A Garganta da Serpente
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Reencontro

(Luiz Lyrio)

Calor insuportável!... Quando ele fora comprar cigarros, o termômetro da praça acusava trinta e sete graus. Agora, em pleno meio-dia, a temperatura já devia estar próxima dos quarenta graus. Janelas escancaradas, ventilador ligado na potência máxima, nudez total, nada aliviava a temperatura elevada. Deitou-se na cama com as pernas e os braços abertos. O ventilador, apontado em sua direção, proporcionava um ventinho até agradável, mas impotente para aliviar de todo o desconforto provocado por aquele verão incompatível com a sobrevivência da raça humana na face da terra. Acabara de ler uma reportagem em que um cientista previa o aquecimento progressivo da Terra que inviabilizaria a sobrevivência da raça humana no planeta e, mesmo a contragosto, teve que concordar com o sujeito. Um mundo quente daquele jeito não era lugar para gente viver.

Deitado nu em sua cama, olhou o céu claro e azul, sem uma nuvem sequer, que se desenhava em sua janela escancarada. Morar no vigésimo sexto andar tinha dessas vantagens. Não tinha janelas de vizinho para vigiá-lo, impedindo-o de permanecer nu e tão à vontade em sua cama. Antes, ainda tinha um ventinho fresco, típico das alturas, a entrar pela janela, refrescando um pouco seu quarto. Agora, nem nas alturas do vigésimo sexto andar onde morava havia mais vento refrescante, a não ser o que vinha do ventilador apontado para ele. Além do sol causticante, o ar parado reforçava sua tese de que aquilo não era tempo para nenhum animal sobreviver, a não ser as criaturas que Deus arquitetou para viverem nos desertos.

O calor infernal começou a cansá-lo. Suas pálpebras foram se fechando. No início, ele tentou resistir. Não gostava de dormir durante o dia. Sabia que, se o fizesse, á noite ficaria acordado e odiava passar noites em claro. Mas a temperatura foi mais forte que ele e seus olhos acabaram se fechando. Em cinco minutos, já roncava como um porco tentando imitar uma motoserra.

Quando ela se sentou em sua cama, ele levou um baita susto. Primeiro, porque a tinha como morta há vários anos. Em segundo lugar, porque não conseguia entender como ela entrara no apartamento. Tinha absoluta certeza que tinha trancado muito bem a porta da sala.

- Achei que você tinha morrido. Alias, foi o que o Ciro me contou em oitenta em dois...

- O Ciro não sabe de nada. A gente nunca morre...- Declarou ela, enquanto brincava com o pênis dele que, reagindo ao toque macio da mão conhecida de longa data, era tomado por uma rigidez que há muito ele não sentia.

- Mas... - ele tentou dizer alguma coisa.

- Fique calado. Só sinta... - Ela disse, enquanto abaixava-se, tomando com a boca o órgão do antigo parceiro.

Ele estava extasiado. Principalmente com o fato de sentir coisas que ele achava que nunca mais iria sentir. Não naquela intensidade. Ela despiu a estranha túnica negra que usava e fizeram amor como nos velhos tempos. Depois, ela recostou sua cabeça no ombro dele, como também fazia nos velhos tempos.

- O Ciro que contou que você morreu em oitenta e dois. Disse que foi um estranho acidente de carro em que também morreram outros três membros da direção do Partido...Não! - Tomou consciência do absurdo do que estava acontecendo. - Eu devo estar sonhando. Como você me encontrou? Nenhum dos nossos amigos comuns tem esse endereço. Além do mais, a porta da sala estava muito bem trancada. Não tinha jeito de você entrar e estar aqui comigo.

- Agora, eu entro onde eu quiser. Aliás, há muito tempo que eu entro onde eu quero. Quanto a te encontrar, eu sempre sei onde você está. Eu sempre sei onde estão as pessoas que eu amo...

- E por que você não veio antes? Há tantos anos que eu penso em você...

- Eu vim. Mas você andava muito ocupado em viver a sua vida. Casou-se duas vezes, criou três filhos. Eu não poderia interferir. Não tinha o direito de mudar seu destino...

- E agora pode? Agora você pode mudar meu destino?

- Se você quiser....

- Por que, justamente agora, você pode mudar meu destino?

- Porque posso. E agora chega de perguntas. Não vamos mais perder tempo com essa conversa chata. Olha o que posso fazer! - Disse ela, flutuando no teto do quarto, ante o olhar assustado dele. -

Vem comigo!

- Que sonho legal! Adoro sonhos em que posso voar!... - Ele disse extasiado com a visão aérea da cidade e com o fato de poder voar junto com ela como Miriam Lane fazia com o Superman.

- Isto não é um sonho. Feche os olhos.

Ele obedeceu e, ao chegarem próximos da janela do quarto dele, ela o soltou. Só que, estranhamente, ele não acompanhou seu corpo. Enquanto sua carcaça despencava em queda livre do vigésimo sexto andar do edifício, ele permanecia flutuando ao lado dela. Quando, enfim, tomou consciência do que estava acontecendo, ele perguntou à amada apavorado:

- Eu vou morrer?

- Claro que não, seu bobo! - Respondeu-lhe tranquila a moça - É como eu lhe disse antes...A gente não morre nunca...

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