Quando caiu a noite seguinte, os visitantes deram o ar da graça, emergindo
do quarto de hóspedes, descansados e mais adaptados ao clima e ao horário
do Continente. Verdade também, é que acordaram com uma broca de
coisas sólidas que só o carreteiro de charque e o ensopado de
batas com borrego saciou. Isso, é claro, depois de vários pratos,
para alegria do gaudério para quem comida pouca era sinal de miséria.
Para arrematar, comeram ainda dois alguidares de dulce de leche feito em casa,
com suco, é evidente, extraído das vacas Jersey.
O capataz e a viúva ficaram à mesa enquanto eles comiam, apreciando
aquela boa vontade toda e voltando a encher as travessas que se esvaziavam.
Finda a refeição e a sobremesa, entornaram ainda um caneco de
café cada um e deram-se, finalmente, por satisfeitos, arrotando fragorosamente.
A chinoca recolheu os pratos e os talheres. Trocou a toalha da mesa e sentou-se
ao lado do... Do marido, para acompanhar a conversa que se seguiria.
O gaudério, por sua vez atirou sobre a mesa o saco dos vícios,
contendo a boceta de fumo crioulo que recebia diretamente de Santa Cruz do Sul,
por obra e graça de um mano, que lá morava, as palhas de milho
já devidamente aparadas e adelgaçadas e o isqueiro de mecha.
La Fontaine aceitou a oferta que o gaudério lhe fez, agradecendo enquanto
enrolava o seu caboclo e ajeitava na ponta da piteira de marfim que, pelo sim,
pelo não, trouxera numa das canastras. Esopo agradeceu, dizendo que não
tinha o hábito e puseram-se a conversar, amigavelmente, como se fossem
velhos conhecidos.
O francês discorreu sobre a beleza da sua terra natal e sobre a suntuosidade
da corte de Luís XIV, no que foi devida e insistentemente aparteado pela
moça, que conhecia o país e os palácios, desde outros tempos,
quando fizera a viagem, acompanhando um dos ex-amores.
O grego, por sua vez, não era dos mais falantes, no que, no entanto,
era fartamente compensado pelo colega, para o lado de quem, por sinal, a viúva
já havia bandeado, arrastando consigo a cadeira e, vez por outra, esticava
a mãozinha e lhe tocava as falsas madeixas.
Finalmente, alguém lembrou da razão da viagem e suspendendo as
falas sobre os países e os costumes, entraram no assunto do interesse
geral propriamente dito, que eram as fábulas.
- Eu sugiro que a cada noite, um dos convivas conte uma delas, de sua autoria,
para que, ao final da narrativa, as possamos comentar. - foi a sugestão
do capataz, acolhida por todos.
- O senhor La Fontaine conta a primeira... - sugeriu a viúva, de
olhos arrodeando de felicidade por poder dar uma bajulada no autor.
La Fontaine agradeceu, fazendo-se de rogado e o gaúcho aproveitou a deixa
para implantar um sistema mais democrático e justo:
- Acho que deveríamos sortear aquele que será o primeiro...
Esopo, com a submissão de ex-escravo ainda latente e de forma
intrinsecamente arraigada, porque é coisa que leva miles de tempos para
se desfazer, gaguejou que, por ele, seria desnecessário o sorteio, podendo
o francês tomar a dianteira.
A viúva aplaudiu freneticamente, mas o capataz foi firme e determinado,
realizando o sorteio que, afinal, foi vencido por La Fontaine, que deve ter,
no seu íntimo, acreditado que se fizera justiça divina e começou:
- Vou contar uma das minhas fábulas mais populares...
A esposa do gaudério soltou um gritinho de emoção e dependurou-se
sobre os cotovelos, com o rosto quase colado ao do narrador, que prosseguiu:
- A fábula da Cigarra e da Formiga...
- Ah!... - exclamou a moça - Pensei que era a do Macaco e do Tigre...
Aí foi a vez do capataz interferir:
- Mulher, esta não é uma fábula... E além do mais,
não é do senhor La Fontaine, mas sim, do deputado!...
A donzela, que queria fazer boa figura ao francês, não se deu por
vencida, replicando com beicinho próprio para a pronúncia:
- Mas monsieur também tem uma historinha com bichinhos, não tem?...
La Fontaine nem se dignou a responder, continuando:
- É uma história clássica que demonstra que só vencem
aqueles que trabalham arduamente...
- O senhor pode nos narrar a fábula, por gentileza... - sugeriu o
gaúcho, olhando para a esposa, como a pedir que não interferisse
mais.
O viajante não se fez de rogado. Limpou a garganta, passou o lencinho
sobre os lábios, para tirar o excesso de pó-de-arroz que lhe descera
pelas bochechas depois do suador que tomara ao jantar e retomou a narrativa:
- Tendo a cigarra, em cantigas,
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema,
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga
Que morava perto dela.
- Amiga - diz a cigarra -
Prometo à fé de animal,
Pagar-vos, antes de agosto,
Os juros e o principal.
A formiga nunca empresta,
Nunca dá; por isso, junta.
- No verão, em que lidavas? -
À pedinte, ela pergunta.
Responde a outra: - Eu cantava
Noite e dia, a toda hora.
- Oh! Bravo! - torna a formiga -
Cantavas? Pois então dança agora!
- Que linda a historinha! - aplaudiu a viúva - Toda rimada!
La Fontaine fez uma vênia, agradecendo ao elogio, não se sabendo
se, derretendo-se mais ele ou a moça e Esopo, pela primeira vez naquela
noite fez um comentário:
- É... É... Esta fábula, de autoria do meu colega, foi
traduzida por Bocage, poeta e autor italiano, que viveu entre 1765 e 1805 e
soube com precisão coloca-la nos versos populares que estão em
voga até os dias de hoje e que todas as crianças conhecem...
O Tuquinha concordou, pensativo, enquanto voltava a acender o
palheiro que se apagara enquanto o francês recitava.
A moça concordou:
- Eu nunca tinha ouvido coisa tão bela... Tão bem elaborada e
de tanta sensibilidade...
Um visível rubor apareceu sob o pó de arroz da face do narrador,
que
voltou a fazer uma mesura, aproveitando para, num arroubo, agarrar delicadamente
da mão da moça, que não fez nenhum esforço, mesmo
quando a demora pareceu em demasia, para liberta-la.
O gaudério, meio desconfortável por ver aquela sem-vergonhice
toda acontecendo nas suas barbas, abriu o debate, que fora também previamente
combinado:
- O quê o nobre Ateniense acha do tema?
Esopo, que era autor e não crítico literário, gaguejou
mais do que o
de costume:
- A... A... Acho que o tema foi muito bem explorado pelo colega... Está
em evidência a diferença entre o trabalho disciplinado e constante
e a irresponsabilidade...
- Obrigado, colega... - agradeceu o autor.
- De fato, era assim que as coisas aconteciam naquela época... -
mencionou o gaudério, de forma provocativa, uma vez que achava que hoje
em dia as coisas eram bem diferentes.
Os viajantes, que não conheciam a realidade da terra nostra, perguntaram,
em uníssono:
- N... N... Não?!...
(Em uníssono, evidentemente, foi uma mera figura utilizada por este
escrevente, que agora vos narra a palestra, para descrever uma feliz coincidência,
uma vez que, Esopo pensou antes mas, gago, só consegui pronunciar depois,
por casualidade, ao mesmo tempo de La Fontaine, que por sua vez pensava mais
devagar, mas falava mais prontamente).
- Não!... - concordou o Tuquinha.
- Mas aqui neste país não se trabalha? - quis saber La Fontaine,
provavelmente lembrando de uma expressão atribuída a um conterrâneo
seu que viera muito depois do seu tempo, chamado De Gaulle.
- Trabalha-se... - confirmou o gaudério - Trabalha-se como em nenhum
outro país do mundo, com exceção do Japão... Mas
como se diz por aqui, quem trabalha não tem tempo de ganhar dinheiro...
Agora foi a vez de Esopo perguntar, horrorizado:
- M.. M... Mas são todos escravos, então?
- Não... - respondeu o gaúcho - É uma metáfora,
pois ao trabalhador comum não há privilégios... Jamais
conseguem comprar o que necessitam... Levam, quando conseguem financiar, uma
existência inteira para pagar a casa própria que, por sinal, quando
termina o prazo do financiamento, o saldo devedor é muito maior do que
quando começaram a pagar... Não há escolas adequadas para
as crianças... Nem saúde publica decente...
Foi La Fontaine quem interrompeu desta vez:
- Mas então ninguém tem casa, piscina ou sauna?
- Muitos têm... Mormente aqueles que passam a vida na contravenção,
no crime e na corrupção... - explicou o capataz.
Todos ficaram em silêncio, digerindo aquelas informações
e, lá pelas
tantas, quebrando o silêncio, a viúva pronunciou-se:
- Eu discordo, Lindinho!
- Discorda? - perguntou o gaúcho, para ter bem certeza do que
ouvira a mulher dizer.
- Discordo... - confirmou - Eu tenho casa própria... O meu rebento estuda
em universidade particular... Tenho também casa na praia... Cabana na
serra... Outros imóveis... E sempre fui assalariada...
Agora foi a vez dos convidados trocarem as orelhas, olhando
interrogativamente para o dono da casa, esperando explicação.
- Então me dize, querida: Fizeste financiamento para comprar todos estes
imóveis?
- Não... - ela respondeu - Não fiz, não...
- Então não passaste a vida inteira a contar os trocados para
pagar as prestações que nunca acabavam?
- Não... Nunca contei, é verdade... - concordou.
- Para comprar os demais bens, fizeste empréstimos bancários?
- Não... Também não fiz... Mas o quê isto prova?
- Prova que adquiriste aquilo que não podias... Que estava acima da tua
capacidade financeira...
- Eu acho que não... - tentou justificar-se a moça.
- Tu tinhas salário compatível com os bens que adquiriste?
Ela pensou um pouco e respondeu, indecisa:
- É... Talvez não tivesse...
O gaudério lançou-lhe um olhar malicioso e perguntou:
- Então, como é que explicas?
A moça tornou a pensar e logo iluminou o rosto, num sorriso:
- Acabamos de ouvir a história da formiga e da cigarra...
- E vais dizer que, assim como a formiga, ajuntaste grão por grão?
- Não, meu bem... Assim, eu não teria nada!...
- Então, como foi?
- É que, diferentemente da formiga, que trabalhava para toda a sua colônia
e assim nunca nada era exclusivamente dela, eu, Lindinho, como a cigarra solitária
e faceira, também nas minhas horas vagas, cantava... Só que a
cigarra cantava para o mundo e eu, para uma plateia muito seleta e muito
distinta, normalmente constituída de um ouvinte só... Um só
de cada vez, é claro!...
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)
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