Na décima noite, retomaram, os quatro personagens, os seus lugares
à volta da mesa de tábuas largas da cozinha da casa do gaudério.
Retomar seus lugares, evidentemente, é uma força de expressão,
uma vez que se havia, por vontade de La Fontaine, efetuado um rodízio
e ele, que, durante as primeiras noites, sentara-se ao lado da viúva,
agora estava ao lado do capataz, enquanto que, por sua vez, Esopo tinha sobrado
como par para madame.
Para o gaúcho, se por um lado melhorara, porque assim a chinoca não
podia ficara a esfregar-se no fabulista francês, por outro, passaria a
amargar as insinuações de monsieur, que o elegera como
alvo da sua ternura súbita e da sua volúpia.
Como La Fontaine estava ainda em desvantagem em relação ao grego,
no tocante às narrativas, em muito lembrando da fábula, já
vista e comentada, da Tartaruga e da Lebre, o gaudério achou que talvez
fosse conveniente, para emparelhar a penca, na qual ia Esopo de corpo e luz,
voltar a oportunizar ao francês que recuperasse a cancha perdida.
- Senhor La Fontaine, - iniciou o chirú - se for do seu agrado, considerando
que o senhor Esopo já teve mais oportunidades de brindar-nos com as suas
narrativas, a noite é sua...
O francês fechou o pequeno espelhinho de moldura dourada com o qual estava
apreciando, ao que parece, com muita satisfação a maquillage,
agradeceu ao invite, com uma vênia, limpou a goela com uma tossidela e
começou:
- Pensei em narrar-lhes, esta noite, a fábula do Leão e o do Ratinho,
em homenagem ao colega Esopo, seu autor, e, também, a um grande escritor,
por sinal brasileiro, de Taubaté, o imortal Monteiro Lobato, que a adaptou
magistralmente ...
O guasca velho apressou-se em rabiscar a introdução à ata,
com todo o esmero, apontando os dias do mês e da semana, o nome dos presentes,
acrescentando ainda o do orador, do homenageado e do autor, sublinhando o tema
da charla que estava se iniciando.
A madame, que havia tomado um livro emprestado ao deputado, de autoria
do ilustre paulista, intitulado Fábulas, ao qual passara a noite a ler
e a suspirar, perguntou:
- Qual delas, mon bijou?...
O fabulista pensou um pouquinho e respondeu, cheio de si, demonstrando que,
além de escritor, era também um atento leitor:
- A que madame preferir, uma vez que de leões e ratinhos, há
muitas...
Um ligeiro tremor percorreu a senhora, que, na verdade queria mesmo era sugerir
outra coisa, mas que se conteve e controlou, porque, afinal, monsieur
havia trocado de lugar e acabou por limitar-se a pedir, cheia de segundas intenções:
- A do "amor com amor se paga"...
O francês aquiesceu e iniciou a história propriamente dita:
- Um ratinho penetrou, inadvertidamente na caverna onde vivia o Rei dos animais...
- Mas que ratinho mais ousado... - comentou a senhora, que lançou um
outro olhar de desconsolo ao narrador e atirou ainda, irônica: - Algumas
pessoas deviam aprimorar-se com ele!...
- O Leão... - reiniciou o narrador.
Aí, foi a vez do gaúcho também comentar:
- Eu também já estive na toca do Leão!
La Fontaine, perplexo, pois não lhe constava haver leões na terra
brasilis, perguntou, sem conseguir disfarçar o espanto:
- Verdade, monsieur Tuquinha?
- Verdade... - confirmou, ajuntando: - Estive lá para justificar à
Receita uns cobres que não declarara...
A viúva, compreendendo a analogia, acrescentou, ligeira:
- Nessa toca eu também já estive!
Desta vez foi o marido que se surpreendeu, repetindo o francês?
- Verdade, querida?
Ela confirmou, com um aceno de cabeça e acrescentou:
- Quase que pela mesma razão que tu, Lindinho...
- Também não declaraste os cobres recebidos? - quis saber.
- Não... Os cobre, não... Um apartamento!... - explicou.
O grego, que vez por outra dava uma bola fora por não compreender bem
o sentido das coisas, perguntou, com pureza:
- A madame adquiriu com honorários havidos em função de
alguma causa ganha?
A moça voltou a negar com a cabeça, explicando:
- Não, senhor Esopo... Ganhei de um amigo generoso...
- Voltemos à charla! - recomendou o gaudério e o francês
retomou, de onde parara:
- O Leão, vendo aquele pequeno intruso a vagar por sua casa, apanhou-o
e ia levá-lo à boca...
- Ai, que horror! - apartou outra vez a moça, arrepiada de nojo.
O gaúcho justificou:
- É a lei natural da vida, minha querida... O maior come o menor...
- Isso é verdade... - concordou, continuando: - Eu que o diga...
O marido pensou em perguntar por que, mas desistiu.
O grego coitado, que não estava no melhor dos seus dias, tomou o seu
lugar e inquiriu:
- A... A... A senhora concorda então que o maior deva comer o menor?...
- É claro!... Eu mesma sempre fui comida por gente maior do que eu...
- aí pensou e fez a observação: - Com exceção
do pai da borrega, que era um homúnculo!
O gaúcho afundou na cadeira, deixando escapar a pena e entornando o tinteiro
sobre a ata da reunião.
A charla ficou em suspenso, até que a mesa fosse limpa e só depois
que tudo se acertou é que foi retomada, prosseguindo La Fontaine:
- Ia levar o camundongo à boca, quando o Ratinho implorou por sua vida,
alegando à sua majestade, que era pequeno demais para ser sacrificado,
uma vez que não satisfaria ao apetite do soberano....
- Isso, o ratinho... - voltou a interromper a donzela - Eu, por mim, coloco
a mão no fogo e tenho certeza que sempre satisfiz!...
Monsieur aproximou-se do gaudério e sussurrou ao seu ouvido:
- Mon mignon, avec moi esse tipo de problema o senhor não terá!...
O gaúcho considerou a proposta e agradeceu, preferindo continuar correndo o risco e o francês, mais confiante, tentou concluir a narrativa
da fábula:
- O Leão, que na verdade não estava faminto, acabou soltando o
pobre bichinho, que logo sumiu da sua vista...
- Isso, - observou o gaúcho - Porque, quem não é visto,
não é lembrado...
A prenda discordou, peremptoriamente:
- Isso é o que tu dizes Lindinho porque eu, embora fique às vezes
muito tempo sem ver os meus amigos, penso sempre neles e tenho convicção
de que, por sua vez, também eles não esquecem de mim...
O gaúcho concordou e a charla continuou:
- Passado algum tempo, o Leão caiu em uma rede que lhe haviam armado
alguns caçadores...
- Mais maldades! - observou ela - Este mundo é muito cruel, vocês
não acham?
Les bonhommes concordaram que talvez fosse mesmo.
Monsieur La Fontaine continuou, sem dar-lhe atenção:
- O Leão debateu-se a mais não poder e por fim, exausto e cativo,
deixou-se prostrar à sua sorte... Foi quando o Ratinho, que havia visto
o seu desespero, surgiu e reconhecendo àquele que o havia poupado, um
dia, se pôs a roer as cordas e acabou por retribuir ao monarca, libertando-o...
- E a moral da história, qual é?... - quis a madame saber pois, inconstante e instável, já havia esquecido que fora ela mesma
a clamar pela fábula.
- Ora, querida... Que amor, com amor se paga! Que aquele que pratica o bem,
deve o bem receber de volta!... Ou ainda, que mais vale o esforço continuado
do pequeno do que os arrancos furiosos do grande!...
A moça pensou... Pensou e retrucou:
- Em tese, não é, Lindinho?...
O gaúcho pensou que talvez não fosse a pessoa mais indicada para
discorrer sobre praticar e receber o bem e achou melhor ficar calado.
O grego Esopo, que estava em um dos seus dias de mais involuntária inspiração,
quis saber:
- A... A... A senhora não concorda que é dando que se recebe?
- Concordo! - disse a moça, ratificando: - Com isso eu concordo plenamente!
- De... De... Deve ter recebido muito, durante a sua vida, não?... - voltou a inquiri-la o grego.
- Senhor Esopo, na verdade, dei bem mais... - e aí, lançando um
olhar para monsieur, completou: - É uma coisa da qual não
me arrependo... Pelo contrário, desejo ainda dar muito e muito mais!...
O gaúcho resolveu interceder, antes que a coisa descambasse:
- Não é isso que o senhor Esopo está perguntando, querida!...
- Ué, mas ele não queria saber se eu já tinha dado muito?...
- Queria, meu amor... Mas, mais exatamente, se tu já tinhas dado, no
sentido de fazer o bem?... E de recebê-lo de volta!?...
- Pois é do que eu também estou falando... Cada vez que dou, eu
estou fazendo o bem!... E, simultaneamente, já o estou recebendo de volta!...
- aí ela lembrou do Alemão, de quem não tinha tido retorno
e acrescentou: - Bem, quase sempre, não é?...
Aí foi a vez do gaudério encerrar a charla daquela noite e perguntar,
porque, afinal, perguntar não era ofender:
- Está certo, querida... À propósito, não queres
me fazer tal bem esta noite?... - e acrescentou: - Eu te garanto que terás
de volta tanto ou mais do que deres...
A moça procurou por monsieur que já ia, junto com o grego,
batendo em célere e estratégica retirada e, voltando-se depois
para o marido, que com tal defecção se havia tornado a única
alternativa, e perguntou, resignada:
- E há outro remédio, Lindinho?...
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)
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