(baseado em: João de Barro, de Walmir Ayala)
A viúva ainda não tinha voltado para os pagos. Estava muy entertida,
como diria o gaudério, saindo todas as noites, com o amigo, para ampliar
sua coleção de cinzeiros. Já ajuntara um lote e, como era
do seu estilo pensar e agir, o que abundava, não faltava. E abundava.
Abundava que se esfalfava.
O gaúcho, coitado, estava solito. Atirado como Deus lhe pusera no mundo.
Pior. Agora que a mulher, que era entendida de doenças, não estava,
dera para aparecerem-lhe na testa, por casualidade no mesmo lugar onde os bichos
carregam as guampas, umas pequenas erupções - na verdade duas,
sendo uma de cada lado - como se fossem coisas cartilaginosas, que estivessem
nascendo como brotos e fazendo força para virem à luz. Se ele
não conhecesse a patroa e não lhe tivesse a maior confiança,
daria para pensar besteiras. Mas não. Era uma santa. Uma santa criatura,
tirando, é claro, uma ou outra história que corria no Basílio.
Mas isso, sabia bem, era inveja porque a moça era bonita e dada. Dada
para todos, independentemente do estado civil ou da situação econômica
e social dos viventes. Claro que ela tinha preferência pelos doutores,
pelos políticos e pelos encorbatados. Não necessariamente nesta
ordem, que é para ficar bem explicado e dito.
Entrementes, a vida continuava e as legendas não iam espera-lo para sempre.
Então, mais uma vez foi buscar o pingo na mangueira, paramentou-o no
galpão, com os melhores aperos e quando novamente ia descambando a noite,
abriu a cancela do potreiro das casas e caiu na estrada, célere, porque
tinha compromisso agendado. Agendado no pensamento, porque a criatura que ia
ser visitada, nem sonhava. Ou sonhava, pois que se sabe que estas coisas se
esparramam mais ligeiras que mancha de querosene e é possível
que muy provavelmente, não houvesse entidade do populário gaúcho
que não estivesse a devanear com a possibilidade da sua visita, para
levar um dedo de prosa e quem sabe até, um dia desses, aparecer novamente,
desta feita, em algum livreco que mais cedo ou mais tarde viria a público,
ou nas publicações do Diário da Manhã, lá
do povo grande de Pelotas, onde o índio velho, por graça e bondade
do jornalista, mantinha uma coluna que estava ficando mais famosa do que puta
francesa recém chegada na zona.
Mas desta vez, saiu e não chegou ao destino. Não que não
tenha se entrevistado com uma personagem das lendas gauchescas. Entrevistou-se.
Não com aquela que pretendia, de início, mas com outra, por acaso,
que também se lhe tornou muy querida.
Foi assim:
Tendo deixado para trás a fazenda, tomou o rumo do Desvio, porque queria,
na pulperia do Xamuset, arranchar-se por aquela noite e só no outro dia
seguir a destino, devidamente abastecido das guloseimas buenas que a Dona Maria,
esposa do bodegueiro, preparava com muito esmero e carinho, coisa que, se não
tinha em casa quando a viúva estava, muito menos na sua ausência.
Na manhã seguinte, cedinho, depois do chimarrão, de farnel bem
socado na mala de garupa, disse adeus aos que o haviam acolhido e enveredou
para cruzar o Piratini, que serpenteava ali pertinho, logo passando os trilhos.
Na beira do rio, uma mangueira velha, toda escangalhada, onde outrora se reuniam
os gados que vinham tocados por tropeiros e que resolviam pernoitar ou aguardar
os cargueiros para embarque para os matadouros de Pelotas. Vazia, porque há
muito que já não se tropeava por aquelas bandas, principalmente
depois que se desativara a linha férrea.
Como tinha todo o tempo do mundo, desmontou e amarrou o Malacara a um dos poucos
palanques que resistia ao tempo e ao abandono e foi dar uma volta pelo lugar,
alembrando de outras épocas.
Entretido que estava, com o pensamento longe, foi despertado do devaneio pelas
lamúrias de um João-de-Barro que jazia ao solo, de asa desconjuntada
por judiaria de algum moleque da vila.
Compadecido, ajuntou o animalzinho com a mão e levou-o até a beira
do rio onde o molhou levemente, nas águas tépidas, para restaurar-lhe
as forças e o vigor e voltou, logo a seguir, para perto da mangueira
onde vira, sobre o palanque de centro, um ninho de barro que lhe devia pertencer.
Com cuidado, colocou a avezinha na porta da casa, rezando para que se recuperasse
e virou-lhe as costas, para ir buscar o pingo e voltar a empreender viagem,
quando foi interrompido por uma voz baixinha, cansada, que lhe disse:
- Não vá embora, Seu Tuquinha!...
O índio velho voltou-se rapidamente e não viu ninguém por
perto. Achou que sonhara ter ouvido uma voz e ia novamente retirando-se
quando tornou a ouvir:
- Não vá embora, Seu Tuquinha!...
Agora tinha certeza de que ouvira.
Era o João-de-Barro que se recuperava dos ferimentos e queria
agradecer-lhe pelo gesto de caridade.
- O amigo João-de-Barro fala?... - perguntou.
- Com aqueles que me fazem bem...
- E o que deseja a nobre avezinha?
- Quero contar-lhe uma história...
O gaúcho ponderou e como não havia nada de mais importante a
fazer, estendeu a mão para o pássaro, que lhe pousou de um salto,
sobre o dedo indicador e juntos, foram para a beira do mato, onde o homem abancou-se
sobre um tronco caído e acomodou o bichinho, bem a gosto, sobre um galho
seco.
- Sou todo ouvidos... - se pôs a disposição o gaudério.
- Vou contar-lhe uma história que nunca contei a ninguém... -
começou a avezinha, depois de pigarrear duas ou três vezes para
aclarar a voz.
- Vai ser um prazer ouvi-la... - incentivou o capataz.
E o João-de-Barro começou:
- Há muitos e muitos anos, aqui nesta região, habitava uma tribo
de
índios muy valentes... Um deles, de nome Jaebé, apaixonou-se pela
filha do grande morubixaba, uma moça de grande beleza, que tinha vários
pretendentes que não logravam no entanto conquistar-lhe o coração...
- Eu sei como é que é... - resmungou o gaúcho, que vinha
passando dias ruins no amor.
O animalzinho fez ouvidos moucos à observação e continuou:
- Por Jaebé, que era moço também e muito destemido, o coração
da donzela pulsava forte... Então, combinados, resolveram que ele, seguindo
as regras vigentes, pedisse ao cacique a mão da filha em casamento...
- E ele pediu? - quis saber o Chirú, curioso.
- Pediu... Escute... O velho morubixaba, que era osso duro de roer, resolveu
não entregar a moça assim, de mão beijada...
- Que velho filho-da-puta! - exclamou o capataz, indignado.
- Quis saber do guerreiro que provas ele tinha a dar da sua força para
ousar pretender a mão da moça...
- E o Romeu? - perguntou o Tuquinha.
- Quem? - espantou-se o João-de-Barro, que não mencionara tal
criatura e nem nunca ouvira falar.
- O tal de Jaebé?... O que ele fez?
- Jaebé bateu no peito e disse que daria a prova do seu amor...
- Bem feito! E o cacique aceitou?
- O chefe gostou da resposta... Mas achou que o pretendente era meio atrevido
e argumentou que o último pretendente prometera jejuar por cinco dias
mas morrera no quarto...
- Jejum de boia? - perguntou o gaúcho.
- Claro, Seu Tuquinha!... Do que mais seria?
- Podia ser de... Ser de... - aí empacou.
- Jejum de quê? - quis saber o passarinho.
- Ora bolas, jejum de sexo! - explodiu o capataz.
- Seu Tuquinha, onde se viu jejum de sexo!
- O amigo não sabe o que tenho passado... Tenho jejuado mais que o velho
Mahatma Gandhi... Mas isso não vem ao caso, continue...
- O candidato era valente mesmo... - prosseguiu a ave - Propôs passar
nove dias em jejum...
- Nove dias sem por nada no bucho, isso é loucura!
- Todo mundo achou que era... Mas estava dito... Proposto e desafiado e teria
de se cumprir...
- Mas nem água com açúcar? - perguntou o gaudério,
espantado.
- Nada!... Por garantia, enrolaram o guerreiro num couro de anta, bem enrolado
e ficaram vigiando para que não escapasse e que ninguém se aproximasse
para dar-lhe de comer...
- E então?... Aguentou?...
- A moça chorou e implorou à deusa Lua que o protegesse e mantivesse
vivo para o seu amor...
- Como diz a patroa, amor não enche barriga... Adiantou alguma coisa?
- sentenciou e quis saber o ouvinte.
- Passados cinco ou seis dias, a moça implorou ao pai que já cumprira
o pretendente mais do que qualquer outro... Que o deixasse sair...
- E o cacique?
- O cacique esperou até a última hora do dia seguinte... Então
ordenou que retirassem o moço do invólucro...
- E estava vivo?
- Quando foi aberto o couro da anta, Jaebé saltou ligeiro, com um brilho
estranho nos olhos e uma luz mágica no sorriso... Estava limpo e perfumado...
- Mas isso é impossível! - garantiu o capataz.
- Foi o que todos pensaram... Mas impossível mesmo foi o que aconteceu
quando ele viu a sua amada...
- E o que foi que aconteceu?
- Ele se pôs a cantar como um pássaro enquanto seu corpo ia diminuindo...
Diminuindo e se transformando até ficar do tamanho do meu... Pássaro
como eu... E então, voou para a floresta no exato momento em que a Lua,
saindo de detrás das nuvens alumiou a jovem apaixonada que se transformou
também em pássaro e saiu em busca de Jaebé que a chamava
da floresta e desapareceram para sempre...
- Que coisa!... - suspirou o gaudério.
- Contam os índios que presenciaram o acontecimento, que assim nasceu
o primeiro casal de Joões-de-Barro ou Forneiros que se tem conhecimento
e que a prova do amor que uniu esses dois amantes, está no cuidado com
que constroem suas casas e protegem seus filhotes...
- Mas que história bonita!... - exclamou o Tuquinha, extasiado.
O João-de-Barro experimentou a asa e sentindo-se em condições
de
voltar sozinho para o ninho, despediu-se do gaudério:
- Tenho de voltar para casa...
O gaúcho olhou para o sol que ia alto e se pôs de pé:
- E eu tenho de tocar adiante...
O passarinho, ainda pousado no graveto em que fora colocado,
perguntou ao viajante que o salvara:
- E vai para onde o amigo?
O gaúcho coçou a cabeça, meio desasado:
- Nem sei... Acho que a lugar nenhum...
- Então lembre-se sempre dessa história... - disse a ave.
- Eu lembrarei... - garantiu o homem.
- Quando eu digo para lembrar, falo do seu verdadeiro significado...
- Não estou entendendo...
- Os homens amam o João-de-Barro... Amam, porque lembram da força
de Jaebé... Uma força, que originada do amor, venceu até
a própria morte...
- Acho que agora entendo... - concordou o ouvinte.
- Pois se entende, volte para casa... Ame a sua mulher e perdoe as pequenas
falhas, pois que não significam nada nem nada representam perto do carinho
que ela lhe tem... - disse a avezinha, alçando voo em direção
do ninho.
O gaúcho velho encaminhou-se em direção ao Malacara que
esperava
paciente junto da mangueira onde fora deixado. Montou. Olhou para diante, onde
os caminhos se abriam, cheios de promessas que talvez não se cumprissem...
Olhou para trás, onde ficava o Desvio e mais adiante o Basílio...
Alguma coisa lhe disse que a chinoca estava por chegar... Então, fazendo
a opção certa, deu de rédeas no pingo e retornou por sobre
o próprio rastro...
(Porto Alegre, 15/junho/2003)
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