória e ponderou:

- Na verdade, houve uma exceção ou outra, Lindinho... Mas não foram muitas...

- E eu sou uma delas?

- É claro, não!... Afinal, não passas de um pé-rapado...

O francês vibrava com o diálogo, enquanto o grego, não via uma fenda onde se enfiar, para fugir daquele bate-boca constrangedor e por fim, a moça amenizou o que dissera:

- Por sorte, tens outras virtudes!

- E quais são? - perguntou o gaúcho.

- Uma delas, Lindinho, é que tu, diferentemente do que o senhor Hércules fez com o carroceiro, ao invés de tirar-me do buraco, me estás sempre querendo colocar nele!

(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)

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