A Garganta da Serpente
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Prólogo
Os Personagens chegam ao Basílio

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

O gaudério estava dando tratos à bola para achar o que fazer. Primeiro, fora a vez das Lendas Gauchescas, atrás das quais tinha ido para por em pratos limpos. Depois, a dos Mitos Rio-Grandenses, que encontrara aqui e ali e ouvira, dos próprios protagonistas, as verdadeiras histórias das suas vidas, sem aumentar e sem diminuir. Por um tempo, pensara em buscar os Mitos Nacionais, para fazer o mesmo, ou seja, aclarar algumas coisas que a história oficial teimava por afeitar e que talvez não tivesse sido bem assim. Mas ir atrás deles era coisa que demandava tempo... E prata. Se dispunha do primeiro, a segunda era escassa como dente inteiro em boca de ovelha velha. Não dava nem para sonhar, inda mais que a Varig andava pelas caronas e o Malacara não aguentaria o estirão. Muito menos a Chimbica, que estava soprando pelas velas...

Então, enquanto as ideias não se alumiavam com alguma alternativa que lhe parecesse factível e apetitosa às vontades, deixava-se ficar na varanda das casas, arreado sobre os pelegos, lendo um livrinho ou outro e cogitando... E de tanto cogitar, nasceu uma ideia. Considerou daqui. Ponderou dali. Pareceu razoável. Voou para a cozinha e sobre a mesa de pranchas de lei, esparramou as folhas de almaço. Falquejou com esmero a ponta da pena que tomara um dia, para as cartas, do rabo da perua velha, sacudiu o vidro de tinta Pelikan, que já estava no fim e lascou:


Ilmos. Srs. La Fontaine e Esopo:

Quem vos envia esta missiva, escrita à pena de rabo de perua velha é o Tuquinha, um índio grosso barbaridade, que habita uma vila muy pequerrucha, situada nos confins do Rio Grande, chamada Basílio.

Para auxiliar-vos na localização, o Continente é uma massa de terra buena como em nenhum outro lugar hay e sobre o qual empilharam, muy desavergonhadamente, outros vinte e tantos estados federativos e chamaram ao todo, de Brasil. Por sinal, contrariando aos brilhantes físicos e matemáticos que nasceram e passaram a vida a fazer contas na vossa augusta e pedregosa terra, - no caso do ilustríssimo senhor Esopo, - é aqui o único lugar do mundo onde o triângulo se apoia sobre um dos vértices e consegue se manter equilibrado. Não em equilíbrio lábil, como seria de esperar-se, mas em equilíbrio estável, o que prova a grandeza da nossa gente e a sua força de vontade.

Mas não é para decantar as nossas virtudes que vos escrevo. Ou melhor: É e não é. Mas não quero falar. Pelo contrário, quero é convidar-vos para que venham aprecia-las de perto. "In loco", como diríeis na vossa vizinha e finada língua.

Em aceitando este convite, decerto que, além de honrar-me por receber na minha humilde casa tão ilustres figuras, muito terão a ver e a apreciar das nossas coxilhas majestosas, dos nossos ventos enregelantes e, sobretudo da nossa cozinha, principalmente da campeira onde, modéstia à parte, deixo até o mais anônimo dos gourmets de água na boca, mormente quando asso um churrasco de borrego de sobreano em fogo de chão e sobre o qual vou aspergindo a salmoura, com jeito, auxiliado por um raminho de guanxuma, ou ainda, quando preparo, em panela de ferro, um carreteiro de charque ou de puta-pobre. (Por falar nisto, se vos for do gosto, apresentar-vos-ei outras que, se não ricas, bonitas).

Certo de que não resistireis ao convite, despeço-me muy atenciosamente, já antegozando o prazer do nosso encontro e desculpando-me por, ao invés de duas cartas, uma para cada vivente, escrever-vos apenas uma. Explico: Como sei que se tornaram inseparáveis depois da... Do... De desencarnarem, sei também que, apesar da língua diversa, dos países longínquos e das épocas diferentes em que viveram, tal e qual ao que aqui nestas terras chamamos de corda e de caçamba, vossas senhorias devem andar acolherados um ao outro como bois de canga, a discutir permanentemente as vossas luminosas ideias, sendo ao meu ver, um despropósito enviar uma missiva para Paris e outra para Atenas, ainda mais com os preços abusivos cobrados pelos selos nos dias de hoje.


Vosso leitor e admirador:

Tuquinha de Barros

Basílio, 31 de julho de 2003.

P.S.: Rogo que envieis notícias da data da chegada, para que possa buscar-vos de charrete na estação ferroviária.


Escrita a carta, o gaudério leu e releu. Riscou uma coisinha aqui. Outra ali. Dobrou com cuidado, colocou num envelope, endereçou adequadamente para os viventes, lambeu para ativar a goma e foi até a vila, no Malacara, para posta-la.

Verdade é que se criou, na agência dos correios, alguma altercação, uma vez que o endereço não estava completo, mas como o gaúcho era de lua e o funcionário o conhecia bem, acabou aceitando o serviço e a carta desapareceu, devidamente selada e carimbada, pela fenda aberta na parede, sob o título "outras localidades", escrito em letras graúdas, em um pedaço de cartolina.

* * * * *

Passou-se uma semana ou duas... Talvez um pouco mais. Certa manhã, quando o gaúcho já nem lembrava da missiva que enviara, junto dos jornais que agora chegavam ainda cheirando a tinta fresca, chegou também um envelope, devidamente lacrado e sobrescrito em uma grafia estranha, que mais parecia um amontoado de gravetos.

Ansioso, abriu-o. Virou o conteúdo para um lado, virou para o outro e nada de entender aqueles dizeres pouco comuns naquelas bandas.

Gritou pela chinoca, que era letrada. Nada, porque a despeito da soberba, não deu nem para a arrancada, com exceção da identificação do envelope, que provinha, com quase toda a certeza, da Grécia, conforme atestavam os selos nos quais vinha estampado o Panteon.

Correu para a casa-grande, onde apelou para o amigo, o deputado, que fez a tradução no ato. Dizia, entre outras coisas:


"Agradecemos e aceitamos ao convite, informando que estaremos aí no dia..."

La Fontaine et Esopo.


O gaúcho ficou que não cabia em si de contentamento. Os homens estavam vindo diretamente para o Basílio e chegariam no dia seguinte, conforme dito e escrito no aviso de confirmação. Mal dava tempo para arrumar as coisas... Passar uma vassoura na casa... Prover as camas... Encher de penas novas os colchões para que ficassem bem fofos... Pintar o cabelo da patroa para que fizesse boa figura... E só!

* * * * *

O trem parou na estação do Basílio onde o gaúcho, devidamente paramentado, vestindo as melhores bombachas, estava à espera dos ilustres viajantes que devidamente orientados pelo chefe da composição, saltaram sobre a plataforma e ficaram a esperar que as bagagens fossem descarregadas. E foram.

Do grego, uma malinha muy choldra, quase vazia, como era de esperar-se de um habitante daquelas plagas, que por sinal, feio e corcunda, vinha trajando um manto de linho, branco como alma de menina moça e muito pouco adequado para o nosso clima.

Do francês, uma almanjarra que não tinha mais fim de malas, caixas de chapéus, cestos de vime, baús de couro, de madeira e perucas. Uma profusão de perucas de todas as cores e nuanças, feitios, penteados e comprimentos.

Descarregada a bagagem, o chefe-de-trem soprou no seu apitinho e os maquinistas abriram as válvulas, pondo a locomotiva em marcha.

O gaúcho aproximou-se dos viajantes e apresentou-se, dando-lhes as boas-vindas, perguntando se haviam feito boa viagem e oferecendo-se para ajuda-los a carregar as coisas até a charrete.

Esopo, agradeceu e declinando da cortesia, pôs a canastra nas costas, ou melhor, sobre as costas e tomou o rumo indicado.

La Fontaine, suspirou profundamente entediado, aspirou rapé de uma

caixinha dourada que tirara de um dos bolsos do jaquetão, espirrou bem espirrado e puxando um lencinho muito pouco másculo, do punho rendado, secou suavemente o nariz, empinou-o e seguiu para a carroça, pisando macio sobre os sapatos de fivelas grandes e saltos altos, deixando as malas a cargo do capataz, que se viu em bêtas para carregar tudo aquilo. Mas afinal, visita era visita.

Carregada a carroça e amarrada a bagagem, para que não sofresse nenhum estropício no caminho, tomaram o rumo da fazenda aonde chegaram passado do meio-dia e eram esperados por todos, à beira do fogo que o capataz mandara fazer no chão e onde os espetos de pau falquejado, sustentavam as carnes que já estavam quase no ponto, assadas pelo Derneval que, como é sabido, era o segundo em comando, na ausência do gaudério.

As apresentações foram feitas. Primeiro o deputado. Depois a senhora. Em terceiro lugar a viúva, que já havia corrido o fecho da blusa de couro até a metade. Em quarto, o Derneval. Em quinto... Em quinto os peões, que haviam tomado banho e se barbeado para esperar também os ilustres visitantes e que agora, gravitavam em volta deles, servindo aqui, oferecendo ali, cheios de rapa-pés.

Como vinham os lentes cansados da viagem e desarranjados com relação ao fuso horário, seguiram, logo após haverem enchido o bucho, para a casa do capataz, onde a viúva, que tinha experiência, já lhes havia preparado os leitos, onde deitaram e dormiram, tendo prometido antes, ao gaúcho, que no dia seguinte começariam as charlas sobre as fábulas.

(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)

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