O sujeito mais feliz que eu conheço chama-se J. (resguardemos a identidade),
tem 30 anos (a mesma idade minha), é um ex-drogado, agora um operário
qualificado, poeta bissexto, toca bateria na banda da Congregação
Unidos em Jesus e tem um sólido casamento de seis anos!
Conheci J. nas festinhas rock'n'roll que os meus primos promoviam. Muita
bebida e meninas louquinhas! O J. era um radical que só ouvia heavy
metal satanista. Então traduzi umas letras para a sua particular
devoção. Passou-se um tempo. Talvez uns dois anos. Então
reencontrei J. e quase não o reconheci! Cabelo cortado, trajes decentes,
outra pessoa! E a renegar seu passado "satânico", a dizer que
blasfemava sem saber. Agradecia eu ter traduzido as letras, pois ele não
sabia inglês, e ouvia "coisas abomináveis". E eu tentando
entender.
Realmente escandalizado, o J. ouvia um som pesado e nem sabia do que se tratava!
Agora está feliz. Tranquilo. Sem inquietações. Não
pede muito da vida. Queria uma bateria. Não podia comprar. Descobriu
no quarteirão uma portinha de igreja com banda e tudo. Lá dentro
o maior rock'n'roll! Enturmou-se, converteu-se. Aceitou Jesus e o Pastor
Dirceu. Foi tocar bateria na Congregação. Logo atraiu uma donzela.
A., 5 anos mais jovem. Sucedeu-se o flerte. Logo, o namoro. Tudo aprovado pela
Congregação.
J. largou as drogas. E depois as bebidas. Passou a tocar nos cultos. Daqueles
bem animados. Hinos e palmas. Gritos, às vezes. Um show! E ele muito
feliz, agora que se anunciava o noivado. Purificado e feliz, um novo homem.
Um irmão da igreja tornou-se seu novo amigo. Conseguiu uma carta de recomendação
para uma empresa que fornece peças para a FIAT. Ele fez os testes e exames
e foi aprovado. É hoje operário, com um salário de 1.200
reais. O maior salário na sua família. Nunca sonhou em ganhar
tanto!
Convertido, J. agora se diz 'gospel'. Ouve rock, com certeza. Mas é
rock 'gospel'. 100% cristão, ele garante. Parece hard rock,
mas é "white metal". Lê poetas do "mundo",
mas sua leitura de cabeceira é a Bíblia, e algum livro indicado
pelo Pastor Dirceu. Afinal, recomendação é recomendação!
E no mais? Preocupações políticas? Nenhuma. (Ele sequer
lê os jornais, nunca ouve a "Voz do Brasil") Só se lembra
em época de eleição. Sem estresse, contudo. J. só
vota em candidato apoiado pelo Pastor.
A casa é de propriedade da família da esposa, a jovem A. Mas nada
de pressões. Todos evangélicos, e amáveis. A grana que
J. economizou foi investida num carro. FIAT. Modelo atualíssimo. A casa
foi reformada no segundo ano do casamento. Acomodações simples.
A decoração está sob cuidado da esposa. Ela escolhe tudo.
No mais, ele manda. Compras, despesas, prestações. Ele assume
tudo. Não deseja filhos. Obrigaria-o a mudar de rotina, ampliar a asa.
Ou seja, transtornos. A mulher faz a vontade dele.
Até porque A. é submissa. Ótima anfitriã, companheira
eficiente. J. nada reclama. Ela já sabe o que ele quer. "A mulher
é serva do homem, assim como o homem é servo do Senhor."
Ele diz, e ela concorda, em gentil resignação. O marido tem sempre
a razão. Eis uma mulher feliz em servir a se homem! Um exemplo para as
'neuradas' modernas que se sonham independentes!
Um belo casal. Causa-me inveja. Vivem em cumplicidade, em doce idílio
devocional. Submersos num mundo de símbolos - inspirados no comum, o
"mundo", a vida "temporal", mas recodificados em "nome
do Senhor". Ouvem música gospel, a decoração
é gospel (imagens de Jesus, etc), a comida é gospel,
a padaria é gospel (pertence à um devoto da Congregação),
os doces são gospel (têm menos 'açúcar nocivo',
conforme me informam), as roupas são gospel (nada de expor os
corpos) e até o carro recebe manutenção numa oficina gospel
(chama-se justamente "Elétrica Gospel" e o proprietário
é o filho do Pastor Dirceu)
Felizes. Renda mensal suficiente. Ele desconta o dízimo (é fiel
dizimista) e ela costura e borda uns panos de pratos que vende num brechó,
ou faz doações para irmãos necessitados. Tudo dentro de
casa. J. nem sonha com a hipótese da esposa trabalhar fora! A mulher
cuidadosa, eficiente - mas dentro do lar! Para cuidar do marido e dos filhos
(caso existam). Nem estudar é tão preciso. Cozinhar e lavar, está
de bom tamanho. E A., observemos, está contente com seu 2o. Grau. Está
contente com seus afazeres. Tem um marido correto e fiel. (Fidelidade é
agora a "marca Registrada" de J., antigo 'mulherengo'.) Ela realmente
está contente com o marido. Nem dá qualquer crédito aos
antigos colegas dele, quando lembram um certo passado. "Meu marido tomou
rumo na vida.", ela toda sorrisos.
E realmente, o J. está realizado. O que mais poderá desejar, além
da salvação de sua alma? Nem imaginava chegar tão longe!
Imaginava-se morto caído numa sarjeta, sufocado no próprio vômito.
Hoje, está aí, fiel à esposa, fiel ao Senhor, fiel ao Pastor
Dirceu. Fidelidade é o seu estandarte. Assim encontrou seu "lugar
no mundo", isto é, fisicamente "no mundo", espiritualmente"
junto ao trono do Altíssimo".
Eu agradeço a hospitalidade do casal, apresento minhas despedidas, e
alcanço a rua, o mundo dos comuns. Abandonando o ninho de amor, o testemunho
de um casamento devotado, confesso que vou passo a passo morrendo de inveja.
(02/03 jan 08)