A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Uma carta sobre a privacidade ameaçada

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

O gaúcho andava lejos das casas e como tempo havia em abundância, esteve a ler um livro, que lhe caíra em mãos, que tratava da falta de privacidade a que nos estávamos submetendo, tacitamente ou não, e assim, lascou, para quem se interessasse:

Indiada Deslumbrada:

Andei lendo, por estes dias que tenho passado no exílio, um livro de um autor canadense - e por falar nisso, lembro que há duas versões para o nome deste país, uma, que teria sido dado pelos portugueses que naquelas costas iam pescar bacalhau e, não encontrando, avisavam para os navios irmãos que se acercavam, acenando as mãos dos tombadilhos e gritando "Cá não dá!... Cá não dá!..." Outra, mais provável, é que lá, como aqui no Basílio, habitava, em tempos de antanho, uma tribo de peles-vermelhas, de nome "Canadás", título, por sinal, bem diverso dos da nossa, que era, se não me engano "Aqui-dá-alguma-coisa", que não lembro mais... Bem, na verdade talvez nem queira lembrar, porque era uma história que meu ex-sócio, que nascera em Estrela, contava todos os dias e que muito me aborrecia...

Pois continuando a falar da leitura, depreendi, por obra do autor Reg Whitaker, que as pessoas estavam abrindo mão da privacidade em troca de um pouco de paz e de sossego. Explico. Vi, ainda hoje, nos noticiários, que aqui na capital da Província estão instalando umas câmeras muy xereteiras, cuja finalidade é acabar com a bandidagem. Acabar não é bem o termo. Melhor dito seria espantá-la, para outra freguesia, longe dos holofotes e da fama não pretendida.

Agora que nos tiraram as garruchas e as escopetas - e devemos lembrar que por aqui tudo nos vão tirando devagar, - talvez que seja esta uma maneira de nos darem proteção em troca. Por incrível que pareça, a coisa funciona, uma vez que, noutras capitais, a implantação do sistema fez cair vertiginosamente o surto de assaltos e crimes dessa ordem, que eram perpetrados, na maior sem-vergonhice e cara dura, em plena luz do dia e, pasmem, até sob as barbas da autoridade competente para reprimi-los.

Aí andei pensando nos prós e nos contras. Nas vantagens e desvantagens de tal feito. Imaginei, por exemplo, que não sendo ladrão e nem criminoso muito perverso ou perigoso, estivesse rodando aqui pela capital para não ser encontrado por algum ex-amor que me quisesse o couro ou coisa ainda mais querida e de mais serventia e, sem querer, fosse alumiado e capturado por uma dessas tais objetivas. Problemático, não?

Ou se quisesse dar uma rodada na guaiaca ou nas chilenas na tal Rua da Praia, mergulhado no anonimato e de repente, algum operador que me tenha visto o retrato nalgum lugar grite: "Olha lá o Tuquinha!". E lá se vai uma vida inteira de probidade e de decência.

Aí pensei ainda mais um pouco: e se a moda pega? Se o patrão, que gosta dessas coisas modernas, por exemplo, intenta de instalar, lá na fazenda, este tal mecanismo desvendador dos pudores alheios? Como é que eu vou ler o Diário da Manhã na santa paz de detrás das moitas? Pior: roubar um beijo da patroa? Tomar banho pelado na sanga de águas tépidas que serpenteia atrás das casas? Vadiar um pouco nas tardes de verão puxando alguma trairinha do arroio durante o horário de expediente ou outra coisa qualquer que seja natural aos mortais?

Em verdade, não sei se sou a favor. Nem sei se sou contra, porque afinal, não é que nem governo, contra o qual sempre se deve estar, mesmo que nele se tenha votado, iludido ou enganado.

De toda a sorte, vou voltar a pensar no assunto numa noite dessas em que me falte o sono ou o abraço da gauchinha, e quem sabe, mais dia, menos dia, tenha uma opinião formada, resistente, sólida e escorada em arrimo estável e prometo, voltarei a discorrer sobre o tema.


Um abraço,
Tuquinha

Porto dos Casais, 29 de setembro de 2004.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Que tal comprar um livro de Luiz Morvan Grafulha Corrêa?


Barbaridade, tchê!


Tuquinha e os Mitos Rio-Grandenses
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br