(baseado em: A Lenda da Igreja das Dores, de Dante de Laytano)
O gaudério tinha ido para Porto Alegre, junto com a chinoca que, volta
e meia, sentia necessidade de tomar um banho de civilização. Deixar
um pouco a vida no campo que fora buena antes, quando havia ainda enlevo e,
como ela mesma dizia, "abrir as janelas da casa e deixar entrar ar novo
para tirar o mofo".
Para ele, era bueno. Não que ela abrisse as janelas. Isso não.
Era bueno estar na capital porque, amante que se havia tornado dos livros, tinha
muitas opções de satisfazer sua curiosidade e de alumiar suas
ideias. Inda mais, que a casa da madame ficava logo ali, pertinho da
Biblioteca Pública do Estado e para ele, nem a subida da lomba da Espírito
Santo, metia medo ou fazia-lhe minguar o desejo de imiscuir-se naquele santuário
da literatura. Chegava a Casa e ia direto ao pavimento superior, que era onde
se guardavam os tesouros gaúchos e, à vontade como pulga em costura,
se esparramava junto da cupinzama, entre o livredo, e lia. Lia que se esbaldava.
Como andava a cismar com as lendas, não havia livro que bastasse e, à
medida que ia folhando um, outro já ia pedindo aos atendentes que, solícitos,
troteavam na sua volta, trazendo obras e mais obras.
Os dias se sucederam nesse deleite literário e um fim de tarde, avisando-o
a prenda que tinha compromisso para a janta, com um velho amigo de São
Leopoldo, que iria encontrar no restaurante do Hotel Plaza, para tratar de negócios
permanentemente inacabados, solito, achou que era hora de dar um bordejo pelo
Povo Grande e foi arrodear as chilenas, na Rua da Praia, que tinha de tudo.
Ou quase. Praia que era bem bueno, só no apelido.
Andou para cima, andou para baixo, sempre arrastado pela multidão apressada
que deixava o serviço. Na esteira dos caminhantes, foi até o mercado
público. Tomou umas que outras junto aos pinguços que frequentavam
o local, alguns bem importantes no cenário político estadual,
outros que nem tanto e quando já ia adiantada a noite, pagou a rodada
final, disse adeus aos amigos novos, que àquela hora tardia já
eram antigos conhecidos e tomou o rumo, via Borges de Medeiros, para as casas.
Chegou passado da meia-noite. Subiu pela escada, uma vez que tinha um certo
receio de andar de elevador e, descalçando as rossilhonas para não
acordar a prenda que tinha sono leviano, entrou em casa pisando em plumas.
Para sua surpresa a moça não tinha ainda voltado. Talvez que a
conversa se tivesse estendido ou o tal negócio se esticado além
da conta e então, para não ficar preso entre quatro paredes sem
ter com quem charlar, voltou a calçar as botas, enfiou o trinta na guaiaca
que trazia à cintura, porque vira muita gente mal-encarada sob o viaduto
e ganhou a rua de novo. Agora, ao invés de vagar à toa, ia com
destino certo: Queria ver a Igreja das Dores, sobre a qual andara lendo uma
história muy bem escrita pela pena do famoso Dante de Laytano.
Chegando, escorou-se no gradil que protegia a entrada, antes da escadaria e
ficou a apreciar a arquitetura que diziam os papiros que lera, ser barroca,
fosse lá o que isso significasse.
Entretido, enrolou com calma um palheiro e acendeu-o, tirando a primeira baforada
quando se deu conta de que tinha companhia.
Havia parado, ao lado dele, para contemplar também a Igreja, um índio
preto e possante, com ares de operário da construção, uma
vez que, de dentro da sacola que carregava, via o gaudério apontando
o cabo de uma colher de pedreiro e a tampa de uma garrafa térmica.
- Boa-noite! - saudou-o o gaúcho.
- Boa-noite, seu moço! - respondeu o homem.
Alguns minutos se passaram sem que voltassem a falar e por fim,
perguntou-lhe o estranho:
- O moço não é daqui?
- Não senhor... - respondeu o Tuquinha - Sou do Basílio...
- Nunca ouvi falar...
- Fica na Zona Sul... Perto do Herval... - explicou.
- Sei... E o que faz aqui a esta hora?
- Vim dar uma olhada na Igreja... É linda, não?
- Se é... - concordou o operário - Ajudei a construí-la...
- logo
acrescentou, orgulhoso.
- Verdade? - perguntou o gaudério, maravilhado por encontrar
alguém que trabalhara naquela obra. E depois, dando-se conta de que a
Igreja tinha centos de anos, perguntou: - Mas o início da obra não
data de 1807?...
- Isso... Isso mesmo. - concordou o homem, fazendo as contas nos
dedos, para certificar-se da exatidão das datas.
- Devia ser duro trabalhar naquela época, não?...
- Se era, seu moço... Tinha-se de fazer tudo à mão...
- Eu sei... Lá na fazenda é mais ou menos assim. - concordou o
gaúcho, que bem sabia como as coisas eram difíceis.
- Mas era um tempo bom... Havia trabalho à farta.
- Isso também é verdade - voltou a concordar o capataz - que
ficara assombrado com o nível de desemprego que vira na capital.
- Por sorte não trabalho mais... - disse o homem.
- Está aposentado? - perguntou-lhe, para esticar a conversa.
- Mais ou menos...
- Mas então não entendo... Se está aposentado, por quê
anda com a sacola de ferramentas? - perguntou, apontando-a.
- Força do hábito, talvez. - respondeu o estranho. E logo: - O
senhor também trabalha no ramo?
- Não... Já trabalhei...
- Fazendo igrejas também?
- Não. Estradas de piche?
- De piche? - surpreendeu-se, por sua vez, o desconhecido - Nem sabia que se
usava...
- Usa-se sim... Dizem que é para durar mais...
- E dura?
- Não dura nada... Estão todas que é uma bosta! Nas que
não estão, o vivente é assaltado a cada dez léguas...
- Mentira!?... - exclamou o homem, horrorizado, querendo,
como era feito muy naturalmente no Rio Grande, dizer exatamente o contrário.
- Verdade! - confirmou o gaudério.
- Mas e a milícia não faz nada? - perguntou o negro, abismado.
- Nada! Pelo contrário, ajuda a assaltar.
- Isso não pode ser... E o Imperador?
- Imperador? - perguntou agora o Tuquinha, perplexo.
- Sim, o Dom Pedro?
Com aquela, o gaúcho só não caiu do cavalo porque o Malacara
ficara lá no Basílio. Já vira muita gente buena achar que
quem governava o Brasil ainda era o doutor Getúlio mas, o Imperador,
era a primeira vez.
Como viera a pouco do balcão de um bolicho lá no Mercado, achou
que o estranho também pudesse ter passado por lá e, pelo sim,
pelo não, perguntou:
- O amigo bebe?
- Só água da bica e café...
- Sofre de algum mal na cachola? - insistiu.
- Não... Nada que eu saiba...
- Amnésia, quem sabe?
- Ami-quê? - atrapalhou-se o desconhecido.
O gaúcho, lembrando que a prenda uma vez lhe falara da tal de
amnésia, para falar a verdade, a alcoólica, explicou, com ares
doutorais:
- Amnésia... Um troço que dá nos miolos e que faz o vivente
esquecer das coisas... Principalmente das que não quer lembrar.
- Não tenho, não... - apressou-se a dizer o homem.
- Então não sei... - murmurou o Tuquinha, que não sabia
mesmo o
que se estava passando.
- Não sabe o quê? - perguntou o negro, meio desconfiado.
- Não sei como o senhor pode achar que quem manda na terra ainda é
o Imperador?
- Mas não é?... Antes de pender da corda ainda recorri a ele...
- Pare aí um pouquinho! - pediu o gaúcho, para ter tempo de organizar
as ideias - Pediu o quê?
- Pedi que me fosse comutada a pena, uma vez que era... Que era, não,
que sou inocente. - explicou o homem.
- Pena?... De que pena o amigo está falando?
- Do patíbulo! Do que mais seria? - estranhou o negro.
- A la pucha, tchê! - exclamou o chirú, batendo com a mão
na testa ao dar-se conta da situação - Então o senhor é
o...? O...
- O João Pedreiro! Quem o senhor estava achando que eu era?
- Não sei... Talvez alguém cuja mulher estivesse jantando com
algum amigo também... - tentou explicar-se o gaúcho, dizendo o
que primeiro lhe veio a cabeça e que, por sinal, muito o estava aborrecendo.
- Não, sou o João, trabalhador nas obras desta igreja e que foi
acusado, sentenciado e enforcado por um crime que não cometeu!
- Mas não é possível!... - exclamou o gaúcho, que
não acreditava
ainda em tamanha coincidência.
- Sou eu sim!... Pergunte a qualquer um. - garantiu o homem.
- Não... Não é isso... É que ainda hoje andei lendo
sobre o senhor... - explicou melhor o gaudério ainda não desfeito
do
abismo em que se encontrava.
- Lendo? Sobre a minha pessoa?
- Sim... Na biblioteca pública...
- Só se for nalgum jornal safado que tenha noticiado a minha pena!
- Não... Não foi. Foi a história da Lenda da Igreja de
Nossa
Senhora das Dores... - informou o Tuquinha, louco para desfazer qualquer mal
entendido.
- Mas eu não conheço lenda nenhuma... - disse o trabalhador.
- É que no seu tempo não havia... Só começou depois
da sua... Da sua... - e aí o gaudério empacou, pois talvez o homem
não
tivesse ciência do acontecido a si próprio.
- O senhor está querendo dizer depois que me enforcaram?
- Isso mesmo! - exclamou o gaúcho, aliviado por não ter de ser
ele a dar a notícia.
- Era só o que faltava... Lenda, é?
- É verdade... Uma lenda muito bonita, por sinal... - concordou o
capataz, satisfeito porque seria provavelmente ele quem a contaria ao protagonista
da história.
- E eu posso pedi-lhe que a conte para mim? - perguntou o negro.
O Tuquinha, que estava com a história fresquinha ainda na cachola,
sentiu que a noite não estava de todo perdida. Para a patroa, que estava
tratando de negócios de priscas eras, com certeza não estava.
Para ele, sabia agora que não. E começou:
- Foi assim... No tempo em que se amarravam cachorros com chouriço, as
gentes de bem, que sempre fizera cagadas, assim como as demais, tinham medo
de não entrar no paraíso... Mas para elas, sendo abastadas, sempre
havia solução...
- O senhor está dizendo que rico sempre entra no céu? - perguntou
o negro, que não entendera bem o preâmbulo da história.
- Mais ou menos isso... Naquela época... Isto é, na sua, corria
frouxa ainda a indulgência...
O protagonista voltou a interromper:
- Indulgência? Que diabo vem a ser isso?
- Bueno, falando por riba, indulgência era um tipo de salvo-conduto que
se comprava à igreja e que permitia aos pecadores a redenção
ante as portas do céu, de forma que, para eles, sempre estivessem abertas...
- O pobre então estava fodido? - perguntou o negro.
- De certa forma sim... Na verdade, sempre esteve ou por uma razão ou
por outra - filosofou o gaúcho - Mas isso não vem ao caso. O que
interessa é que os pecadores faziam grossas doações à
igreja, como forma de se redimirem dos pecados... Verdade é, que muitas
vezes, segundo consta, doavam à luz do dia... E buscavam de volta na
calada da noite, sob o beneplácito dos padres, que deviam ficar com parte...
- E onde eu entro nessa história? - quis saber o vivente, curioso.
- A igreja estava em obras... Necessárias eram as doações
de materiais de construção... E de prata, para pagar os operários
que eram autônomos alguns e não escravos que os senhores acabavam
emprestando à obra...
- Estou ouvindo... - disse o homem.
- Certa feita, uma doação em espécie acabou desaparecendo
da sacristia... Naturalmente que o vigário abriu em gritedo... Afinal,
roubando da Igreja se estava roubando de Deus... E isso era mais que crime,
era um sacrilégio...
- Dessa parte eu lembro. - corroborou o negro.
- A igreja, embora em obras, mantinha as portas abertas, o que facilitava as
coisas, ou melhor, neste caso, dificultava, porque qualquer um podia ter sido
o surrupiador...
- Então? - perguntou o homem, ao qual o gaudério já estava
achando que realmente tinha algum probleminha de memória.
- Então que como sempre acontece, a bosta, obedecendo à lei da
gravidade, escorreu para baixo... O vigário acusou o sacristão...
O sacristão, ao mestre de obras... O mestre, aos peões avulsos...
E estes, naturalmente, aos escravos que estavam lá naquele dia... Aos
escravos, não, ao escravo único, que era o amigo...
- Foi isso mesmo... - lembrou o negro - Foi isso mesmo...
- Então o senhor foi preso... Como era inocente, foi torturado, que é
uma maneira muy inteligente que a nossa polícia ainda tem, de arrancar
confissões... Mas o amigo, era valente... E inocente... Nem na base do
tabefe confessou o que não fizera...
- Isso mesmo... Eu era inocente...
- Então, porque o causo tinha de ter um desfecho, tomaram o seu mutismo
por confissão e lhe recomendaram uma gravata de sisal que, diga-se de
passagem, lhe foi apertada no pescoço sem demora porque o culpado, todo
mundo sabia quem era mas não podia dizer...
- Aí me fui ao palanque... Isso eu sei, mas e a lenda, de onde surgiu?
- A lenda, na verdade, começou a formar-se depois, por haver o senhor
gritado, na hora da morte, que era inocente e que se vingaria...
- É verdade... Agora que o senhor falou, eu lembro bem disso...
- As coisas começaram a não dar certo... Virava e mexia e um pedaço
da Igreja desabava, sem aviso e sem explicação... Parecia cousa
do outro mundo...
- E então? - quis saber o negro.
- Então que logo o povo se pôs a falar... Que era obra sua aquela
sucessão de desastres... Que a Igreja estava amaldiçoada e que
nunca ficaria pronta...
- E demorou, não?
- Se demorou, meu amigo... Se demorou... - concordou o narrador.
- E o resto? Ficou o dito pelo não dito? - quis saber o acusado.
- Não... O tempo passou... O larápio, às portas da morte,
sabendo que não haveria ouro que comprasse a sua entrada no reino celeste,
durante a extrema unção acabou dando com a língua nos dentes...
Não por decência... Por cagaço...
- E então eu fui finalmente inocentado? - quis saber o escravo.
- Foste! Foste sim. Por sinal, o Imperador aboliu a pena de morte, depois de
tamanha burrada da polícia e da justiça...
- Isso quer dizer que eu não preciso mais ficar vagando a esmo? -
voltou a perguntar o homem, de quem o Tuquinha havia, com a história,
retirado um peso de sobre os ombros e cortado, finalmente as cadeias que o prendiam
a terra.
- É claro que não, amigo...
- E o senhor acha que eu entrarei no céu, depois de todos estes anos?
- perguntou, temeroso.
- Tenho certeza plena... Vade in pace!...
- Então acho que vou tomar o rumo e descansar, finalmente.
Dito isso, o negro abraçou o gaúcho, bem apertado, como quem
abraça alguém que lhe safou de um grande entrevero e desapareceu
no meio da noite.
No chão, junto da grade, ficou a sacola das ferramentas que ele não
necessitaria mais.
O Tuquinha, orgulhoso de haver encaminhado uma alma para o paraíso, desta
vez por bem, voltou para casa, onde encontrou a chinoca, esparramada no meio
da cama, dormindo a sono solto e sorrindo... Sorrindo com ares de quem encontrara
ninho de égua... Ou trevo de quatro folhas...
Então, trocando de roupa para finalmente deitar-se, pensou lá
com seus botões que talvez, na manhã seguinte, fosse conveniente
que ela atravessasse a rua, até a Cúria Metropolitana, para doar
uns cobres à Igreja e garantir também a sua indulgência.
(Porto Alegre, 02/jun/2003)
Que tal comprar um livro de Luiz Morvan Grafulha Corrêa? Barbaridade, tchê! Tuquinha e os Mitos Rio-Grandenses |