Na salinha que chamamos de "fumódromo", olho pela janela protegida
por uma tela antissuicídio. Chega o Mário, colega de internação
na ala de psiquiatria do Hospital da Previdência, e encosta-se na parede,
observando um carro que tenta fazer uma baliza na rua lá embaixo. Do
oitavo andar, ele parece um carrinho de brinquedo do mesmo tamanho daqueles
que aparecem na tela da TV, o que dá uma certa dose de credibilidade
à fala do Mário:
- Engraçado, aquele pessoal lá embaixo pensa que vive numa novela.
É mesmo cara! Cê nunca pensou nisso não? À noite,
depois de se comportarem como personagens de novela e agirem achando que, na
vida, tudo acontece como na novela, eles se sentam nas patronas de suas salas
e continuam ali, como se estivessem vivendo uma outra vida real. Enquanto isso,
nós é que somos os loucos. Nós é que estamos internados
aqui. Isto é que é uma loucura, cê num acha? Nós,
que reagimos à loucura do mundo deles, um mundo de fantasia criado numa
telinha de TV, estamos aqui trancafiados, em tratamento, como se fôssemos
os anormais. Enquanto eles, que vivem num mundo de mentira, acreditando em um
monte de falsos valores e verdades pré-fabricadas e fazendo um monte
de bobagens sem sentido, ficam lá, soltos, livres de remédios.
São os "saudáveis".
- O problema é que nós cruzamos a porta...
- Mas se ela está onde está é pra ser cruzada mesmo! Ficar
o resto da vida vivendo no mundo da novela e da fantasia pra quê?
- Talvez seja mais ajuizado permanecer lá, dentro da telinha, junto com
o Tarcísio Meira, a Juliana Paes, a Cleo Pires, a Ana Paula Arósio...
Dói menos, deprime menos e a gente é considerado normal e não
precisa ficar trancafiado aqui dentro. É como Deus. É muito melhor
acreditar nele. A morte e a solidão são tão massacrantes!
Daqui a pouco é Natal e não existe Papai Noel pra trazer presente
pra
nós...
- O problema é que não dá pra acreditar. E a porta, depois
de aberta, revela tantas verdades! Não dá pra voltar atrás,
depois que você abre a porta que divide a fronteira entre o mundo deles
e a realidade. Ficar sóbrio depois de conhecer o outro lado é
muito difícil!
- Se a gente pensar bem, a questão não é transpor a porta.
A questão é como você vai se comportar e o que vai dizer
depois que você abandonar o mundo da novela e ver as coisas como realmente
são. Tem muita gente que abriu a porta, foi para o outro lado, mas está
solta, livre e respeitada por aí, porque o que diz e o que faz interessam
a quem manda em tudo...
- É. Tem os que se dispõem a ir para a guerra matar crianças,
mulheres indefesas e velhos, além de torturar seus semelhantes, e são
chamados de heróis. Têm os que dizem conversar com pessoas que
viveram há mais de dois mil anos e que têm multidões para
ouvi-los e dar-lhes muito dinheiro. Tem também muita gente que diz que
um livro escrito há milênios e alterado um sem número de
vezes por um bando de calhordas ambiciosos é a fonte de toda a verdade.
Essa gente, ao invés de internada e medicada, vive livre lá fora,
parte dela até cercada de honrarias e mordomias. "É verdade
porque está escrito", elas repetem feito papagaio. Que coisa de
louco!
- Coisa de louco mesmo! De louco varrido pra debaixo do tapete!
Mário pega uma caneta e rabisca num papel: "Eu sou Deus".
- Tá vendo? Ajoelha, vai, ajoelha! Eu sou Deus! É verdade porque
está escrito. Tá escrito aqui nesse papel, cê não
tá vendo? Porra, tem um monte de gente que ajoelha, tem milhões
que põem a cara no chão e apontam a bunda pro céu, tudo
pra honrar um ser que não existe! E esses caras são considerados
normais, não estão aqui com a gente! E aqueles que explodem, matando
pessoas inocentes e que, muitos dizem, ganham em troca do seu ato tresloucado
o paraíso? São normais? E os que passam todo o tempo de sua vida
acumulando riqueza e se esquecem de viver? São saudáveis? São
pessoas "centradas" Cê já viu uma pessoa centrada? Onde
fica o centro de uma pessoa
centrada?
- Sei lá!... E não me pergunte também onde é o ponto
de equilíbrio de uma pessoa equilibrada! Aliás, só conheço
outros tipos de pessoas, como os que matam por sede de poder e ainda viram heróis,
os que acordam todos os dias à mesma hora e fazem sempre as mesmas coisas.
Porra, cara! Como são loucos estes sujeitos! O mundo tão lindo,
com uma natureza tão exuberante, mulheres bonitas, crianças maravilhosas
para se curtir, e os caras, durante a sua vida inteira, servindo a seus ricos
patrões e transformando suas existências numa rotina insuportável!
E os que fazem qualquer coisa por dinheiro? Traem os amigos, vendem os filhos,
vendem a cidadania, vendem a mulher amada. Sabe que eu tenho um amigo que trocou
a noiva por uma moto? Ele nunca esteve internado...
- Sujeitos como esse nunca são internados. Também, quem decide
quem deve ser internado também não é lá muito bom
da cabeça. Me responde uma coisa: pro cara escolher passar a vida cuidando
de gente igual à gente, o sujeito pode ser normal? Pode?
- É... Taí uma profissão que eu não queria pra mim.
É uma puta responsabilidade. Igual à do diretor da novela, que
escolhe quem vai ser do elenco, aponta quem vai fazer os papéis secundários,
quem vai fazer só figuração...
- E quem não vai passar nem perto do estúdio de gravação,
como nós...
Nesse momento, chega um sujeito que está internado porque cismou que,
há qualquer momento, ele poderá morrer assassinado, o que, para
mim e para o Mário não tem nada de anormal, já que qualquer
um de nós, neste mundo maluco, pode morrer assassinado quando menos espera.
Como o sujeito dito "paranóico" nos considera inofensivos,
fez questão de vir da sala de TV até o "fumódromo"
para nos avisar que a novela das oito começou.
Eu e o Mário nos entreolhamos. Resolvemos, então, encerrar nosso
papo e ir assistir à novela. Ela pode nos fornecer subsídios para
construirmos sólidas mentiras capazes, aliadas à promessa fortemente
convicta de nos mantermos bem longe da
porta, de convencer nossos médicos a nos dar alta, nos permitindo perambular
livremente sabe-se lá por qual dos mundos que conhecemos...