Na noite seguinte, a décima primeira das charlas teve início
e com ela a notícia, transmitida aos acolhedores proprietários,
que a estada, dos ilustres hóspedes, se estava encerrando uma vez que,
cumprindo rigorosa agenda há muito preparada, deviam retornar para a
Europa, onde atividades do mais alto cunho literário e intelectual os
aguardavam.
A informação pegou de surpresa àqueles que os acolhiam.
Ao gaúcho, porque contava poder locupletar-se ainda mais com a sabedoria
secular que eles guardavam e muito bem e de forma muy equitativa distribuíam,
brindando a todos com as pérolas que haviam brotado nas suas férteis
imaginações.
À viúva, porque... Bem, porque não tinha ainda degustado
o monsieur La Fontaine, como sempre fizera com os varões que lhe
haviam ousado ou, quem sabe, tido a sorte, de passar-lhe por perto da zona de
influência.
Esopo, que não narrava nenhuma das suas fábulas há dois
ou três dias, estava azougado no partidor, qual parelheiro e o gaúcho
achou por bem lhe conceder a fala.
Monsieur, como que muito distraidamente, encostou o joelhinho no do gaudério
e o grego começou a charla:
- Co... Co... Como madame aprecia, vou narrar-lhes uma fábula em versos...
O capataz benzeu-se três vezes, porque agora, que aparentemente a prenda
havia desistido de monsieur, caía-lhe o gago em cima.
- Que lindinha!... E qual será? - quis saber a moça, curiosa.
- A... A.... A das Moscas e o Mel, madame...
A viúva espicaçou o marido:
- Isso te faz lembrar de mim, não é, Lindinho?...
O capataz fez um muxoxo e observou, aborrecido:
- Não sei, por que?...
- Ora, querido, tu sempre dizias que os homens andavam à minha volta
como abelhas em torno de um pote de mel!...
- Não era bem isso... - retrucou ele.
- Não?... E o que era, então?
- Era como moscas em redor da bosta, querida!...
Monsieur deu uma risadinha de escárnio e Esopo prosseguiu:
- Do... Do... Do pote de mel
A gota caiu.
A mosca chegou,
Lambeu e lambeu
E se lambuzou.
A perna prendeu,
A asa caiu.
Lutou e lutou,
Até que morreu.
- Era mesmo um versinho! - vibrou a prenda, em êxtase.
- Ma... Ma... Madame gostou de verdade?... - logo perguntou o narrador, não
inteiramente convencido com aquela mudança de comportamento.
- Amei de paixão! - disse ela, aproveitando para, num arroubo perfeitamente
justificável, dar um beijo na face do grego que corou de satisfação.
- Realmente é muito bonita... - concordou o gaudério, que havia
acabado de transcrevê-la para a ata da reunião, como sempre fizera
com todas as narrativas, para que ficassem registradas para a posteridade.
Monsieur encostou a boca no ouvido do gaudério e criticou o colega,
aos sussurros, aproveitando que a prenda o havia distraído ao colocar-lhe
a mãozinha por sob o manto de linho, dizendo:
- Se isso é uma fábula, eu quero ser uma gazela!
O gaúcho discordou:
- Acho que foi uma fábula muito bem pensada e escrita...
- Que prova, - anuiu a moça - que os pequenos frascos contém os
grandes perfumes... - e aí, caborteira, perguntou ao grego: o seu frasco
não é muito pequenino, não?
Esopo não se dignou a responder. Ou porque não entendeu a malícia
da natureza da pergunta, ou porque, de fato, era. Ou, ainda, por temer a reação
do marido, que logo rebateu a afirmação da chinoca:
- Essa não, querida!
- Ora, Lindinho!... Não, por que?
- Porque a história que o senhor Esopo narrou não tem nada a ver
com o ditado que mencionaste...
- E tem a ver com o quê, então?
- A moral da história, - explicou o gaúcho - é que não
devemos destruir a nós mesmos no prazer...
- Então a história está errada! - contestou a prenda.
- Errada? - espantou-se o gaudério - Errada por que?
- Porque o prazer não destrói, Lindinho!... Se destruísse,
eu não estaria mais aqui há muito tempo...
O capataz, ingenuamente, tomou aquilo como um elogio à sua performance
sobre os pelegos e agradeceu:
- Obrigado, querida, fico feliz em saber que tens prazer comigo...
A viúva não perderia uma oportunidade como aquela para espicaça-lo.
E, de fato, não perdeu:
- Não sejas pretensioso, Lindinho, quando digo que há muito não
estaria aqui, quis dizer que já me teria acabado nas mãos de outro,
séculos antes de ti...
O capataz engoliu aquela em seco, pois, afinal, como também se diz no
Rio Grande, o bom cabrito não berra.
Monsieur, muito sans façon, voltou a sussurrar:
- Mon mignon, eu, por certo, nunca tive tanto prazer quanto o que sentirei
avec toi...
O gaúcho não entendeu bem o dito e, pelo sim, pelo não,
levou a mão à guaiaca, para ter certeza de que a prateada graúda
estava a postos. E estava.
Esopo, que viu as coisas malparadas, resolveu interferir, sugerindo:
- Que... Que... Quem sabe um café quente?
Todos acharam que era uma boa ideia e a prenda, largando o frasco do
grego, o qual finalmente encontrara e que, aparentemente, era igual a todos
os que conhecera e, diga-se de passagem, para a sua satisfação
e júbilo, em muito superior aos das famosas estátuas, foi prepará-lo.
O chirú aproveitou para enrolar um palheiro, deixando a faca à
mão, para qualquer eventualidade.
Monsieur aspirou rapé e espirrou três ou quatro vezes no
lencinho de cambraia bordada e rebordada.
O grego, que não pitava nem cheirava, ajeitou o manto, cobrindo e ocultando
as partes, para dificultar um novo assédio.
Como a chaleira dormitava sempre cheia sobre a chapa do fogão, estando
a água, como ela, permanentemente quente, a moça logo voltou com
as canecas fumegantes e a tertúlia continuou de onde parara.
- Sobre perder-se pelo prazer... - começou o gaúcho.
- Ai, Lindinho, vais voltar a esse assunto?
- Minha querida, temos de levar a palestra até o fim e, sendo este o
assunto, a ele devemos nos ater...
A prenda deu de si, e acrescentou, prevenindo-o:
- Depois não digas que eu não avisei...
Monsieur La Fontaine, que estava querendo fazer uma pergunta, aproveitou
a oportunidade:
- Sendo o Brasil um país tropical, acredito que os trajes aqui usados
sejam um estímulo ao prazer, não?
- Acho que é como em qualquer lugar do mundo... - respondeu o gaúcho,
que não via porque seria diferente, a não ser para os turistas
mal intencionados, que vinham atraídos por pacotes turísticos,
com sexo incluído e a la larga pagos.
O francês insistiu:
- Mesmo o Carnaval?
- É uma festa popular... - começou o capataz, sendo interrompido
pela viúva:
- No Carnaval é diferente, monsieur...
Voltou o gaudério a objetar:
- Não, querida... Acho que não é!
A moça, que estava com toda a corda, insistiu, justificando:
- Tu estás dizendo isso, porque não sabes do Carnaval que passei
lá no Rio de Janeiro!...
O gaúcho, que não sabia desta epopeia, espantou-se:
- Ué, mas eu nem sabia que tinhas passado um, por lá!...
- E foi bom, madame? - perguntou-lhe o francês, que já estava
a imaginar a resposta que viria.
A mulher voltou a provocar o marido, dizendo:
- Se foi, monsieur!... Se foi!...
- Passou sozinha? - voltou a interpelar o senhor La Fontaine.
- Não, biscuit, fui para lá, pois havia acabado de divorciar-me
do primeiro marido mas, bem cedinho, arranjei inúmeros e fogosos pares...
- E aos bailes, a madame compareceu?...
A moça fez um ar sonhador e saudoso e voltou a responder:
- Fui sim... Do Municipal onde, como a mosquinha da história do senhor
Esopo, me acabei de prazer com muitos rapazes viris que no meu pote caíram
e lamberam, lamberam... E se lambuzaram...
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)
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