A Garganta da Serpente
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Tuquinha e o Lobisomem

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

(baseado na Lenda Popular)

A índia velha tinha voltado para a fazenda. Não inteiramente por gosto. Acontece que o amigo era casado, e a esposa botara um gritedo de fazer cair o céu. Assim, por este pequeno contratempo do destino, a coleção de cinzeiros ficara inacabada. Inacabada, não. Resolveram dar um tempo para que as coisas amainassem e pudessem voltar ao regozijo da procura.

Para o gaudério, até que fora bom. Estava com saudades da prenda, muito embora, ao que parece, a recíproca não se cumprira verdadeira. Tanto, que na primeira oportunidade, já a moça soltara-lhe os cachorros. Não contente, tomara-lhe de volta, como sempre o fizera nessas ocasiões, as coisas que eram dela, mas que lhe permitia utilizar. Mas até a isso ele estava acostumado. Sabia que, um dia ou dois depois, passada a raiva e o calor do momento, ela as deixaria, discretamente, outra vez ao seu alcance, como se nada tivesse acontecido. Era uma afronta? Era. Era tripudiar sobre ele? Era. Mas o gaúcho gostava da chinoca e não seriam esses arroubos de demonstração de poder e de força que iriam demovê-lo de continuar tentando manter a estabilidade da relação que muitos percalços já sofrera. Além disso, havia coisas mais sérias para serem pensadas e tratadas. Dentre elas, a recente aversão que ela passara a sentir pelo contato físico com ele. Aversão era palavra suave. Pavor, seria mais bem dito. Como nunca fora dessas coisas, nem com ele, nem com ninguém, pusera-se a trocar orelhas e a excogitar. Mas excogitar não levava a nada. Nunca levara. Então, como andara ouvindo umas conversas estranhas, lá na pulperia do Xamuset, quando andara a matear, sobre uma entidade muy esquisita, que em noites de lua cheia andava a bater nos galinheiros e a assustar os andantes notívagos, pôs os aperos no pingo e saiu ao tranquito, pelas carreteiras, fingindo ser um viajante comum que aproveitava a noite alumiada por vasta e propícia lua, para ver se encontrava o bruto. E como quem procura, encontra, encontrou. Foi assim, mais ou menos:

Vinha pela estrada tortuosa, a meio caminho entre a Airosa e o Desvio, quando o Malacara entesou-se, arrepiando os pelos e apertando a cola. E bufou... Bufou e empacou e não havia invite que o fizesse avançar. Nem relho... Nem chilenas rosetudas... Nada! De freio agarrado nos dentes, deu de tentear arrodear e tomar o caminho de volta... Não fosse pela tenacidade do ginete, teria galopado até a fazenda e se embretado galpão à dentro. Mas o gaudério manteve a direção e alguns metros à frente, saltou-lhe, de dentro de uma capororoca, imenso perro, preto e peludo como a desgraça do mundo, de dentes arreganhados, postando-se no meio da estrada.

O gaúcho fez o pelo-sinal, beijou o crucifixo de prata que a prenda, noutra época, lhe havia brindado e levantando-o à altura do peito, gritou o "Vade retro, Satana!" e como o cusco não abriu espaço, aprumou o relho para dar-lhe um para-te-quieto.

Fincou com força os calcanhares no pingo, que afinal, mais por medo das esporas do que por coragem, saltou para frente, por cima do cachorro, que não contando com aquela, e muito menos com o relho ameaçador, enfiou o rabo no meio das pernas e se arrolhou por inteiro, fazendo mermar no gaudério a vontade de dar-lhe uma esfrega.

O gaúcho abaixou o braço, desarmando-se e dirigiu a palavra ao sarnoso:

- O cusco velho está querendo apanhar?

Este, que subira a barranca que ladeava a estrada, sentou-se, depois de arrodear sobre si mesmo, como fazem sempre, duas ou três vezes e, para espanto do gaudério, respondeu:

- Na verdade, só queria dar-lhe um cagaço!...

- E quem é o vivente? - perguntou o capataz.

- Sou o Lobisomem, ora essa! - respondeu o cusco, meio que indignado por não haver sido reconhecido.

O capataz desmontou, amarrou o cavalo junto a cerca de arame da faixa de domínio e acercou-se da entidade.

- Por casualidade eu andava a procura-lo... - disse, tentando estabelecer o diálogo, depois do quase mal-entendido.

- Sou sabedor... - respondeu o lobo.

- Mas como? - espantou-se o gaudério.

- Porque é minha obrigação saber de tudo e de todos...

- Se for assim, deve saber que tenho me entrevistado com seres muy estranhos nestes últimos dias, não?...

- O senhor está se referindo ao Saci e ao Curupira?

- Sim... Eles mesmos...

- E comigo, o quê o senhor quer? - perguntou, desconfiado.

O gaúcho pensou um pouquinho e respondeu:

- Saber da sua vida... Por quê anda a criatura a assustar as criações e os viajantes noturnos?...

- Quer saber tudo, então?

- Quero... Tudinho! - assentiu o capataz.

- Então vamos lá... - iniciou o maldito - Quando um casal tem seis filhos e acaba concebendo o sétimo, este, se nasce em noite de lua cheia, vem marcado pela desgraça...

- Desgraça?... Como assim? - interessou-se o gaúcho.

- De nascer com esta sina... De durante o dia ser homem e à noite, notadamente nas de lua cheia, ser meio gente e meio animal...

- Mas pelo que estou vendo, o vivente agora e todo bicho... Dos mais judiados, por sinal...

- É que não tenho me alimentado bem... - justificou a criatura.

- E de quê se alimenta?

- De sangue, exclusivamente...

- De sangue humano, como se fosse um vampiro?

- O senhor já viu algum? - espantou-se o cusco.

- Só lá no cinema do doutor Merenda... Por sinal, acabavam todos com uma estaca enfiada no peito! Corrijo: Começavam, porque as fitas sempre eram tocados de trás para diante...

- Mas no meu caso - fez questão de explicar o lobo - estacas não funcionam...

- E a tal bala de prata? - perguntou o gaudério, que trazia uma preparada à feição, no tambor do trinta.

- Isso é bobagem de filme americano!... - ironizou ele.

- Mas do crucifixo o capeta tem medo, não tem?

- Não é medo...

- Se não é medo, o que é? - explorou o Tuquinha.

- É respeito, talvez... Não sei bem...

- E de água benta?

- Água benta eu também respeito... Por acaso o senhor trouxe alguma?

- Para falar a verdade, trouxe... Trouxe uma guampa cheia, que escamoteei lá da bacia da capela do padre Libório, no Basílio... - confessou o índio velho, que não era de mentir.

- E o andante pretende utilizar? - perguntou, temeroso.

- Acho que não vai ter precisão... Mas nunca se sabe...

A conversa morreu, estando os dois a pensar sobre as possibilidades futuras, então o gaúcho, quebrando o silêncio que se fizera, perguntou:

- E sobre a transformação?...

- O senhor quer saber quando eu deixo de ser homem e viro este bicho asqueroso?

- Sim! Isso mesmo...

- Só acontece nas sextas-feiras... E têm de ser de lua cheia... Aí, à meia-noite, esteja eu onde estiver, os pelos e as unhas me vão crescendo, as roupas se tornando trapos e acabo neste estado em que o senhor me encontrou...

- E para retornar ao estado original? - quis saber o capataz.

- Primeiro, tenho de cometer alguma judiaria... Beber o sangue de alguém... Gente ou animal...

- Então não conte com o meu... - preveniu-o o gaúcho - Porque se depender dele, vai ser cusco para o resto dos tempos...

- Não foi o que pensei... - desculpou-se o Lobisomem - Só estava explicando como funciona... Depois de ingerir o sangue, quando os galos começam a anunciar o alvorecer, vou perdendo as forças, devagar, e tenho de procurar algum cantinho qualquer para voltar a ser o que era...

- Aí eu tenho uma curiosidade... - interrompeu-o o gaúcho - Quando volta a ser humano, volta como Deus lhe pôs no mundo?

- O senhor está querendo saber se volto nu?

- Isso... Porque já vi um filme em que o transformado voltava a envergar as mesmas roupas que trajava antes do fenômeno...

- Volto pelado como ferro em briga...

- Isso deve dar-lhe um bom prejuízo, não?

- Se dá, seu moço!... Se dá!... Não hay roupa que chegue...

- Eu imagino... Deve ser pior que ter cria em crescimento... O que serve hoje, amanhã já não serve mais... - concordou o chirú.

- Mas este não é o problema maior... - confidenciou a criatura.

- Não?... E qual é, então?

- A culpa... A culpa é a maior das questões...

- O sarnento está dizendo então que sente remorso das judiarias que pratica?

- É isso mesmo... É muy difícil, no outro dia, conviver com a lembrança das atrocidades...

- Mas então não sugue o sangue das gentes... Limite-se aos animais pequenos... Às penosas carijós e outros bichos de criação...

- Eu sei... Mas não é tão simples assim... - desculpou-se o ser.

- Como não? O amigo tem que ter força de vontade... - depois de dizer isso, o gaúcho achou que era exatamente o contrário que era necessário e remendou - Quero dizer... Tem que ter força para contrariar as vontades... Para ir de encontro aos seus instintos mais arraigados... De negar a sua patogenia...

- Negar a minha o quê? - perguntou o lobo, ao qual o mencionado prefixo "pato", fizera lembrar que não havia ainda jantado.

- A sua patogenia... A moléstia que o consome...

- Prometo que vou tentar... - garantiu, sem muita convicção.

- Então acho que é hora de voltarmos para as casas... - sugeriu o capataz, dando a entender que a entrevista se acabara e dirigindo-se ao Malacara e montando-o.

O Lobisomem ficou onde estava, vendo o gaúcho aprumar-se para ir embora e quando ele já estava conduzindo o pingo de volta à estrada, num ímpeto, perguntou, esperançoso:

- O amigo gaúcho não estaria disposto a fazer uma pequena doação?...

O Tuquinha bancou o desentendido:

- Doação, eu faço na igreja do padre Libório...

- Não... Não digo em espécie... - tentou explicar o lobo.

- Que espécie de doação, então?

- Uma gotinha ou outra de sangue... Questão de sobrevivência...

- O pulguento devia era associar-se ao banco de sangue de algum hospital...

- Já pensei nisso...

- Se pensou, por que não associou-se?

- É que hoje em dia é muy perigoso... Hay essa tal de hepatite... De "aides" e outras mais... - justificou.

O gaúcho, que era bueno, pegou da guampa que trazia presa ao lombilho e jogou-a para o Lobisomem.

- Mas isso não é água benta? - perguntou ele, apavorado.

- Não... - respondeu o gaudério, dando de rédeas no flete - É sangue de galinha que a patroa apartou para fazer um "molho-pardo" amanhã...

(Porto Alegre, 17/jun/2003)

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