Chegou até à janela da suíte do hotel e olhou o mar. Lembrou-se,
então, da primeira vez que viu, ao vivo e em cores, o tal "marzão
besta". Foi em Copacabana, numa viagem em que um grupo de amigos da faculdade
fez uma vaquinha e alugou um apartamento na Barata Ribeiro. A saudade bateu
forte. Bons tempos aqueles! Foi aí que se lembrou do Armando, na época
e por um longo tempo da sua vida, seu melhor amigo. Por um longo tempo da sua
vida porra nenhuma! - protestou consigo mesmo - Por toda a sua vida. Afinal,
desde que convivera com o Armando, nunca mais tinha tido um amigo tão
sincero, profundo e com tantas lembranças compartilhadas.
Foi com Armando que vivera os momentos mais tensos da época em que acreditavam
na luta armada como única forma de acabar com a miséria e a desigualdade
no país. Se não fosse o Armando, certamente, naquela época,
teria passado um bom tempo mofando na cadeia. Sua vida teria fugido ao seu controle
e seu destino seria bem diferente. Será que teria tido uma existência
melhor se a polícia tivesse apreendido os documentos da organização
que Armando tirou do seu quarto, meia hora após a sua prisão e
quinze minutos antes dos agentes do Dops terem invadido sua casa em busca de
provas contra ele? Realmente, ele não tinha uma resposta confiável
para esta indagação. Mas sabia que só um amigo de verdade,
naquela época de tantos medos e incertezas, teria corrido o risco que
Armando correra para salvá-lo de um comprometimento maior diante dos órgãos de repressão.
Passa um bêbado cambaleante na praia. Ele olha as horas no visor do celular.
Dez horas da manhã. Muito cedo para alguém estar bêbado,
caminhando por uma praia. Vem-lhe, então, à memória um
ano em que não foram poucas as vezes em que ele teria sido visto bêbado,
como o indivíduo cambaleante da praia, por volta das dez da manhã.
Ah, o 1969 da angústia existencial, da bebedeira e dos primeiros contatos
com a canabis!... Seu amigo fiel também esteve presente nesta época,
frequentando os mesmo lugares e, em alguns momentos, amando as mesmas mulheres
que ele, como a Giovana, aquela loura gostosa de olhos azuis que virou a cabeça
de meia faculdade e provocou a primeira crise alcoólico-depressiva do
irmão do Armando, o Luiz, que, aos quatorze anos, sofreu durante um ano
com sua paixão não correspondida pela linda mulher cinco longos
anos (Ah, como naquela época os anos eram longos!...) mais velha que
ele.
Antes de sair para a praia, ele sentiu uma vontade irresistível de não
por o pé para fora da suíte, enquanto não terminasse de
relembrar toda a sua trajetória com seu melhor amigo. Nos primeiros anos
da década de setenta,, continuou a rememorar deitado na cama da suíte
com os olhos fixos no ventilador de teto, ele e Armando continuaram sendo companheiros
inseparáveis. Ele, na época e por mais uns bons anos de sua vida,
mais conhecido como "Sapo", e o Armando curtiram juntos boas paqueras
e fizeram também grandes viagens. Quando se formaram em Direito, montaram
juntos um escritório e, apesar das dificuldades do início de carreira,
sempre arranjavam algum dinheiro para escapulir nos feriados prolongados e nas
férias de julho e janeiro. Foi neste período que eles conheceram
juntos boa parte do Brasil. Passando-se por universitários, algumas vezes
conseguiam evitar gastos com hospedagem, sendo acolhidos em alguma Casa do Estudante,
como aconteceu nas viagens a Salvador, Goiânia e Recife. Também,
para tornar suas viagens mais em conta, se hospedavam em casas de parentes de
um deles ou de colegas da faculdade que tinham ido estudar em Belo Horizonte
e depois voltado para suas cidades de origem. Lembrou-se, então, da viagem
a Porto Seguro, quando o "munheca', contrariando completamente o sentido
de seu apelido, os recebera muito bem, inclusive pagando-lhes, em um dos melhores
restaurantes da cidade, um memorável jantar em que foram servidos todos
os pratos típicos da Bahia conhecidos na época.
Engraçado, pensou, geralmente, quando se casam ou um deles muda de cidade,
os amigos do tempo de escola costumam se afastar e ficar um bom tempo sem se
ver. Mas, com ele e o Armando, as coisas foram diferentes. Ele se casara com
a Sandra em 1974 e se mudara para Barbacena, para trabalhar com o sogro, um
influente e competente advogado da cidade. Armando se casou um ano depois com
a Miriam e permaneceu na capital de Minas, tornando bastante prestigiado e conhecido
o escritório de advocacia que abrira associado a ele. Mesmo assim, a
amizade entre os dois não sofreu nenhum dano. Ao contrário, suas
esposas se tornaram grandes amigas e quase todos os fins de semana, um casal
se deslocava, ora no sentido Barbacena-Belo Horizonte, ora no sentido Belo Horizonte-Barbacena,
para churrascos, noitadas de buraco ou simplesmente bate-papos memoráveis
regados com muita cerveja.
Quando ele separou-se de Sandra e demitiu-se do escritório do sogro,
apesar dos protestos de Armando e Miriam, que achavam que ele estava fazendo
"uma grande besteira", não perdeu o contato com o amigo. Aliás,
foi o Armando que o acolheu após a separação e a volta
para Belo Horizonte. Durante, dois meses, ele, Armando e Míriam tiveram
bons momentos de descontração. O casal nunca demonstrou sentir
algum incômodo com aquela terceira figura dividindo com ele suas tristezas,
desavenças e alegrias. Foi ele quem ligou o "desconfiômetro"
e, sentindo que estava sendo um estorvo para o casal, assim que conseguiu se
estabilizar financeiramente com o novo emprego que arranjou no departamento
jurídico de uma empresa de cobrança, mudou-se para um apartamento
no Maletta.
Ele levantou-se da cama e voltou à janela da suíte do hotel. Agora,
estatelado na areia, o bêbado parecia imerso em um sono profundo. Usando
apenas uma bermuda, o sujeito estava totalmente exposto ao sol. Certamente,
iria sofrer uma insolação se ninguém o despertasse. O mais
estranho, retornou às suas reminiscências, é que foi depois
que voltou para Belo Horizonte que seus contatos com o amigo começaram
a escassear. Quando ele se casou com a Fábia, Armando compareceu ao casamento
acompanhado de sua eterna Míriam e, num sábado, saíram
juntos os dois amigos e suas respectivas esposas. Num domingo, na semana seguinte,
ele almoçou na casa do Armando, conhecendo seus dois filhos, o Thiago,
na época com nove anos, e o Lucas, ainda de colo e extremamente birrento.
Depois disso, lembrou-se de ter visto o Armando algumas vezes na praia de Santa
Clara, no estado do Rio, onde seu melhor amigo construíra uma bela e
enorme casa. Apesar de reiterados convites, entretanto, ele nunca se hospedara
na casa do Armando, preferindo, quando ia a Santa Clara, ficar num hotelzinho
de frente para o mar, que começou a frequentar sempre que tinha
alguns dias de folga, principalmente depois que se separara da segunda esposa.
Depois que ele se encontrou com o amigo e sua inseparável Míriam
na praia, no reveillon de um ano que ele julgava recente, mas não sabia
qual, nunca mais viu seu melhor amigo.
Alguém se aproximou e cutucou o bêbado. Devia ser algum amigo do
sujeito, ele concluiu observando tudo da janela da suíte, já que
o cambaleante homem de bermuda acompanhou docilmente a boa alma que o acordou.
Uma amizade como a dele com o Armando, mergulhou de novo nas suas lembranças,
não poderia ter terminado assim, com cada um para o seu lado, cuidando
da própria vida. Ele não sabia quais os motivos que teriam levado
o Armando a não procurá-lo mais. Mas sabia o que o tinha levado
a abandonar o amigo. Era o seu desleixo com a vida. Tirando seus compromissos
profissionais, sempre cumpridos à risca e considerados inadiáveis,
ele vivia adiando algumas coisas que tinha que fazer. E era muito descuidado
com suas amizades. Depois, ficava queixando-se de que era um homem só.
Lembrou-se, então, que ainda tinha o número do telefone do Armando
e que o amigo dificilmente poderia ter ligado para ele nos últimos meses.
Depois que ele se separou de Fábia, eles venderam o apartamento em que
moravam e a linha telefônica, que, na época, ainda valia alguma
coisa, e racharam a grana. Depois disso, ele desistiu de comprar um novo imóvel
e se transformou numa criatura seminômade, morando em apartamentos mobiliados
e hotéis diversos da cidade e mudando quase semestralmente de endereço
e número de telefone. Mas, se o Armando não teria entrado em contato
por ter dificuldades em localizá-lo, ele não tinha essa desculpa,
recriminou-se. Seu melhor amigo era diferente dele. Para certas coisas, o Armando
mesmo admitia, era um conservador. Casara-se apenas uma vez, numa época
em que o "casa, separa, casa, separa" é que era o normal, e,
depois de casado, sempre morara na mesma casa e mantivera o mesmo número
de telefone
Ele saiu da janela, caminhou até uma mesinha e abriu uma maleta, onde
se encontrava sua agenda. Abriu a agenda na letra A. Lá estava o número
do telefone da casa do Armando. Todo final de ano, quando comprava uma agenda
nova e a organizava na parte de endereços e números de telefones,
ele eliminava todos os amigos, conhecidos e até mesmo parentes de sua
agenda anterior, com os quais perdera o contato durante o ano que estava terminando.
Mas nunca ele eliminou o Armando de qualquer de suas novas agendas. Um dia,
ainda ia ligar para o amigo e se encontrariam, tratando-se com a mesma intimidade
de sempre, como se nunca houvessem deixado de se ver. Ele não sabia precisar
a quanto tempo não via e não falava com o amigo. Ultimamente,
tinha perdido um pouco a noção do tempo. Assustava-se constantemente,
quando o noticiário da televisão referia-se a um fato ocorrido
há algum tempo. "Nossa, já fazem trinta anos que o Lennon
morreu!? Mas isso parece que foi outro dia mesmo", "O que!? Estão
comemorando vinte anos do fim da ditadura? Mas foi praticamente ontem que o
Tancredo morreu...". Esta perda de noção do tempo, entretanto,
não tinha importância no caso do Armando. Sabia que o amigo iria
tratá-lo com o mesmo carinho dos velhos tempos, pouco importando se havia
dois, três ou quatro anos que não se falavam. E revolveu, então,
que não ia adiar mais. Ia ligar agora. Não precisava de desculpa
para ligar para o seu melhor amigo, mas não haveria melhor data do que
o último dia do ano de 2005 para telefonar para o Armando e desejar-lhe
um feliz 2006. Abriu, então, de novo a maleta preta e tirou dela o celular.
Emocionado - "Mas que bobagem! É só um telefonema pro Armando!..."
-, teclou o número da casa do amigo. Do outro lado da linha, uma voz
masculina desconhecida atendeu:
- Alô.
- Eu queria falar com o Armando. - Foi logo dizendo ansioso, sem conferir se
tinha discado o número certo.
- Com o Armando? Quem gostaria de falar com ele?
- Sou um grande amigo dele. Meu nome Ciro. Ciro Rodrigues. Fomos colegas de
faculdade e...
- Olha, aqui quem ta falando é o Thiago e...
- Pó, Thiago! Que vozeirão!
- É...a gente cresce...Mas, o senhor disse que seu nome é Ciro
Rodrigues. O senhor vai me desculpar, mas eu conheço pelo nome todos
que foram amigos do meu pai e não me lembro do senhor. Pelo menos, ele
nunca me falou do senhor e seu nome nunca esteve em nenhuma agenda dele...
Foi aí que ele se lembrou do apelido:
- Bom, eu tinha um apelido pelo qual ele me tratava. Aliás, ele nunca
me chamou pelo nome. Só me tratava por "Sapo"...
- Ah, é o Sapo? Eu me lembro do senhor...
- Pode me tratar por você...
- Pois é. Eu me lembro de você. Algumas vezes nos encontramos na
praia de Santa Clara, onde meu pai tinha uma casa... Claro! É o Sapo!
Puxa, a gente procurou tanto por você!...Só que para o número
que estava na agenda dele...
- Você me desculpe, - Ele interrompeu o rapaz - Mas eu estou meio ansioso
para falar com seu pai. Ele esta em casa no momento?
- Olha, eu nem sei como lhe dizer...a gente te procurou como louco pra dar a
notícia, mas no número que estava na sua agenda ninguém
conhecia nenhum "Sapo" nem sabia informar seu nome e sobrenome...
- Notícia? Que notícia!? - ele perguntou aflito, já desconfiado
que a tal notícia não devia ser boa.
- Meu pai morreu, cara. Eu sinto muito te dar a notícia assim, mas depois
de tanto...
- Morreu? Como morreu? Por que ninguém me avisou? Afinal, ele sempre
foi meu melhor amigo. Sua mãe, a Miriam, sabia meu nome completo. Podiam
ter procurado na lista telefônica...
- Minha mãe morreu junto com ele. Foi num acidente de carro, quando voltavam
de São Francisco... - Fez-se um demorado silêncio, - Sapo? Você
ainda está aí? - Thiago, então, ouviu um suspiro longo
e profundo do outro lado da linha. - Na época, a gente sofreu muito.
Eu entendo o que você deve estar sentindo...
- Quanto tempo faz que eles morreram? Eu estive com eles, se não me engano,
no reveillon de 2002 ou 2003...
- Não, amigo. Eles comentaram este encontro comigo. Foi no reveillon
de 94 a última vez em que vocês se falaram...
- 1994? Há onze anos? Não, não faz tanto tempo assim. Talvez
tenha sido em 2000 ou 2001, mas foi mais recentemente...
- Sapo, eles faleceram em 97. Exatamente hoje está fazendo oito anos...
Ele emudeceu de novo do outro lado da linha. Não ia discutir com o rapaz
a data de falecimento dos próprios pais, nem a data do reveillon em que
se encontrara com eles em Santa Clara. Sim, sem dúvida, ele ficara por
onze anos adiando um simples telefonema para seu melhor amigo.
Do outro lado da linha, sentindo que seu interlocutor encontrava-se impossibilitado
de falar, Thiago continuou:
- Sabe, meu pai andava meio deprimido nos últimos anos de sua vida. Depois
que ficou diabético, aposentou-se e teve que parar com uma série
de coisas que gostava de fazer, inclusive de tomar sua cervejinha nos fins de
semana e quando viajava de férias. Ele falava muito de você. Contava
histórias que viveram juntos na época da ditadura, contava e recontava
as viagens que fizeram... Ele vivia se queixando que você não ligava
pra ele, mas era incapaz de pegar o telefone e ligar pra você. Vivia adiando
esse telefonema, dizendo que você não ia acha graça em sair
com ele, já que ele não estava mais bebendo e que ele também
não ia achar graça em sair com você, te vendo tomar sua
cervejinha, enquanto ele ficava tomando água mineral. Várias vezes,
tentamos convencê-lo, eu e minha mãe, que seria bom pra ele se
abrir com o melhor amigo, como ele o considerou até o último dia
de sua vida. Você, certamente, sabendo que ele estava impossibilitado
de beber, abriria mão da cerveja e o acompanharia tomando uma coca ou
um guaraná. E ele até que aceitava nossos argumentos. Mas sabe
como é. Ele ficava sempre adiando, até que...não teve mais
tempo pra falar com você...
- Thiago, você me desculpe, mas eu vou desligar. Tenho que digerir a notícia
ou, sei lá...
- Eu sei como você deve estar se sentindo. Bom, de qualquer forma, feliz
ano novo pra você...
- Feliz ano novo pra você também... - Desligou o telefone.
Arrasado, ele abriu a maleta e guardou o celular. Num gesto mecânico,
puxou para perto de si a agenda ainda aberta na letra A, pegou um corretivo
líquido, e, numa única pincelada, cobriu de branco o nome do amigo.
Depois, foi para a praia pegar o maior porre de sua vida. Não chegou
a ver a passagem do ano. Enquanto, as pessoas comemoravam com fogos e ofertas
a Iemanjá, ele dormia alheio a tudo, apagado e estalado na areia, como
o bêbado que vira às dez da manhã.
(dez/2005)