Monsieur foi o primeiro a assentar-se para a nona charla. Na verdade,
passara a tarde toda à mesa da cozinha, rabiscando nos seus papéis,
ou andando, de um lado para o outro, com as mãos às costas, falando
sozinho e arrastando, pelo chão, o seu vasto chambre de cetim laranja.
Vez por outra tinha, ao que parecia, algum alumbramento e corria para a mesa
para apontá-lo, antes que esquecesse.
A viúva passara a tarde inteira à sua volta, solícita e
oferecida, trazendo chazinhos e cafezinhos que o autor, distraído, mal
tocava. Ou tocava, dando um golezinho, para não fazer desfeita e deixava
esfriar, abandonado.
Amiúde, quando deixava as ideias campear, enrubescia, com alguma
ideia mais atrevida para a história que estava compondo e a dama,
percebendo e achando que podia ser alguma coisa que monsieur estivesse
a imaginar fazer com ela, se aproximava curiosa e pedia:
- Deixe-me ver, mon bijou?...
Ele negava, obstruindo-lhe a possibilidade, ora virando os escritos para baixo,
ora puxando-os para fora do seu raio de visão, até que ela, com
ar maroto e resignado, se afastava e ele podia, então, retomar as lides.
O gaudério, agora mais tranquilo, pois sabia que seria mais fácil
monsieur La Fontaine ser comido pela mulher do que o oposto, fora para
o campo, a cavalo, no Malacara, acompanhado pelo grego a quem o deputado, gentilmente
emprestara a sua montaria favorita: a égua Marta Rocha.
Verdade também é que deixara o Derneval, de plantão, na
varanda da casa, debulhando milho, para que a pouco casta esposa não
se sentisse muito à vontade e não arriasse os panos com facilidade.
Assim, quando caiu a noite, insignes viajantes e insignes ficantes, voltaram
a reunir-se.
- E então, senhor La Fontaine? - perguntou o chirú.
O francês encabulou um pouquinho e tirou os papéis do bolso do
jaquetão, colocando-os sobre a mesa e explicando:
- Infelizmente não pude concluir a nova história...
- Que pena, mon petit... - exclamou a dama, insinuante.
O gaúcho foi gentil ao extremo, dizendo:
- Não tem importância, meu senhor... O senhor é autor de
miles de fábulas e de certo que não lhe faltará alguma
na lembrança...
O fabulista voltou a corar e justificou-se:
- Não fosse a perereca estar o dia todo a me esfregar o rabo na cara,
estaria pronta...
O capataz fuzilou a mulher, que baixou o olhar, culpada.
Esopo sugeriu, salvando a noite:
- Conte a dos dois burrinhos, colega...
La Fontaine voltou a iluminar-se e, tendo o gaudério feito as devidas
anotações na folha da ata, iniciou:
- Dois burros, carregados, chegaram à margem de um rio...
Aí a viúva, que não tinha vergonha na cara, interrompeu:
- Que horror fazer os pobres animaizinhos andarem abarrotados de carga!...
O marido amenizou:
- É somente uma história, minha querida...
- É... Pode ser, mas eu queria ver se a Dona Palmira tivesse morado lá
na França, se contariam histórias desse tipo!
Monsieur, que nunca havia ouvido falar nessa tal de Dona Palmira, deu
de ombros e prosseguiu:
- À beira da água empacaram, pois não sabiam da sua profundidade...
- Não conte histórias de afogamentos porque eu ainda estou traumatizada!
- pediu a viúva.
O francês olhou para o capataz, que agora, por hábil troca, estava
ao seu lado e, ante o gesto de "não lhe dê bola", continuou:
- "Como faremos para cruzá-lo a vau?" - perguntou um dos animais.
Ao que o outro, que era mais despachado e que trazia às costas dois volumosos
fardos de açúcar, respondeu: "Você fica aqui, observando,
que eu tomo a dianteira, a nado..."
- Só podia ser coisa desses donos de engenho lá do norte... -
indignou-se a moça, completando: - Não bastasse explorar os operários,
até aos pobres animaizinhos exploram!...
Monsieur simulou um bocejo de desagrado e seguiu adiante:
- Isso dito, atirou-se à água, onde os fardos de açúcar
se dissolveram e nadando, chegou ileso ao outro lado...
- É, mas o meu ex-amor não estava carregando açúcar
nenhum e afogou-se!... - insistiu a moça, na tragédia.
O gaudério, aguilhoado, observou, mordaz:
- Pode-se dizer que deu com os burros n'água, não é, querida?
A moça ofendeu-se e foi à forra:
- Com os burros n'água se fosse tu, que és um estupor... Ele era
muito culto, inteligente e boniiiito...
O capataz abespinhou-se de vez, porque sempre que ela dizia que alguém
era boniiiito, fazendo biquinho e esticando os "is", queria dizer
muito mais...
La Fontaine, que estava cambiando de amor, não deu atenção
à ela e prosseguiu:
- Chegando na outra margem, são e salvo, gritou ao companheiro: "Vês
como foi fácil?..." e o colega, que estava com um carregamento de
esponjas, atirou-se também à água, mas estas se encharcaram
e ele foi tragado e afogou-se...
- Igualzinho ao finado!... - soluçou a mulherzinha.
O gaúcho sacudiu a cabeça, chateado e o francês, solidário,
colocou a mão na sua coxa, logo ali abaixo do... Do... É, dele
mesmo!
Amigos, amigos, frescuras à parte, o gaudério pegou aquela mãozinha
branca e magra e devolveu à perna do dono, dizendo:
- Chega pra lá, Colombina!
- E terminou a história?... - perguntou a zinha, enxugando os olhos ainda
lacrimejantes, na ponta do manto de Esopo.
- Terminou... - confirmou o narrador.
- O senhor La Fontaine esqueceu de contar um pequeno detalhe... -
observou o capataz, com jeito, para não ferir suscetibilidades.
Todos se abismaram, inclusive o autor e perguntaram, em uníssono:
- Qual?...
- Do início da história, quando o burro que carregava o fardo
de esponjas vinha agastando o companheiro, que vinha vergado ao peso do açúcar...
- É verdade! - exclamou monsieur, justificando: É que eu
estou muito excitado hoje, mon ami...
O gaudério, pelo sim, pelo não, chegou-se um pouquinho mais para
longe dele e perguntou aos outros ouvintes:
- Não é foi uma bela história?...
A viúva suspirou, lembrando do cadáver do afogado, em tempos que
não era ainda cadáver e só se afogava entre as suas pernas...
Esopo sacudiu a cabeça e concordou, aos arrancos:
- Mu.... Mu... Muito boa!...
La Fontaine fez uma mesura de agradecimento, como se fosse um maestro e ofereceu
a narrativa em homenagem ao gaúcho, como sói fazerem les grand
virtuoses.
O capataz agradeceu àquela frescura toda e perguntou à viúva,
que estava muito pensativa:
- Pensando na moral da história, querida?
- Não, Lindinho!... Não exatamente... Por sinal, qual é
ela?
- Há muitas... - respondeu o homem - Uma delas, que é muito difundida
por aqui é que reza e cautela, não fazem mal à ninguém...
A moça objetou:
- Tu sabes que eu sou à-toa, não rezo nunca...
- Ateia, minha querida!...
- Isso... - disse ela e aí, com um risinho, acrescentou: - E à-toa
também, não é, Lindinho?...
O gaúcho, que era gentil, preferiu não responder, para não
ter que mentir e perguntou, ao senhor La Fontaine:
- Então é verdade que o senhor está escrevendo uma fábula
atual?
O francês corou de emoção e respondeu:
- Estou sim... - e acrescentou: - É dedicada ao amigo...
- Ao senhor Esopo?
- Não!... - corrigiu o fabulista, ao equivoco - Ao senhor!
O chirú velho emocionou-se e perguntou:
- Eu posso incluí-la em um livreco que ando escrevendo?...
La Fontaine ia dizer que sim, mas foi interrompido pela matraca:
- O Lindinho agora deu para pensar que é gente grande e não sai
da frente do almaço!...
- Mas isso é muito bom, madame! - observou o francês.
- Monsieur pode imaginar a pantorra? - insistiu ela em humilhar o marido,
coisa que, por sinal, fazia amiúde.
O gaudério baixou a cabeça, ofendido no fundo da alma e ela prosseguiu,
espezinhando e tripudiando:
- Se pelo menos escrevesse alguma coisa que prestasse... Ou se fosse inteligente...
- Tenho certeza que monsieur Tuquinha há de sair-se muito bem!
-
defendeu-o o escritor francês, ao que o grego, acrescentou:
- Como diriam os romanos, o importante é que não haja nulla
dies sine línea...
Madame, que conhecia um pouco de latim, ou por haver ouvido nos tribunais
ou por haver algum douto amante balbuciado durante o sono, replicou:
- Mas o Lindinho não passa de um sine nomine vulgus!...
O francês, que estava ficando caidinho, quis impressionar ao gaúcho
e replicou, também na língua mater:
- Amicus, macte animo! Sic itur ad astra...
A viúva achou que seria difícil combater aos dois sábios,
pelo menos com as armas de que dispunha e que estava acostumada a utilizar e
para as quais, nem um nem outro, estava nem aí e, entregando os pontos,
levantou-se e saiu rabiosa, batendo as tamancas, em direção do
quarto.
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)
Que tal comprar um livro de Luiz Morvan Grafulha Corrêa? Barbaridade, tchê! Tuquinha e os Mitos Rio-Grandenses |