A Garganta da Serpente
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Tuquinha e o general Bento Gonçalves

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

Com a possibilidade que se lhe abrira de entrevistar-se com entes lendários que de fato nunca tinham existido como seres vivos, a não ser na imaginação popular, ou tinham, mas já haviam há muito desencarnado, o índio velho ficou a matutar. Afinal, se fora possível encontrar os mitos e falar com eles, decerto que, com calma, fé e jeito, seria igualmente capaz de encontrar as grandes personalidades Rio-grandenses que, de certa forma, também se haviam transformado em lendas. Não lendas para assombrar e levar em cagaços as criaturas de menos luzes, como era natural no folclore, mas lendas, isto sim, para serem imitadas e seguidas e que haviam feito do Rio Grande o que ele é hoje: Uma terra buena e progressista, de gente capaz, empreendedora, justa e, acima de tudo, hospitaleira e cortês que em nenhuma outra parte do mundo, igual hay.

Como já havia se avistado com o primeiro grande caudilho, o índio Sepé Tiaraju, achou que a próxima charla devia, por força de direito e de obrigação, dar-se com o venerável general Bento Gonçalves. E assim foi.

Como também já havia feito, quando da vez das lendas, sabia que, para que as coisas pudessem dar certas, era preciso, antes de tudo, entrar no clima. Transportar-se por assim dizer. Para tal, nada melhor do que a leitura de livros buenos, de gente séria e ilustre que detinha o saber. Então, na primeira oportunidade que se lhe propiciou, deu de mão, na biblioteca do deputado, num ror de livros sobre o homem - o general, - dentre eles, os dos lentes Tasso Fragoso; Walter Spalding; Lindolfo Collor; Amyr Borges Fortes e Fidélis Dalcin Barbosa, para dizer pouco. Ou muito, nem sei.

Noites e noites se enterteve na leitura, coisa que, se para ele era buena, para a viúva ainda mais, porque não tinha que refuga-lo e podia repoltrear-se solita na cama e sonhar a la larga com tempos que lhe haviam sido melhores. De mais amores e emoções, que é para ficar bem entendido.

Lidos e relidos os livros, achou o gaudério que era hora de partir, assim, anunciou o propósito ao patrão, que sendo esclarecido não fez oposição, pelo contrário, incentivou. Deu um beijo de despedida na viúva e, sem olhar para trás, pois sabia que ela estaria a secar a boca com o punho da manga da camisa que vestia, para retirar algum resquício de baba que o gaúcho lhe deixara, calcou a virilha do flete - o Malacara - e saiu de escoteiro, sem companhia, a não ser a do Criador e sem bagagem além do poncho e da mala de garupa onde levava uma coisinha ou outra. Pouca, porque era índio simples e a fome haveria de aplacar em qualquer biboca, num ou noutro bolicho de beira de estrada. E para dormir... Bem, um galpão de fazenda, uma tapera ou uma taleira frondosa sob a qual se enrodilharia ao poncho e dormiria à luz do firmamento, de preferência depois de algum enrosco com alguma china bonita, só para alembrar como é que era, visto que, em casa, a cara-metade havia resolvido purgar as culpas e batera cadeado no parque de diversões. Depois de muito frequentado, isso também era verdade, tanto que era mais conhecido no povo que o parque Tupy.

Pela carreteira da intendência marchou em direção da vila do Basílio, por quase duas léguas, até que esta entroncava com outra, que levava ao Cerrito e ao Olimpo, depois de cruzar pela vila de Conde Matarazzo. Lá, tendo passado a seco o Piratini, seguiu por estrada estadual, de terra, sempre no trote pelo acostamento, em direção a localidade de Alto Alegre, depois Capão do Leão e Pelotas, onde pernoitou no Parque de Exposições Dr. Ildelfonso Simões Lopes.

Na manhã seguinte, cedinho, depois do amargo com os peões que estavam aquerenciados nos galpões do dito Parque, encilhou o cavalo e saiu pela Avenida Fernando Osório, até atingir a Br 116, na direção de Camaquã, que era seu destino final. No caminho, foi se alembrando de outro tempo, quando marchara, lá nos idos de 61, a testa de um piquete de bravos, até a capital, para somarem-se aos esforços do governador Leonel de Moura Brizola, que resistia no Palácio Piratini à tentativa de golpe contra as instituições democráticas vigentes e constituídas.

Logo de saída, à esquerda, ficava o Monte Bonito, de onde muita

gente guapa se lhe havia ajuntado naquela época. Mais adiante, o Cerrito Alegre. A meio do caminho, as vilas de Boqueirão, Quevedos e Bom Jesus, todas também berço de gente valente que havia aderido à coluna. Além, a vila da Cruz, logo passando a bela Pérola da Lagoa. Finalmente o Cristal, do inesquecível Enilton Grill que, patriota que era, na época os esperara à frente de outro lote de valentes que haviam aderido, oriundos das terras próximas, principalmente de São Lourenço do Sul, Cruz e outras e que estavam às margens do Camaquã, desde a véspera, afiando os facões. Aquela lembrança de patriotismo alevianava a alma do gaudério e o Malacara, que casualmente fora a sua montaria de então, resfolegava faceiro, sentindo no ar o odor de um tempo de sonhos e de glórias que não voltariam mais.

O sol ia se apagando lá nas terras Cisplatinas quando chegou à porteira da fazenda do ilustre general, depois de haver cruzado o Rio Camaquã.

No alto da coxilha, a casa. A casa velha, dentro da qual o sonho de liberdade, igualdade e fraternidade, que fora a legenda farroupilha e que ainda hoje estava de forma inalienável cosido à bandeira do Estado, fora concebido e embalado.

Desmontou e abriu-a. Fez o Malacara atravessar o pórtico e fechando-a, tornou a montar para subir o repecho.

A cachorrada levantou as orelhas e desceu para encontrá-lo, latindo amigavelmente. Da beira da lagoa que ficava à esquerda de quem enveredava lomba acima, um quero-quero alçou voo e veio em sua direção, grasnando seu "bem-vindo a esta terra". No platô, voltou a sofrenar o pingo e a desmontar, chegando-se até soleira, respeitosamente.

Um preto velho saiu das sombras e desceu os degraus da casa.

- Boa-noite viajante! - saudou-o.

- Boa-noite! - respondeu o cavaleiro.

- O que o traz a nossa casa em hora tão tardia?

- O senhor desculpe pela hora, mas venho cavalgando desde o Basílio...

- Quer pouso? - interrompeu o negro.

- Em verdade, não...

- Um mate, quem sabe?

- Não... Não, obrigado.

- Mas então o gaúcho chegou-se para quê?

- Tinha esperanças de poder entrevistar-me com o generalíssimo...

O preto velho pensou um pouco. Fez que entrou e voltou.

- O senhor diz que vem lá do Basílio?

- Isso... Para lá do Cerrito. Quase na Airosa.

- Engraçado... - disse o homem.

- Engraçado? Como assim? - perguntou o viajante.

- Engraçado porque faz um rol de anos passou por aqui um piquete, na direção de Porto Alegre, que era chefiado por um general lá do Basílio...

- No tempo da Legalidade?

- É... Parece que foi...

- Pois era eu o tal general! - exclamou o gaudério.

- E o senhor ainda está no exército? - perguntou o preto.

- Não... Na verdade nunca estive. Fui general por um dia ou dois, naquela época.

- Entendo... Eu e o general Bento também aderimos à sua coluna...

- De verdade?

- Juro por Deus!

- Não precisa tanto. Mas se aderiram, por que não se apresentaram que eu, de bom grado, teria passado o comando ao generalíssimo?

- É que entramos na coluna incógnitos.

- Ué, mas por quê?

- É difícil explicar... Mas o general tem participado de todos os eventos importantes que envolvem o bem estar do nosso povo e a grandeza do nosso Estado...

- E o senhor acompanha? - perguntou o gaúcho.

- Acompanho... Desde antes da fortaleza da Lage... Desde muito antes...

- Então o senhor é o Congo?

- Às suas ordens cavaleiro. - respondeu-lhe o negro.

- E o negro velho acha que o general me receberia?

- Acho que sim... Espere um momento. - disse, entrando na casa

para consultar o velho líder farroupilha.

O gaúcho conduziu o cavalo até um palanque, onde o amarrou e logo

voltou para junto da porta, para esperar a resposta que o homem traria.

Não demorou nada, voltou o escravo velho, sorriso alumiando de orelha a orelha e escancarando a porta, disse:

- Entre!

O índio bueno tirou o chapéu. Bateu os pés nos degraus, para limpar

qualquer sujidade das botas e, chegando à porta disse, como era hábito na campanha:

- Com licença?

- Vá entrando... - disse o escravo - O general está no escritório!

E foi conduzindo o visitante casa à dentro, até o dito aposento.

O generalíssimo, tal e qual o gaudério havia imaginado, estava à

paisana, de bombachas, camisa e chinelos, assentado a uma poltrona confortável à frente da lareira onde o fogo crepitava e à entrada do visitante, levantou-se cortês, para cumprimenta-lo.

- É uma honra... - disse, estendendo a mão ao visitante.

- A honra é toda minha. - retribuiu o índio velho, emocionado.

- Pois se chegue para junto do fogo... - disse o general, indicando-

lhe uma cadeira ao lado da sua e, a seguir, pedindo ao Congo que preparasse um mate.

Quando o negro afastou-se para as necessárias providências, o general iniciou a charla:

- O que o traz a estas bandas?

- Vim ver o grande general... Trazer o meu respeito e a minha admiração.

- Também eu sinto a mesma coisa pelo viajante. - disse o visitado.

- Mas eu sou um pé-rapado... Não valho um tostão furado...

- O amigo está se dando pouco valor... Fez coisas na vida que muitos gostariam de ter feito e não fizeram.

- Não é bem assim, excelência! Quando olho para trás, para o rastro que venho deixando, não vejo nada, tirando as filhas e mais recentemente os netos, que me cause orgulho.

- Isso é normal... Os filhos hão de ser sempre melhores do que nós... Os netos, melhor ainda. Mas o meu respeito é pelo o que o senhor fez no tempo da Legalidade...

- Mas não fiz nada... Apenas conduzi o piquete...

- Isso é o que faz um grande comandante...

- Não entendi, excelência.

- Conduzir homens livres... Que escolhem ser conduzidos porque vislumbram na liderança a chama das justas rebeldias...

- Entendo... - murmurou o Tuquinha, encabulado.

- Eu e o Congo também aderimos quando vocês passaram por aqui...

- Eu fiquei sabendo agora pelo seu... Seu ordenança. Só não entendo porque sua excelência não tomou o comando da tropa...

- Já comandei muitas vezes... Agora é a vez dos mais novos. Além disso... - e o general fez uma pausa.

- Além disso? - instigou-o o visitante.

- Além disso, é difícil, tanto para mim quanto para o Congo, aparecermos assim, depois de tanto tempo...

- Depois de terem desencarnado, é isso?

- Isso mesmo... Não se pode aparecer para qualquer um...

- Mas o general concedeu receber-me...

- É diferente... O cavaleiro acredita que é possível conversar comigo quase cento e sessenta anos depois da minha morte...

- Mas eu acho que qualquer gaúcho gostaria de estar no meu lugar porque todos eles acreditam em vossa excelência.

- Mas os tempos são outros e de qualquer maneira, se eu os tivesse acompanhado de corpo presente, ao invés de faze-lo em espírito, haveria certamente de ter causado algum mal estar no governador...

- No doutor Brizola?

- Nele mesmo... Até eu tenho ciência de que ele tem alguma dificuldade com lideranças emergentes e decerto, mais ainda com velhas lideranças, o que é o meu caso.

- Bueno, olhando deste prisma, acho que o generalíssimo pode ter razão... Mas de qualquer forma, não houve glória na marcha porque não entramos em luta.

- Não é necessário haver luta para ganhar uma batalha, e na ocasião, inegavelmente a vitória foi do estado de direito.

- Nisso o senhor tem razão...

- Veja a nossa revolução, por exemplo...

- A de trinta e cinco?

- Sim... A rigor, perdemos a guerra, mas no fundo, a vitória final foi nossa... Com a assinatura do armistício, acabamos obtendo tudo aquilo pelo qual lutáramos por dez anos.

- Eu nunca havia pensado dessa maneira... - concordou o índio

velho, depois de refletir um pouco.

- Isso prova que até na derrota pode haver vitória.

- Por falar em derrota, excelência, quero ouvir da sua própria boca se estou certo em uma impressão que tive, lendo os livros sobre a sua vida...

- E o que seria? - quis saber o general, curioso.

- É que fiquei com a impressão que o generalíssimo era um... Um... - e a palavra não veio.

- Um?... - ajudou o homem.

- Um grande pé-frio, como se diz hoje em dia...

- Explique-me melhor.

- É que o general ganhou poucas batalhas e perdeu um ror...

- Cite um caso... - pediu o homem, com paciência.

- A batalha de Taquari, por exemplo...

- Nunca houve, em verdade, esta batalha... Os caramurus estavam com cerca de dez mil homens ou mais, às margens do rio Taquari e nós formamos para fazer-lhes combate, com tropa de mais ou menos igual número...

- Eu sei... Mas não houve o encontro?

- Não... Mas o amigo tem que entender que daquela luta seria tudo ou nada.

- Como assim?

- Se vencêssemos os caramurus, mais cedo ou mais tarde eles formariam outro exército e voltariam a acossar-nos... Poderia levar alguns anos, mas voltariam, porque tinham o Império inteiro ao seu dispor...

- E se perdessem?

- Se perdêssemos, estaria liquidado definitivamente o nosso sonho, pois naqueles campos, além de todos os altos oficiais da república, estava o nosso exército inteiro...

- Entendo... Então vossa excelência formou a tropa, alinhou para o combate, mas na verdade só queria demonstrar força para o inimigo?

- De uma maneira simplificada foi isso mesmo...

- E em São José do Norte?

- Lá foi diferente... Era a noite de 16 de julho de 1840 e entramos em luta depois de árdua caminhada sob o inclemente inverno e torrencial chuva e tomamos quase toda a praça... Poucos caramurus acabaram por alojar-se em um dos quartéis e para retira-los de lá seria necessário incendiar o quarteirão inteiro, com todos os civis escondidos dentro das suas casas...

- Então o general resolveu retirar-se?

- Nenhuma vitória valia tanto... Retrogradamos, carregando nossos feridos e muitos prisioneiros...

- E é verdade que vossa excelência libertou-os logo após?

- Retiramo-nos da cidade nas piores condições possíveis. Não tínhamos alimentos, roupas, médicos ou medicamentos para atender os nossos feridos...

- E o senhor pediu ao comandante inimigo?

- Mandei um emissário com o pedido de algum medicamento ao comandante da praça, Soares de Paiva e ele, além de enviar-nos a metade do seu suprimento, mandou também um médico para tratar dos nossos homens. Ao tomar conhecimento de tão solidário gesto de compaixão e de cavalheirismo, libertei imediatamente os prisioneiros dizendo-lhes que assim retribuía um povo livre.

- E o duelo, excelência?

- Com o Onofre? - perguntou o general.

- Isso...

- É um assunto sobre o qual eu não gosto de falar...

- Se o generalíssimo não quer, não precisa dizer nada...

O general contemplou o fogo, enquanto estendia a mão para o velho

Congo, que entrara de fininho, com os avios de mate prontos e pegou a cuia cheia, que o negro lhe estendia.

- Não... Para o amigo eu não me importo de falar. Na verdade, talvez até seja bom porque esclarecerei definitivamente o episódio.

- Só para constar, excelência, não há nada a ser esclarecido...

- Pelo sim, pelo não, lhe contarei a história. - disse o general

Bento, devolvendo a cuia para o Congo, para que tornasse a enchê-la.

- Eu gostaria de ouvir... - murmurou o visitante.

- Em primeiro lugar, o amigo deve tentar entender o estado de ânimo em que nos encontrávamos, depois de anos e anos de luta contra o Império. De tudo carecíamos, desde fardas, armas até a tranquilidade para podermos gerir adequadamente os desígnios da nossa incipiente República...

- Eu entendo isso...

- Pois então há de ser fácil para o amigo compreender que em tais circunstâncias os ânimos se elevam com facilidade.

- Imagino que sim...

- O Onofre vinha guardando velhas mágoas e ressentimentos contra mim. Nada sério nem palpável... Diferenças de opiniões e coisas desse tipo. Quando foi assassinado o vice-presidente da República, Dr. Antonio Paula da Fontoura, lá em Alegrete, Onofre passou a ofender-me publicamente, dizendo haver sido eu o mandante do crime...

- Mas o Rio Grande inteiro sabe que foi causo de amor!... Que o tal de Dr. Antônio Paula da Fontoura estava tendo um affaire com uma zinha e foi morto pelo guampudo do marido...

- Mas isso não bastou... A dissidência rompeu entre as nossas forças e nunca mais foi possível reconciliá-las completamente...

- E o duelo propriamente dito?

- O assassinato ocorreu em fevereiro de 43 e só bem mais tarde, corrido um ano, pois foi em fevereiro de 44, tivemos oportunidade, eu e o Onofre, de nos encontrarmos...

- E aí então ocorreu o duelo?

- Sim...

- Saímos de fininho para uma coxilha isolada, depois de uma reunião lá nas bandas do Garupá e não tendo o coronel provado as acusações que fizera contra mim, cruzamos os ferros, como se diz.

- E o general espetou o coronel?

- Feri-o no braço...

- E é verdade que depois de feri-lo ainda arranjou-lhe um lenço para estancar a sangueira?

- Como o amigo ficou sabendo disso? - perguntou o general,

curioso, porque era coisa que nunca havia comentado com ninguém.

- Sei porque andei lendo alguns livros que falam a esse respeito.

- É verdade... Não havia raiva entre nós, apenas uma animosidade que surgira em meio às dificuldades da época e que sendo entre homens, necessária se tornava a devida reparação.

- E depois do duelo o que aconteceu?

- Voltei ao acampamento e mandei que socorressem o coronel...

- E ele acabou por desencarnar alguns dias depois?

- Sim... Carecíamos de tudo naquela época e o coronel morreu em virtude do ferimento e principalmente por falta de tratamento adequado.

O Tuquinha ficou em silêncio, remoendo aquelas coisas que estava

ouvindo dizer da boca do próprio protagonista. A bomba roncou e ele estendeu o porongo para o negro que voltou a enche-lo de água quente e alcançou, desta vez para o general.

- Há mais alguma coisa que o amigo queira saber antes que eu me recolha? - perguntou o generalíssimo, pondo-se de pé.

- Hay miles de coisas general, mas acho que podem esperar por outra oportunidade...

- Então o Congo vai dar-lhe de comer e depois lhe mostrar o quarto onde passar a noite.

- Obrigado, general...

- Tenha uma boa-noite. - desejou-lhe o proprietário.

- Boa-noite também, excelência. - retribuiu o gaúcho.

O general dirigiu-se até a porta do gabinete onde se encontravam e lá

chegando, voltou-se para o convidado que estava de pé, em frente ao fogo e fez-lhe uma saudação militar, assim, meio que de igual para igual, no que foi prontamente correspondido pelo gaudério que se encheu de orgulho pela deferência.

Quando a porta fechou-se, o negro recolheu a cuia e a chaleira e fez sinal ao Tuquinha para que o seguisse até a cozinha, onde o aguardava um ensopado de batatas com carne de ovelha, do qual comeu com vontade.

Nesse meio tempo o negro velho se ausentara e quando voltou, o gaudério tinha acabado a refeição.

- Se o senhor quiser descansar agora...

- Tenho de por o Malacara ao abrigo...

- Eu já o levei para o galpão. - disse o negro.

- Então acho que é hora de deitar.

O preto velho conduziu-o até um quarto mobiliado com simplicidade

como, de resto, a casa toda e onde ardia, sobre uma mesa de cabeceira, um toco de vela.

- Boa-noite para o senhor. - desejou-lhe.

- Para o senhor também, Congo.

O homem deixou-o sozinho, fechando a porta atrás de si e como o

gaudério estava muito cansado, recostou-se nos travesseiros e cerrou os olhos imediatamente.

Na manhã seguinte, acordou ouvindo um burburinho à sua volta e descolando as remelas aos poucos, foi abrindo devagar os olhos e deparou com uma gente estranha que não estava lá na noite anterior.

- Quem são os senhores? - perguntou, sentando-se na cama.

- Nós é que devíamos fazer esta pergunta. - respondeu um deles.

- Eu sou o Tuquinha, do Basílio e vim em visita ao general...

- Mas o horário de visitas ao museu é da nove às dezessete. - voltou a dizer o mesmo homem - E além do mais, isto é um museu e não um albergue.

- Museu? Albergue? Do que o amigo está falando?

- Estou dizendo que o senhor entrou no Parque Histórico General Bento Gonçalves depois da hora aprazada e além do mais passou a noite aqui, o que é terminantemente proibido.

O Tuquinha esfregou os olhos para ver se não estava sonhando e

quando finalmente voltou a enxergar com nitidez, viu que ainda as mesmas pessoas o rodeavam.

- O senhor está de porre? - perguntou o homem.

O índio começou a sentir que perdia as estribeiras.

- Quem deve estar de porre é o senhor... Ou então comeu bosta quando era criança... Eu já lhe disse que estou aqui porque tive uma entrevista com o general...

O homem olhou para os companheiros, desanimado e, fazendo-lhes

sinal de que provavelmente o gaúcho era algum détraqué, abandonou o quarto, seguido pela comitiva.

O gaúcho, deixado solito, espreguiçou-se bem à vontade, calçou as botas que não lembrava de ter descalçado, apanhou o chapéu que estava dependurado em um cabide e saiu do quarto, em direção a sala. No caminho, ocorreu-lhe dar uma olhada no escritório onde se entrevistara com o general. Abriu a porta e teve uma surpresa. A mobília estava parada de forma diferente. As coisas não eram as mesmas. Ou melhor, eram, mas estavam etiquetadas, fora de uso, para serem olhadas apenas.

O índio por uns instantes pensou que a entrevista fora um sonho e estava quase convencido disso quando, na lareira, percebeu que ainda havia um tiçãozinho ou outro, quentes, que haviam restado da noite anterior. No chão, em frente à lareira, onde se havia sentado ao lado do general, uns farelinhos de erva-mate que haviam caído. Aí um sorriso alumiou-lhe a cara. Entendeu tudo: Encontrara de fato o grande general, no horário compreendido entre o fechamento do museu, no final da tarde e a abertura, na manhã do dia seguinte, horário em que, a residência voltava a ser sua somente.

Deixou a casa e montando no Malacara, que estava esperando no galpão onde o Congo o colocara, desceu a coxilha até a porteira, entre o alarido dos quero-queros. Lá, virou para o sul, pelo acostamento da BR 116 e tocou para o Basílio.

(Porto Alegre, 10/maio/2003)

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