A Garganta da Serpente
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Duodécima charla:
A Raposa e a Cegonha

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

Na duodécima noite, monsieur La Fontaine apresentou-se para a tertúlia, todo sorridente, esparramando seu charme ao chegar com pontual e planejado atraso para a reunião, estando já os demais partícipes à volta da mesa.

Madame, que já estava ao lado de Esopo, lançou-lhe um olhar de pouco caso que, de certa forma, no íntimo, tranquilizou ao fabulista, que se sentiu física e emocionalmente liberado para redirecionar o seu afeto.

- A palavra é sua, monsieur! - disse-lhe a viúva, à rebours da lei estabelecida pelo uso e pelo costume, mas ansiosa que estava, porque o acreditava despreparado e queria vê-lo em betas.

O capataz estranhou aquela atitude a la diable e concedeu, ao orador, seu agrément tardio, mas necessário, para não perder o pulso das coisas:

- Quando estiver pronto, caro senhor!

La Fontaine tomou assento ao seu lado e atirou, afetado, a ponta do cachecol amarelo por cima do ombro e começou:

- Esta noite vou narrar-lhes a fábula da Raposa e da Cegonha!...

- E certamente não será em versos, não é monsieur?... - voltou a prenda a espicaçá-lo.

La Fontaine fez ouvidos moucos e começou, para total desespero da dama:

- "Quis a raposa matreira,
Que excede a todas na ronha
Lá por piques de outro tempo
Pregar um ópio à cegonha.

Topando-a, lhe diz: "comadre,
Tenho amanhã belas mingas,
E eu nada como com gosto
Sem convidar as amigas.

De lá ir jantar comigo
Quero que tenha a bondade;
Vá em jejum, porque pode
Tirar-lhe o almoço a vontade."

Agradeceu-lhe a cegonha
Oferenda tão singela,
E contava que teria
Uma grande fartadela.

Ao sítio aprazado foi,
Era meio-dia em ponto,
E com efeito a raposa
Tinha já o banquete pronto.

Espalhadas num lajeado
Pôs as mingas do jantar,
E à cegonha diz: "comadre,
Aqui as tenho a esfriar.

Creio que são muito boas -
Sans façon - vamos a elas."
E logo chupa a metade
Nas primeiras lambidelas.

No longo bico a cegonha
Nada podia apanhar;
E a raposa em ar de mofa,
Mamou inteiro o jantar.

Ficando morta de fome,
Não disse nada a cegonha;
Mas logo jurou vingar-se
Daquela pouca vergonha.

E afetando ser-lhe grata,
Disse: "comadre, eu a instigo
A dar-me o gosto amanhã
De também jantar comigo."

A raposa lambisqueira,
Na cegonha se fiou,
E ao convite, às horas dadas,
No outro dia não faltou.

Uma botija com papas
Pronta a cegonha lhe tinha;
E diz-lhe: "sem cerimônia,
A elas, comadre minha."

Já pelo estreito gargalo
Comendo, o bico metia;
E a esperta só lambiscava
O que à cegonha caía.

Esta, depois de estar farta,
Lhe disse: "prezada amiga,
Demos mil graças ao céu
Por nos encher a barriga."

A raposa conhecendo
A vingança da cegonha
Safou-se de orelha baixa,
Com mais fome que vergonha.

Enganadores nocivos,
Aprendei esta lição:
Tramas com tramas se pagam,
Que é pena de Talião.

Se quase sempre os que iludem
Sem que os iludam não passam
Nunca ninguém faça aos outros
O que não quer que lhe façam."


À conclusão, quando todos aplaudiram a maravilhosa fábula, escrita em versos e muy bem recitada, a viúva abandonou o seu lugar, junto ao grego e atirou-se nos braços de monsieur, em efusivos abraços e beijos, exclamando:

- Linda, mon amour!... Linda!...

- Meus parabéns, senhor La Fontaine! - disse o gaudério, que nem se importou muito com o arroubo da prenda.

O grego também cumprimentou-o:

- Re... Re... Realmente, digna da sua capacidade, colega...

Monsieur ficou da cor de um tomate por ver, sobretudo, que o novo objeto do seu afeto havia gostado.

A madame no entanto, depois dos abraços e dos beijos, não contente, aboletou-se no colo do francês, declarando:

- Mon petit, leve-me junto para a França!...

Monsieur, polidamente, objetou, perguntando:

- Mas o que eu faria com madame, levando-a?...

- Ora, bijou, faça o que quiser... - e aí, acrescentou: - Ou não faça, porque, afinal, eu já tive um marido que também não fazia e nós nos dávamos muito bem...

O capataz enxotou a esposa de volta ao seu lugar e retomou as rédeas da tertúlia, antes que se campeasse a falta de vergonha e voltou à fábula:

- O que eu mais gostei, senhor La Fontaine, é que a moral da história também foi escrita em versos...

Ao que disse a moça:

- Eu, porque está dita e revelada a tal moral e assim não preciso ficar pensando em qual seria!...

La Fontaine sacudiu a cabeça, pensando lá com seus botões, que era por essas e outras, que não devia levá-la consigo. E concluiu que era, principalmente, pelas outras. Já, avec monsieur le capataz, seria diferente. Uma visita aos melhores alfaiates... Uns sapatos de salto adequado... Calções rendados... Meias justas, subindo até acima dos joelhos... Chapéu de plumas de pavão... Seria um pedaço de mau caminho!

O gaúcho trouxe-o de volta do devaneio:

- Senhor La Fontaine... Por ventura, há algo que o senhor queira acrescer a esta narrativa?

O francês disse que não havia mais nada e a prenda voltou a falar, perguntando ao marido, sem o menor rodeio:

- Lindinho, se monsieur quisesse me levar para França, tu objetarias?

O chirú pensou e repensou e como não adiantava aquecer a água para outros beberem, respondeu:

- Se fosse do teu agrado, querida...

Esperançosa, a dama voltou-se para o fabulista e afiançou-lhe:

- Se essa raposinha me levar, garanto que jamais jejuará por ter de comer em gargalo estreito!...

(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)

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