A Garganta da Serpente
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Tuquinha e a Lenda do João-de-Barro

(Luiz Morvan Grafulha Corrêa)

(baseado em: João de Barro, de Walmir Ayala)

A viúva ainda não tinha voltado para os pagos. Estava muy entertida, como diria o gaudério, saindo todas as noites, com o amigo, para ampliar sua coleção de cinzeiros. Já ajuntara um lote e, como era do seu estilo pensar e agir, o que abundava, não faltava. E abundava. Abundava que se esfalfava.

O gaúcho, coitado, estava solito. Atirado como Deus lhe pusera no mundo. Pior. Agora que a mulher, que era entendida de doenças, não estava, dera para aparecerem-lhe na testa, por casualidade no mesmo lugar onde os bichos carregam as guampas, umas pequenas erupções - na verdade duas, sendo uma de cada lado - como se fossem coisas cartilaginosas, que estivessem nascendo como brotos e fazendo força para virem à luz. Se ele não conhecesse a patroa e não lhe tivesse a maior confiança, daria para pensar besteiras. Mas não. Era uma santa. Uma santa criatura, tirando, é claro, uma ou outra história que corria no Basílio. Mas isso, sabia bem, era inveja porque a moça era bonita e dada. Dada para todos, independentemente do estado civil ou da situação econômica e social dos viventes. Claro que ela tinha preferência pelos doutores, pelos políticos e pelos encorbatados. Não necessariamente nesta ordem, que é para ficar bem explicado e dito.

Entrementes, a vida continuava e as legendas não iam espera-lo para sempre. Então, mais uma vez foi buscar o pingo na mangueira, paramentou-o no galpão, com os melhores aperos e quando novamente ia descambando a noite, abriu a cancela do potreiro das casas e caiu na estrada, célere, porque tinha compromisso agendado. Agendado no pensamento, porque a criatura que ia ser visitada, nem sonhava. Ou sonhava, pois que se sabe que estas coisas se esparramam mais ligeiras que mancha de querosene e é possível que muy provavelmente, não houvesse entidade do populário gaúcho que não estivesse a devanear com a possibilidade da sua visita, para levar um dedo de prosa e quem sabe até, um dia desses, aparecer novamente, desta feita, em algum livreco que mais cedo ou mais tarde viria a público, ou nas publicações do Diário da Manhã, lá do povo grande de Pelotas, onde o índio velho, por graça e bondade do jornalista, mantinha uma coluna que estava ficando mais famosa do que puta francesa recém chegada na zona.

Mas desta vez, saiu e não chegou ao destino. Não que não tenha se entrevistado com uma personagem das lendas gauchescas. Entrevistou-se. Não com aquela que pretendia, de início, mas com outra, por acaso, que também se lhe tornou muy querida.

Foi assim:

Tendo deixado para trás a fazenda, tomou o rumo do Desvio, porque queria, na pulperia do Xamuset, arranchar-se por aquela noite e só no outro dia seguir a destino, devidamente abastecido das guloseimas buenas que a Dona Maria, esposa do bodegueiro, preparava com muito esmero e carinho, coisa que, se não tinha em casa quando a viúva estava, muito menos na sua ausência.

Na manhã seguinte, cedinho, depois do chimarrão, de farnel bem socado na mala de garupa, disse adeus aos que o haviam acolhido e enveredou para cruzar o Piratini, que serpenteava ali pertinho, logo passando os trilhos.

Na beira do rio, uma mangueira velha, toda escangalhada, onde outrora se reuniam os gados que vinham tocados por tropeiros e que resolviam pernoitar ou aguardar os cargueiros para embarque para os matadouros de Pelotas. Vazia, porque há muito que já não se tropeava por aquelas bandas, principalmente depois que se desativara a linha férrea.

Como tinha todo o tempo do mundo, desmontou e amarrou o Malacara a um dos poucos palanques que resistia ao tempo e ao abandono e foi dar uma volta pelo lugar, alembrando de outras épocas.

Entretido que estava, com o pensamento longe, foi despertado do devaneio pelas lamúrias de um João-de-Barro que jazia ao solo, de asa desconjuntada por judiaria de algum moleque da vila.

Compadecido, ajuntou o animalzinho com a mão e levou-o até a beira do rio onde o molhou levemente, nas águas tépidas, para restaurar-lhe as forças e o vigor e voltou, logo a seguir, para perto da mangueira onde vira, sobre o palanque de centro, um ninho de barro que lhe devia pertencer.

Com cuidado, colocou a avezinha na porta da casa, rezando para que se recuperasse e virou-lhe as costas, para ir buscar o pingo e voltar a empreender viagem, quando foi interrompido por uma voz baixinha, cansada, que lhe disse:

- Não vá embora, Seu Tuquinha!...

O índio velho voltou-se rapidamente e não viu ninguém por perto. Achou que sonhara ter ouvido uma voz e ia novamente retirando-se

quando tornou a ouvir:

- Não vá embora, Seu Tuquinha!...

Agora tinha certeza de que ouvira.

Era o João-de-Barro que se recuperava dos ferimentos e queria

agradecer-lhe pelo gesto de caridade.

- O amigo João-de-Barro fala?... - perguntou.

- Com aqueles que me fazem bem...

- E o que deseja a nobre avezinha?

- Quero contar-lhe uma história...

O gaúcho ponderou e como não havia nada de mais importante a

fazer, estendeu a mão para o pássaro, que lhe pousou de um salto, sobre o dedo indicador e juntos, foram para a beira do mato, onde o homem abancou-se sobre um tronco caído e acomodou o bichinho, bem a gosto, sobre um galho seco.

- Sou todo ouvidos... - se pôs a disposição o gaudério.

- Vou contar-lhe uma história que nunca contei a ninguém... -

começou a avezinha, depois de pigarrear duas ou três vezes para aclarar a voz.

- Vai ser um prazer ouvi-la... - incentivou o capataz.

E o João-de-Barro começou:

- Há muitos e muitos anos, aqui nesta região, habitava uma tribo de

índios muy valentes... Um deles, de nome Jaebé, apaixonou-se pela filha do grande morubixaba, uma moça de grande beleza, que tinha vários pretendentes que não logravam no entanto conquistar-lhe o coração...

- Eu sei como é que é... - resmungou o gaúcho, que vinha

passando dias ruins no amor.

O animalzinho fez ouvidos moucos à observação e continuou:

- Por Jaebé, que era moço também e muito destemido, o coração da donzela pulsava forte... Então, combinados, resolveram que ele, seguindo as regras vigentes, pedisse ao cacique a mão da filha em casamento...

- E ele pediu? - quis saber o Chirú, curioso.

- Pediu... Escute... O velho morubixaba, que era osso duro de roer, resolveu não entregar a moça assim, de mão beijada...

- Que velho filho-da-puta! - exclamou o capataz, indignado.

- Quis saber do guerreiro que provas ele tinha a dar da sua força para ousar pretender a mão da moça...

- E o Romeu? - perguntou o Tuquinha.

- Quem? - espantou-se o João-de-Barro, que não mencionara tal

criatura e nem nunca ouvira falar.

- O tal de Jaebé?... O que ele fez?

- Jaebé bateu no peito e disse que daria a prova do seu amor...

- Bem feito! E o cacique aceitou?

- O chefe gostou da resposta... Mas achou que o pretendente era meio atrevido e argumentou que o último pretendente prometera jejuar por cinco dias mas morrera no quarto...

- Jejum de boia? - perguntou o gaúcho.

- Claro, Seu Tuquinha!... Do que mais seria?

- Podia ser de... Ser de... - aí empacou.

- Jejum de quê? - quis saber o passarinho.

- Ora bolas, jejum de sexo! - explodiu o capataz.

- Seu Tuquinha, onde se viu jejum de sexo!

- O amigo não sabe o que tenho passado... Tenho jejuado mais que o velho Mahatma Gandhi... Mas isso não vem ao caso, continue...

- O candidato era valente mesmo... - prosseguiu a ave - Propôs passar nove dias em jejum...

- Nove dias sem por nada no bucho, isso é loucura!

- Todo mundo achou que era... Mas estava dito... Proposto e desafiado e teria de se cumprir...

- Mas nem água com açúcar? - perguntou o gaudério, espantado.

- Nada!... Por garantia, enrolaram o guerreiro num couro de anta, bem enrolado e ficaram vigiando para que não escapasse e que ninguém se aproximasse para dar-lhe de comer...

- E então?... Aguentou?...

- A moça chorou e implorou à deusa Lua que o protegesse e mantivesse vivo para o seu amor...

- Como diz a patroa, amor não enche barriga... Adiantou alguma coisa? - sentenciou e quis saber o ouvinte.

- Passados cinco ou seis dias, a moça implorou ao pai que já cumprira o pretendente mais do que qualquer outro... Que o deixasse sair...

- E o cacique?

- O cacique esperou até a última hora do dia seguinte... Então ordenou que retirassem o moço do invólucro...

- E estava vivo?

- Quando foi aberto o couro da anta, Jaebé saltou ligeiro, com um brilho estranho nos olhos e uma luz mágica no sorriso... Estava limpo e perfumado...

- Mas isso é impossível! - garantiu o capataz.

- Foi o que todos pensaram... Mas impossível mesmo foi o que aconteceu quando ele viu a sua amada...

- E o que foi que aconteceu?

- Ele se pôs a cantar como um pássaro enquanto seu corpo ia diminuindo... Diminuindo e se transformando até ficar do tamanho do meu... Pássaro como eu... E então, voou para a floresta no exato momento em que a Lua, saindo de detrás das nuvens alumiou a jovem apaixonada que se transformou também em pássaro e saiu em busca de Jaebé que a chamava da floresta e desapareceram para sempre...

- Que coisa!... - suspirou o gaudério.

- Contam os índios que presenciaram o acontecimento, que assim nasceu o primeiro casal de Joões-de-Barro ou Forneiros que se tem conhecimento e que a prova do amor que uniu esses dois amantes, está no cuidado com que constroem suas casas e protegem seus filhotes...

- Mas que história bonita!... - exclamou o Tuquinha, extasiado.

O João-de-Barro experimentou a asa e sentindo-se em condições de

voltar sozinho para o ninho, despediu-se do gaudério:

- Tenho de voltar para casa...

O gaúcho olhou para o sol que ia alto e se pôs de pé:

- E eu tenho de tocar adiante...

O passarinho, ainda pousado no graveto em que fora colocado,

perguntou ao viajante que o salvara:

- E vai para onde o amigo?

O gaúcho coçou a cabeça, meio desasado:

- Nem sei... Acho que a lugar nenhum...

- Então lembre-se sempre dessa história... - disse a ave.

- Eu lembrarei... - garantiu o homem.

- Quando eu digo para lembrar, falo do seu verdadeiro significado...

- Não estou entendendo...

- Os homens amam o João-de-Barro... Amam, porque lembram da força de Jaebé... Uma força, que originada do amor, venceu até a própria morte...

- Acho que agora entendo... - concordou o ouvinte.

- Pois se entende, volte para casa... Ame a sua mulher e perdoe as pequenas falhas, pois que não significam nada nem nada representam perto do carinho que ela lhe tem... - disse a avezinha, alçando voo em direção do ninho.

O gaúcho velho encaminhou-se em direção ao Malacara que esperava

paciente junto da mangueira onde fora deixado. Montou. Olhou para diante, onde os caminhos se abriam, cheios de promessas que talvez não se cumprissem... Olhou para trás, onde ficava o Desvio e mais adiante o Basílio... Alguma coisa lhe disse que a chinoca estava por chegar... Então, fazendo a opção certa, deu de rédeas no pingo e retornou por sobre o próprio rastro...

(Porto Alegre, 15/junho/2003)

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