Com a possibilidade que se lhe abrira de entrevistar-se com entes lendários
que de fato nunca tinham existido como seres vivos, a não ser na imaginação
popular, ou tinham, mas já haviam há muito desencarnado, o índio
velho ficou a matutar. Afinal, se fora possível encontrar os mitos e
falar com eles, decerto que, com calma, fé e jeito, seria igualmente
capaz de encontrar as grandes personalidades Rio-grandenses que, de certa forma,
também se haviam transformado em lendas. Não lendas para assombrar
e levar em cagaços as criaturas de menos luzes, como era natural no folclore,
mas lendas, isto sim, para serem imitadas e seguidas e que haviam feito do Rio
Grande o que ele é hoje: Uma terra buena e progressista, de gente capaz,
empreendedora, justa e, acima de tudo, hospitaleira e cortês que em nenhuma
outra parte do mundo, igual hay.
Como já havia se avistado com o primeiro grande caudilho, o índio
Sepé Tiaraju, achou que a próxima charla devia, por força
de direito e de obrigação, dar-se com o venerável general
Bento Gonçalves. E assim foi.
Como também já havia feito, quando da vez das lendas, sabia que,
para que as coisas pudessem dar certas, era preciso, antes de tudo, entrar no
clima. Transportar-se por assim dizer. Para tal, nada melhor do que a leitura
de livros buenos, de gente séria e ilustre que detinha o saber. Então,
na primeira oportunidade que se lhe propiciou, deu de mão, na biblioteca
do deputado, num ror de livros sobre o homem - o general, - dentre eles, os
dos lentes Tasso Fragoso; Walter Spalding; Lindolfo Collor; Amyr Borges Fortes
e Fidélis Dalcin Barbosa, para dizer pouco. Ou muito, nem sei.
Noites e noites se enterteve na leitura, coisa que, se para ele era buena, para
a viúva ainda mais, porque não tinha que refuga-lo e podia repoltrear-se
solita na cama e sonhar a la larga com tempos que lhe haviam sido melhores.
De mais amores e emoções, que é para ficar bem entendido.
Lidos e relidos os livros, achou o gaudério que era hora de partir, assim,
anunciou o propósito ao patrão, que sendo esclarecido não
fez oposição, pelo contrário, incentivou. Deu um beijo
de despedida na viúva e, sem olhar para trás, pois sabia que ela
estaria a secar a boca com o punho da manga da camisa que vestia, para retirar
algum resquício de baba que o gaúcho lhe deixara, calcou a virilha
do flete - o Malacara - e saiu de escoteiro, sem companhia, a não ser
a do Criador e sem bagagem além do poncho e da mala de garupa onde levava
uma coisinha ou outra. Pouca, porque era índio simples e a fome haveria
de aplacar em qualquer biboca, num ou noutro bolicho de beira de estrada. E
para dormir... Bem, um galpão de fazenda, uma tapera ou uma taleira frondosa
sob a qual se enrodilharia ao poncho e dormiria à luz do firmamento,
de preferência depois de algum enrosco com alguma china bonita, só
para alembrar como é que era, visto que, em casa, a cara-metade havia
resolvido purgar as culpas e batera cadeado no parque de diversões. Depois
de muito frequentado, isso também era verdade, tanto que era mais
conhecido no povo que o parque Tupy.
Pela carreteira da intendência marchou em direção da vila
do Basílio, por quase duas léguas, até que esta entroncava
com outra, que levava ao Cerrito e ao Olimpo, depois de cruzar pela vila de
Conde Matarazzo. Lá, tendo passado a seco o Piratini, seguiu por estrada
estadual, de terra, sempre no trote pelo acostamento, em direção
a localidade de Alto Alegre, depois Capão do Leão e Pelotas, onde
pernoitou no Parque de Exposições Dr. Ildelfonso Simões
Lopes.
Na manhã seguinte, cedinho, depois do amargo com os peões que
estavam aquerenciados nos galpões do dito Parque, encilhou o cavalo e
saiu pela Avenida Fernando Osório, até atingir a Br 116, na direção
de Camaquã, que era seu destino final. No caminho, foi se alembrando
de outro tempo, quando marchara, lá nos idos de 61, a testa de um piquete
de bravos, até a capital, para somarem-se aos esforços do governador
Leonel de Moura Brizola, que resistia no Palácio Piratini à tentativa
de golpe contra as instituições democráticas vigentes e
constituídas.
Logo de saída, à esquerda, ficava o Monte Bonito, de onde muita
gente guapa se lhe havia ajuntado naquela época. Mais adiante, o Cerrito
Alegre. A meio do caminho, as vilas de Boqueirão, Quevedos e Bom Jesus,
todas também berço de gente valente que havia aderido à
coluna. Além, a vila da Cruz, logo passando a bela Pérola da Lagoa.
Finalmente o Cristal, do inesquecível Enilton Grill que, patriota que
era, na época os esperara à frente de outro lote de valentes que
haviam aderido, oriundos das terras próximas, principalmente de São
Lourenço do Sul, Cruz e outras e que estavam às margens do Camaquã,
desde a véspera, afiando os facões. Aquela lembrança de
patriotismo alevianava a alma do gaudério e o Malacara, que casualmente
fora a sua montaria de então, resfolegava faceiro, sentindo no ar o odor
de um tempo de sonhos e de glórias que não voltariam mais.
O sol ia se apagando lá nas terras Cisplatinas quando chegou à
porteira da fazenda do ilustre general, depois de haver cruzado o Rio Camaquã.
No alto da coxilha, a casa. A casa velha, dentro da qual o sonho de liberdade,
igualdade e fraternidade, que fora a legenda farroupilha e que ainda hoje estava
de forma inalienável cosido à bandeira do Estado, fora concebido
e embalado.
Desmontou e abriu-a. Fez o Malacara atravessar o pórtico e fechando-a,
tornou a montar para subir o repecho.
A cachorrada levantou as orelhas e desceu para encontrá-lo, latindo amigavelmente.
Da beira da lagoa que ficava à esquerda de quem enveredava lomba acima,
um quero-quero alçou voo e veio em sua direção, grasnando
seu "bem-vindo a esta terra". No platô, voltou a sofrenar o
pingo e a desmontar, chegando-se até soleira, respeitosamente.
Um preto velho saiu das sombras e desceu os degraus da casa.
- Boa-noite viajante! - saudou-o.
- Boa-noite! - respondeu o cavaleiro.
- O que o traz a nossa casa em hora tão tardia?
- O senhor desculpe pela hora, mas venho cavalgando desde o Basílio...
- Quer pouso? - interrompeu o negro.
- Em verdade, não...
- Um mate, quem sabe?
- Não... Não, obrigado.
- Mas então o gaúcho chegou-se para quê?
- Tinha esperanças de poder entrevistar-me com o generalíssimo...
O preto velho pensou um pouco. Fez que entrou e voltou.
- O senhor diz que vem lá do Basílio?
- Isso... Para lá do Cerrito. Quase na Airosa.
- Engraçado... - disse o homem.
- Engraçado? Como assim? - perguntou o viajante.
- Engraçado porque faz um rol de anos passou por aqui um piquete, na
direção de Porto Alegre, que era chefiado por um general lá
do Basílio...
- No tempo da Legalidade?
- É... Parece que foi...
- Pois era eu o tal general! - exclamou o gaudério.
- E o senhor ainda está no exército? - perguntou o preto.
- Não... Na verdade nunca estive. Fui general por um dia ou dois, naquela
época.
- Entendo... Eu e o general Bento também aderimos à sua coluna...
- De verdade?
- Juro por Deus!
- Não precisa tanto. Mas se aderiram, por que não se apresentaram
que eu, de bom grado, teria passado o comando ao generalíssimo?
- É que entramos na coluna incógnitos.
- Ué, mas por quê?
- É difícil explicar... Mas o general tem participado de todos
os eventos importantes que envolvem o bem estar do nosso povo e a grandeza do
nosso Estado...
- E o senhor acompanha? - perguntou o gaúcho.
- Acompanho... Desde antes da fortaleza da Lage... Desde muito antes...
- Então o senhor é o Congo?
- Às suas ordens cavaleiro. - respondeu-lhe o negro.
- E o negro velho acha que o general me receberia?
- Acho que sim... Espere um momento. - disse, entrando na casa
para consultar o velho líder farroupilha.
O gaúcho conduziu o cavalo até um palanque, onde o amarrou e logo
voltou para junto da porta, para esperar a resposta que o homem traria.
Não demorou nada, voltou o escravo velho, sorriso alumiando de orelha
a orelha e escancarando a porta, disse:
- Entre!
O índio bueno tirou o chapéu. Bateu os pés nos degraus,
para limpar
qualquer sujidade das botas e, chegando à porta disse, como era hábito
na campanha:
- Com licença?
- Vá entrando... - disse o escravo - O general está no escritório!
E foi conduzindo o visitante casa à dentro, até o dito aposento.
O generalíssimo, tal e qual o gaudério havia imaginado, estava
à
paisana, de bombachas, camisa e chinelos, assentado a uma poltrona confortável
à frente da lareira onde o fogo crepitava e à entrada do visitante,
levantou-se cortês, para cumprimenta-lo.
- É uma honra... - disse, estendendo a mão ao visitante.
- A honra é toda minha. - retribuiu o índio velho, emocionado.
- Pois se chegue para junto do fogo... - disse o general, indicando-
lhe uma cadeira ao lado da sua e, a seguir, pedindo ao Congo que preparasse
um mate.
Quando o negro afastou-se para as necessárias providências, o general
iniciou a charla:
- O que o traz a estas bandas?
- Vim ver o grande general... Trazer o meu respeito e a minha admiração.
- Também eu sinto a mesma coisa pelo viajante. - disse o visitado.
- Mas eu sou um pé-rapado... Não valho um tostão furado...
- O amigo está se dando pouco valor... Fez coisas na vida que muitos
gostariam de ter feito e não fizeram.
- Não é bem assim, excelência! Quando olho para trás,
para o rastro que venho deixando, não vejo nada, tirando as filhas e
mais recentemente os netos, que me cause orgulho.
- Isso é normal... Os filhos hão de ser sempre melhores do que
nós... Os netos, melhor ainda. Mas o meu respeito é pelo o que
o senhor fez no tempo da Legalidade...
- Mas não fiz nada... Apenas conduzi o piquete...
- Isso é o que faz um grande comandante...
- Não entendi, excelência.
- Conduzir homens livres... Que escolhem ser conduzidos porque vislumbram na
liderança a chama das justas rebeldias...
- Entendo... - murmurou o Tuquinha, encabulado.
- Eu e o Congo também aderimos quando vocês passaram por aqui...
- Eu fiquei sabendo agora pelo seu... Seu ordenança. Só não
entendo porque sua excelência não tomou o comando da tropa...
- Já comandei muitas vezes... Agora é a vez dos mais novos. Além
disso... - e o general fez uma pausa.
- Além disso? - instigou-o o visitante.
- Além disso, é difícil, tanto para mim quanto para o Congo,
aparecermos assim, depois de tanto tempo...
- Depois de terem desencarnado, é isso?
- Isso mesmo... Não se pode aparecer para qualquer um...
- Mas o general concedeu receber-me...
- É diferente... O cavaleiro acredita que é possível conversar
comigo quase cento e sessenta anos depois da minha morte...
- Mas eu acho que qualquer gaúcho gostaria de estar no meu lugar porque
todos eles acreditam em vossa excelência.
- Mas os tempos são outros e de qualquer maneira, se eu os tivesse acompanhado
de corpo presente, ao invés de faze-lo em espírito, haveria certamente
de ter causado algum mal estar no governador...
- No doutor Brizola?
- Nele mesmo... Até eu tenho ciência de que ele tem alguma dificuldade
com lideranças emergentes e decerto, mais ainda com velhas lideranças,
o que é o meu caso.
- Bueno, olhando deste prisma, acho que o generalíssimo pode ter razão...
Mas de qualquer forma, não houve glória na marcha porque não
entramos em luta.
- Não é necessário haver luta para ganhar uma batalha,
e na ocasião, inegavelmente a vitória foi do estado de direito.
- Nisso o senhor tem razão...
- Veja a nossa revolução, por exemplo...
- A de trinta e cinco?
- Sim... A rigor, perdemos a guerra, mas no fundo, a vitória final foi
nossa... Com a assinatura do armistício, acabamos obtendo tudo aquilo
pelo qual lutáramos por dez anos.
- Eu nunca havia pensado dessa maneira... - concordou o índio
velho, depois de refletir um pouco.
- Isso prova que até na derrota pode haver vitória.
- Por falar em derrota, excelência, quero ouvir da sua própria
boca se estou certo em uma impressão que tive, lendo os livros sobre
a sua vida...
- E o que seria? - quis saber o general, curioso.
- É que fiquei com a impressão que o generalíssimo era
um... Um... - e a palavra não veio.
- Um?... - ajudou o homem.
- Um grande pé-frio, como se diz hoje em dia...
- Explique-me melhor.
- É que o general ganhou poucas batalhas e perdeu um ror...
- Cite um caso... - pediu o homem, com paciência.
- A batalha de Taquari, por exemplo...
- Nunca houve, em verdade, esta batalha... Os caramurus estavam com cerca de
dez mil homens ou mais, às margens do rio Taquari e nós formamos
para fazer-lhes combate, com tropa de mais ou menos igual número...
- Eu sei... Mas não houve o encontro?
- Não... Mas o amigo tem que entender que daquela luta seria tudo ou
nada.
- Como assim?
- Se vencêssemos os caramurus, mais cedo ou mais tarde eles formariam
outro exército e voltariam a acossar-nos... Poderia levar alguns anos,
mas voltariam, porque tinham o Império inteiro ao seu dispor...
- E se perdessem?
- Se perdêssemos, estaria liquidado definitivamente o nosso sonho, pois
naqueles campos, além de todos os altos oficiais da república,
estava o nosso exército inteiro...
- Entendo... Então vossa excelência formou a tropa, alinhou para
o combate, mas na verdade só queria demonstrar força para o inimigo?
- De uma maneira simplificada foi isso mesmo...
- E em São José do Norte?
- Lá foi diferente... Era a noite de 16 de julho de 1840 e entramos em
luta depois de árdua caminhada sob o inclemente inverno e torrencial
chuva e tomamos quase toda a praça... Poucos caramurus acabaram por alojar-se
em um dos quartéis e para retira-los de lá seria necessário
incendiar o quarteirão inteiro, com todos os civis escondidos dentro
das suas casas...
- Então o general resolveu retirar-se?
- Nenhuma vitória valia tanto... Retrogradamos, carregando nossos feridos
e muitos prisioneiros...
- E é verdade que vossa excelência libertou-os logo após?
- Retiramo-nos da cidade nas piores condições possíveis.
Não tínhamos alimentos, roupas, médicos ou medicamentos
para atender os nossos feridos...
- E o senhor pediu ao comandante inimigo?
- Mandei um emissário com o pedido de algum medicamento ao comandante
da praça, Soares de Paiva e ele, além de enviar-nos a metade do
seu suprimento, mandou também um médico para tratar dos nossos
homens. Ao tomar conhecimento de tão solidário gesto de compaixão
e de cavalheirismo, libertei imediatamente os prisioneiros dizendo-lhes que
assim retribuía um povo livre.
- E o duelo, excelência?
- Com o Onofre? - perguntou o general.
- Isso...
- É um assunto sobre o qual eu não gosto de falar...
- Se o generalíssimo não quer, não precisa dizer nada...
O general contemplou o fogo, enquanto estendia a mão para o velho
Congo, que entrara de fininho, com os avios de mate prontos e pegou a cuia cheia,
que o negro lhe estendia.
- Não... Para o amigo eu não me importo de falar. Na verdade,
talvez até seja bom porque esclarecerei definitivamente o episódio.
- Só para constar, excelência, não há nada a ser
esclarecido...
- Pelo sim, pelo não, lhe contarei a história. - disse o general
Bento, devolvendo a cuia para o Congo, para que tornasse a enchê-la.
- Eu gostaria de ouvir... - murmurou o visitante.
- Em primeiro lugar, o amigo deve tentar entender o estado de ânimo em
que nos encontrávamos, depois de anos e anos de luta contra o Império.
De tudo carecíamos, desde fardas, armas até a tranquilidade
para podermos gerir adequadamente os desígnios da nossa incipiente República...
- Eu entendo isso...
- Pois então há de ser fácil para o amigo compreender que
em tais circunstâncias os ânimos se elevam com facilidade.
- Imagino que sim...
- O Onofre vinha guardando velhas mágoas e ressentimentos contra mim.
Nada sério nem palpável... Diferenças de opiniões
e coisas desse tipo. Quando foi assassinado o vice-presidente da República,
Dr. Antonio Paula da Fontoura, lá em Alegrete, Onofre passou a ofender-me
publicamente, dizendo haver sido eu o mandante do crime...
- Mas o Rio Grande inteiro sabe que foi causo de amor!... Que o tal de Dr. Antônio
Paula da Fontoura estava tendo um affaire com uma zinha e foi morto pelo guampudo
do marido...
- Mas isso não bastou... A dissidência rompeu entre as nossas forças
e nunca mais foi possível reconciliá-las completamente...
- E o duelo propriamente dito?
- O assassinato ocorreu em fevereiro de 43 e só bem mais tarde, corrido
um ano, pois foi em fevereiro de 44, tivemos oportunidade, eu e o Onofre, de
nos encontrarmos...
- E aí então ocorreu o duelo?
- Sim...
- Saímos de fininho para uma coxilha isolada, depois de uma reunião
lá nas bandas do Garupá e não tendo o coronel provado as
acusações que fizera contra mim, cruzamos os ferros, como se diz.
- E o general espetou o coronel?
- Feri-o no braço...
- E é verdade que depois de feri-lo ainda arranjou-lhe um lenço
para estancar a sangueira?
- Como o amigo ficou sabendo disso? - perguntou o general,
curioso, porque era coisa que nunca havia comentado com ninguém.
- Sei porque andei lendo alguns livros que falam a esse respeito.
- É verdade... Não havia raiva entre nós, apenas uma animosidade
que surgira em meio às dificuldades da época e que sendo entre
homens, necessária se tornava a devida reparação.
- E depois do duelo o que aconteceu?
- Voltei ao acampamento e mandei que socorressem o coronel...
- E ele acabou por desencarnar alguns dias depois?
- Sim... Carecíamos de tudo naquela época e o coronel morreu em
virtude do ferimento e principalmente por falta de tratamento adequado.
O Tuquinha ficou em silêncio, remoendo aquelas coisas que estava
ouvindo dizer da boca do próprio protagonista. A bomba roncou e ele estendeu
o porongo para o negro que voltou a enche-lo de água quente e alcançou,
desta vez para o general.
- Há mais alguma coisa que o amigo queira saber antes que eu me recolha?
- perguntou o generalíssimo, pondo-se de pé.
- Hay miles de coisas general, mas acho que podem esperar por outra oportunidade...
- Então o Congo vai dar-lhe de comer e depois lhe mostrar o quarto onde
passar a noite.
- Obrigado, general...
- Tenha uma boa-noite. - desejou-lhe o proprietário.
- Boa-noite também, excelência. - retribuiu o gaúcho.
O general dirigiu-se até a porta do gabinete onde se encontravam e lá
chegando, voltou-se para o convidado que estava de pé, em frente ao fogo
e fez-lhe uma saudação militar, assim, meio que de igual para
igual, no que foi prontamente correspondido pelo gaudério que se encheu
de orgulho pela deferência.
Quando a porta fechou-se, o negro recolheu a cuia e a chaleira e fez sinal ao
Tuquinha para que o seguisse até a cozinha, onde o aguardava um ensopado
de batatas com carne de ovelha, do qual comeu com vontade.
Nesse meio tempo o negro velho se ausentara e quando voltou, o gaudério
tinha acabado a refeição.
- Se o senhor quiser descansar agora...
- Tenho de por o Malacara ao abrigo...
- Eu já o levei para o galpão. - disse o negro.
- Então acho que é hora de deitar.
O preto velho conduziu-o até um quarto mobiliado com simplicidade
como, de resto, a casa toda e onde ardia, sobre uma mesa de cabeceira, um toco
de vela.
- Boa-noite para o senhor. - desejou-lhe.
- Para o senhor também, Congo.
O homem deixou-o sozinho, fechando a porta atrás de si e como o
gaudério estava muito cansado, recostou-se nos travesseiros e cerrou
os olhos imediatamente.
Na manhã seguinte, acordou ouvindo um burburinho à sua volta e
descolando as remelas aos poucos, foi abrindo devagar os olhos e deparou com
uma gente estranha que não estava lá na noite anterior.
- Quem são os senhores? - perguntou, sentando-se na cama.
- Nós é que devíamos fazer esta pergunta. - respondeu um
deles.
- Eu sou o Tuquinha, do Basílio e vim em visita ao general...
- Mas o horário de visitas ao museu é da nove às dezessete.
- voltou a dizer o mesmo homem - E além do mais, isto é um museu
e não um albergue.
- Museu? Albergue? Do que o amigo está falando?
- Estou dizendo que o senhor entrou no Parque Histórico General Bento
Gonçalves depois da hora aprazada e além do mais passou a noite
aqui, o que é terminantemente proibido.
O Tuquinha esfregou os olhos para ver se não estava sonhando e
quando finalmente voltou a enxergar com nitidez, viu que ainda as mesmas pessoas
o rodeavam.
- O senhor está de porre? - perguntou o homem.
O índio começou a sentir que perdia as estribeiras.
- Quem deve estar de porre é o senhor... Ou então comeu bosta
quando era criança... Eu já lhe disse que estou aqui porque tive
uma entrevista com o general...
O homem olhou para os companheiros, desanimado e, fazendo-lhes
sinal de que provavelmente o gaúcho era algum détraqué,
abandonou o quarto, seguido pela comitiva.
O gaúcho, deixado solito, espreguiçou-se bem à vontade,
calçou as botas que não lembrava de ter descalçado, apanhou
o chapéu que estava dependurado em um cabide e saiu do quarto, em direção
a sala. No caminho, ocorreu-lhe dar uma olhada no escritório onde se
entrevistara com o general. Abriu a porta e teve uma surpresa. A mobília
estava parada de forma diferente. As coisas não eram as mesmas. Ou melhor,
eram, mas estavam etiquetadas, fora de uso, para serem olhadas apenas.
O índio por uns instantes pensou que a entrevista fora um sonho e estava
quase convencido disso quando, na lareira, percebeu que ainda havia um tiçãozinho
ou outro, quentes, que haviam restado da noite anterior. No chão, em
frente à lareira, onde se havia sentado ao lado do general, uns farelinhos
de erva-mate que haviam caído. Aí um sorriso alumiou-lhe a cara.
Entendeu tudo: Encontrara de fato o grande general, no horário compreendido
entre o fechamento do museu, no final da tarde e a abertura, na manhã
do dia seguinte, horário em que, a residência voltava a ser sua
somente.
Deixou a casa e montando no Malacara, que estava esperando no galpão
onde o Congo o colocara, desceu a coxilha até a porteira, entre o alarido
dos quero-queros. Lá, virou para o sul, pelo acostamento da BR 116 e
tocou para o Basílio.
(Porto Alegre, 10/maio/2003)
Que tal comprar um livro de Luiz Morvan Grafulha Corrêa? Barbaridade, tchê! Tuquinha e os Mitos Rio-Grandenses |