A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Oitava charla:
O guiso do Gato

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

Na oitava noite das charlas, ouvintes e oradores reuniram-se um pouquinho mais tarde do que o de costume. Haviam passado o dia em andanças, a bordo da chimbica, que era a Pick-Up Willys do capataz, rodando de um lado para outro, espremidos, os quatro, no único banco disponível. Espremidos, é maneira de dizer. O capataz viera ao volante. Esopo, sentado no meio, aproveitando da falha entre os dois encostos, para a justar a corcunda. La Fontaine, ocupara a extrema direita, à janela.

Ah, havia ainda a prenda!

Esta, refestelara-se, bem à vontade, no colo de monsieur e viera o passeio inteiro a pinotear, para cima e para baixo, mais para provocar o francês do que por ação dos sacolejos do veículo, entre risinhos, dizendo:

- Tem uma coisinha durinha aqui!... - ou então, safada: - Olha o buraquinho, monsieur!... Olha o buraquinho!...

De qualquer forma, o passeio havia sido feito. Parte das belezas da região, apresentadas aos visitantes, em viagem que o gaúcho, prudentemente, baseado na experiência adquirida um dia ou dois antes, sugerira depois do café da manhã, vendo que todos estavam muito bem dispostos e que não se furtariam a acompanhá-lo, nem teriam tempo para outras combinações ou conluios.

- Os ratos, preocupados... - começou La Fontaine, depois que todos tomaram assento em seus lugares.

- Só um pouquinho, meu senhor... - pediu o capataz, que estava ainda a ajeitar sobre a mesa os papéis para as anotações.

- Lindinho!... - protestou a viúva - Tu estás tirando a concentração de monsieur!... - e acrescentou, maldosa: - E monsieur sabe que, sem concentração, nada funciona, não é?...

O francês ficou lívido e aguardou pela ordem de início que logo veio.

- Os ratos... - reiniciou - Preocupados com os constantes e inesperados ataques do gato, resolveram promover uma assembleia...

- Eu também!... - exclamou a moça e o francês, sem entendê-la, perguntou:

- A madame já promoveu alguma assembleia?...

- Non, mon petit garçon!... - explicou - Eu me promovi "na" Assembleia!...

O gaudério suspirou e o narrador seguiu adiante:

- Na assembleia...

Ao que foi, novamente interrompido por ela:

- Agora que monsieur falou, eu lembrei que na Assembleia também os gatinhos me perseguiam...

- Por sorte não a comeram, não é madame? - disse Esopo, que às vezes falava besteiras por não entender bem as nuances do idioma.

- Aí é que o senhor se engana, senhor Esopo!... Comeram muito...

- retrucou a matraca, como se fosse a coisa mais natural e meritória.

O gaúcho passou mal e teve de aspirar, uma ou duas vezes da tal de bombinha, que a prenda trazia sempre na frasqueira e foi só depois de plenamente restabelecido que a charla continuou:

- Na assembleia, puseram a questão como ordem do dia... Era preciso que se desse um final àqueles ataques de inopino...

- Que lindinhos!... Uma assembleia só de ratinhos! - exclamou a moça que, como já mencionado, tinha fascinação por bichinhos e que acrescentou: - Por sinal, lá na Assembleia também havia muitos ratos...

- Mesmo, madame? - perguntou La Fontaine.

- Aos montes!... - confirmou.

O francês explicou a razão:

- Em prédios antigos há muito...

- Mas mon bijou, o nosso era bem novinho!...

- Então não entendo... De qualquer sorte, deviam ter promovido alguma desratização, para assegurar a saúde dos funcionários... - disse o francês, achando que aquilo era coisa de terceiro mundo.

- Impossível monsieur! Se desratizassem, teriam também de promover novas eleições!

O gaúcho, que estava apreensivo com o eventual desenlace, chamou-os à razão da reunião e a narrativa da fábula teve prosseguimento:

- Um rato sugeriu uma coisa... Outro, sugeriu outra...

A moça bateu palmas, deslumbrada, dizendo:

- Igualzinho ao que acontece aqui, monsieur: Todo mundo dá palpite, mas ninguém resolve nada!...

O francês concordou que era assim mesmo, acrescentando que, en France, não era muito diferente e continuou:

- Lá pelas tantas, pediu a palavra um dos constituintes e sugeriu: "Se amarrássemos um guiso ao pescoço do gato, saberíamos, de antemão, da sua aproximação..."

O gaudério pensou na ideia de ir até o galpão e trazer o cincerro de uma das vacas, para colocar no pescoço do francês ou, melhor ainda, no da mulher, para saber onde ela andava, mas achou que seria coisa de medievais eras, desistindo.

- Todos aplaudiram àquela brilhante ideia... - continuou o narrador - Menos um rato velho e calejado que, pondo água fria na fervura, perguntou: "E quem vai amarrar o guiso ao pescoço do bichano?..."

- E terminou? - perguntou moça, que nunca sabia quando chegava o final das fábulas.

- Terminou... - confirmou o narrador.

- Não entendi muito bem... Mas gostei. - disse ela.

O gaudério exaltou-se:

- Mas como pode ter gostado, se não entendeu?

- Ora, Lindinho, - explicou - É que nem transar e não atingir o orgasmo...

- Não entendo a relação? - disse o gaúcho, que não entendera mesmo e estava achando que era puro exibicionismo para o almofadinha francês.

- Se o parceiro é legal e para ele foi bom, para mim, também!...

- Eu não acho! Bom, é quando é para os dois!

A moça encontrou outra forma de se explicar:

- Eu quero dizer que, embora não tenha entendido muito bem a história, ainda assim gostei, porque nenhum bichinho morreu!

O capataz traduziu, pacientemente:

- A moral da história, querida, é que dizer, é fácil... Fazer é que são elas...

- Ah, isso eu sei melhor do que ninguém! - exclamou a dama.

- Sabe? - quis saber o capataz.

- Sei sim, Lindinho... Eu tive um namorado que não conseguia... Já te falei dele... O alemão...

- E o que é que isso tem a ver com a história, querida? - foi logo interrompendo o chirú, na esperança de salvar as aparências.

Ela não se deu por vencida e continuou:

- Com a história, nada... - concordou - Com a moral da história, tudo, porque nem assoprando ficava de pé...

O pobre Esopo, que não entendera patavina, perguntou:

- E a madame não experimentou chupar?...

A moça, desconsolada, respondeu:

- Experimentei sim, senhor Esopo, até ficar bicuda...

O grego, penalizado, insistiu, com inocência:

- E nada?...

A moça sacudiu a cabeça, desalentada, respondendo:

- Nadinha... Nem pra remédio...

La Fontaine, que perdera o final do diálogo, fazendo uma massagem cardíaca no gaúcho, que passara mal, perguntou:

- Nada mesmo, é?

A moça confirmou o infortúnio:

- Nada mon biscuit... - ao que acrescentou: - E, por sinal, acho que com o monsieur, vou ficar na mesma também!...

- Mas comigo, nunca ficou! - gritou o gaudério que, verdade seja dita, nunca se abombava nem refusava a invite.

- É que de ti eu já estou por aqui, Lindinho!... - disse ela, levando a mão à testa, para ficar bem claro até onde estava cheia.

- Mas como pode estar, se nos conhecemos há tão pouco tempo?...

- Ora, Lindinho, é que nesse pouco tempo, já me cobriste mais do que todos os outros, somados e multiplicados...

O francês passou a olhar para o gaúcho com olhos cobiçosos, depois daquela declaração da donzela e pensou em, na noite seguinte, dar um jeito de trocar de lugar com o senhor Esopo, para poder sentar-se perto do capataz.

O bom gaúcho, ciente de que mais nada de bom sairia, resolveu deixar as coisas mais ou menos organizadas para a próxima charla, perguntando:

- De quem será a noite de amanhã?

Ao que o francês, sem entender corretamente a pergunta, respondeu, com um sorriso de fazer inveja à viúva:

- Se monsieur Tuquinha quiser, será toda sua!...

O capataz, que já estava velho para isso, declinou gentilmente, informando, ou melhor, esclarecendo:

- Refiro-me às fábulas... Quem será o narrador?

Monsieur, que não desistia à primeira recusa e querendo salientar-se, para chamar a atenção do seu, quem sabe, futuro amor, adiantou-se ao grego, que ainda estava gaguejando e disse:

- Eu narrarei, mon ami!...

- Então está combinado... - depois, querendo antegozar o prazer da narrativa, perguntou: - E o senhor poderia adiantar-nos o nome da história que pretende contar?

Monsieur pensou um pouquinho e respondeu:

- Vou contar a da gazelinha francesa que foi caçada por um gaúcho do Rio Grande...

Agora foi a vez do gaudério revirar as ideias, para ver se lembrava dessa fábula e, não lembrando, disse:

- Dessa eu não me lembro, senhor La Fontaine!

Ao que o francês, agarrando com força o lencinho de seda, até que branqueassem-lhe os nós dos dedos, explicou:

- É que essa eu vou escrever esta noite, mon garçon!

(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Que tal comprar um livro de Luiz Morvan Grafulha Corrêa?


Barbaridade, tchê!


Tuquinha e os Mitos Rio-Grandenses
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br