O gaudério ficara muito entristecido com a notícia que lhe chegara, naquela noite, do passamento do Grande Governador, a quem o Rio Grande devia seus dias de maior glória desde o Decênio Histórico. Assim, ainda com o coração a bater com força, abancou-se e escreveu:
Bravo e Último Caudilho:
Meu nome é Tuquinha. Do Basílio, e creio que, dizendo isso, tudo
digo, pois havereis de lembrar que em noites de breu que a tudo escureciam,
inclusive e sobretudo à pátria amada, que vivia um negrume sem
fim por conta e obra da Gloriosa, muitas vezes, por caminhos tortuosos, através
do Aceguá, das vilas do Upamoroti, das Três Vendas ou do povo grande
de Rivera, embrenhei-me, nas madrugadas frias, ludibriando, aqui a federal,
lá a aduana, levando na garupa da velha Chimbica o meu amigo deputado,
para prestar-vos solidariedade e para dizer da falta que a terra e o povo de
vós sentiam.
Mas não é disso que nesta hora de dor e neste momento de angústia
quero falar-vos: na verdade, quero dizer da honra que tenho e do brio que exalto,
de haver sido privilegiado por ter visto o sol primeiro neste mesmo chão
magnífico onde a vós, um dia, igualmente, o sol também
alumiara. Mais: dizer-vos que agora, tenho olhado para a velha espada, que por
vós alevantei uma vez e outras tantas, se necessário, alevantaria,
porque, fazendo-o por vós, era pelo Rio Grande que fazia e era, ao fim
e ao cabo, por mim mesmo que a erguia, e que jaz arriada e inerte atrás
da porta de entrada e que creio, ninguém mais me fará portar ou
tirar da bainha.
Dizer-vos ainda que a pátria, mais uma vez ficou órfã.
Órfã de sonhos, órfã de ideais e principalmente,
no desamparo de quem, sem vergar-se jamais aos opressores e sem coadunar nunca
com os tiranos, pelo seu sofrido e desesperançado povo, a voz alteasse
como só se alteou a vossa, de cujos ecos, que reverberaram nestas coxilhas
primeiro e no resto do país, depois, ainda escuto o justo clamor e hão
de escutar para sempre, receosos, o ressonar, os detratores das gentes e os
dilapidadores do patrimônio público.
No más, agradecer pelo que fizestes pela nossa honra de gaúchos
e pela nossa dignidade de brasileiros, quando assentastes o garrão contra
a hipocrisia que da malta de 61 se apossara. Dizer da nossa gratidão
pela energia que temos; pela água que bebemos; pelos telefones que utilizamos;
pelas escolas nas quais fomos apartados da ignorância; pelas estradas
pelas quais circulamos e pelas quais circula a nossa produção;
pelo aço que forjamos; pela gasolina que destilamos e refinamos; pelo
banco que financiou as nossas safras e abrigou, para os gaúchos, a poupança
dos gaúchos; pela distribuição das primeiras glebas de
terra aos que terras não possuíam para suas sementes deitar e
assim por diante, num rol de coisas buenas que nunca se há de findar
e num lote de obras magníficas que perdurarão para sempre.
Mas nem só de agradecimentos devo falar. Devo dizer também da
culpa que carregamos no peito por nos havermos abombado quando carecíeis.
Da vergonha que sentimos por não vos termos acompanhado em resistência,
nem vos havermos seguido em defesa da democracia, naquele primeiro de abril
de 64. É uma nódoa que carregamos na alma e que ainda por muito
tempo se há de alastrar, qual mancha de querosene em chão de tábuas
corridas e da qual, magnânimo, jamais falastes, e longânime, jamais
cobrastes.
Como disse alguém por aqui, encerra-se, com a vossa partida, um dos ciclos
mais belos e mais apaixonantes da vida política gaúcha e brasileira.
Ide com Deus, valoroso cabo-de-guerra.
Que o dia de amanhã vos encontre de bombachas enroladas às canelas,
de botas descalçadas, mateando nalguma sombra fresca, rodeado por aquela
plêiade de bravos que vos antecedeu e que manteve a água chiando
à vossa espera.
Ide com Deus, protegedor perpétuo da nossa vilipendiada pátria;
caudilho último da nossa vasta estirpe; cavaleiro audaz da nossa finda
era e patriarca permanente de um povo que há de sofrer como nunca a vossa
ausência.
Tuquinha
Basílio, 21 de junho de 2004..
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