A Garganta da Serpente
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Homenagem póstuma a um amor morto, porém insepulto

(Luiz Lyrio)

Quando ele foi embora, ela o acompanhou até o portão do prédio. Não que ela fizesse isto sempre. É que estava preocupada com o filho que demorava a chegar do colégio. E também porque precisava de uma desculpa para acompanha-lo até o portão do prédio, naquela noite fria de junho. Aliás, esta era a única época do ano em que admitia para ela mesma sentir falta dele. Nas noites frias de junho, não é fácil dormir sozinho para quem já dormiu junto.

Despediram-se com um "tchau" insosso. Ao entrar no carro, ele suspirou fundo. Ele sempre suspirava fundo quando ia embora do apartamento da mãe dos seus filhos. A depressão batia forte e não havia antidepressivo que resolvesse o problema. Se, por um lado, era reconfortante que ela deixasse que ele entrasse e usufruísse o seu ex-lar, como se ainda fosse o homem da casa, por outro lado, a hora da partida. Era quando ele caía na real e tomava consciência de sua solidão. A família fazia falta e não havia namorada ou amigo que a substituísse.

Sentou-se no carro e olhou para ela. Parada no portão, observando-o organizar-se para arrancar o carro, os olhos dela denunciavam o que ela tentava esconder dele e de si mesma. Os olhos dela denunciavam uma necessidade tão óbvia e transparente, que, de repente, passou pela cabeça dele descer do carro, voltar para o apartamento dela e dizer a ela que nunca mais sairia de lá de novo. Mas, ele também aprendera a reprimir seu sentimento. Só que, enquanto ela expulsava o sentimento por ele para fora de si, deixando-o esvair-se através dos olhos, ele sufocava o seu sentimento por ela, mantendo-o numa vala aberta, mas profunda, dentro de si e impedindo que ele se manifestasse, através do menor gesto que fosse. Aprisionado dentro dele, seu amor morto, porém insepulto, mantinha-se secreto e o deprimia. Às vezes, ele tentava declarar algo parecido com a ressurreição daquele amor, mas, quando abria a boca, seu sentimento pela ex-mulher não conseguia romper as barreiras que ele mesmo criara e suas palavras soavam falsas e vazias. Não inspiravam confiança. E era natural que fosse assim. Nas suas "recaídas", nas quais ela não colocava a menor fé, ele punha para fora, ao invés de palavras românticas e apaixonadas, um monte de racionalizações, meras constatações da consciência de um amor aprisionado num emaranhado de culpas e memórias confusas. E, diante de tanta baboseira, ela desconversava e enaltecia o fato de, após quinze anos de uma convivência com tantas crises e desamores, eles ainda serem "amigos".

Ele arrancou o carro sem olhar para trás. Lembrou-se dos primeiros anos de casamento. E, toda vez que ele se lembrava dos primeiros anos de casamento, vinha-lhe à cabeça uma pergunta para a qual ele tinha todas as respostas possíveis e imaginárias, mas que insistia em atormentá-lo: Por que tudo terminara assim?

Lembrar-se das puladas de cerca, dos porres em que ficava insuportável, das cobranças que ela fazia dele, mesmo sabendo que, se ele a atendesse, não seria mais ele mesmo, e do ciúme e do egoísmo de cada um, explicava, mas, para ele, não justificava. Em tudo havia um disparate incompreensível: os dois tinham sido feitos um para o outro. Eram duas almas gêmeas, interligadas, necessitadas uma da outra. Era difícil compreender porque estavam separadas agora, de uma forma tão concreta, real, lógica e absurda.

Ele chegou no hotel onde morava. Guardou o carro na garagem e caminhou até seu quarto. Abriu a porta do quarto e fez a triste constatação: ninguém mexera em nada seu. Tudo estava nos mesmos lugares onde deixara. Abriu o frigobar. Ninguém tomara sua cerveja e ninguém comera do seu presunto. Percebeu também que ninguém deixara farelos de pão caírem no chão. Realmente, ele era um homem só, concluiu desalentado.

Arranjou uma desculpa para ligar para ela:

- Oi... E o Alex, chegou direitinho?

- Chegou...

- Eu liguei só para saber. Também tava preocupado com ele. - Claro que mentia. Sabia que todo rapaz de dezoito anos gosta de dar suas paqueradas depois da aula.

- Ele tava no Chico do Churrasco com uma colega...

- Ele tá na idade disso mesmo... - Ficou sem assunto. O que ele queria dizer não podia ser dito. Não adiantava mais. - Então, ta legal. Eu só liguei pra saber se ele tinha chegado...

- É... Ele chegou...

- Então... tchau!...

- Tchau!...

Eles desligaram os telefones exatamente no mesmo segundo e foram dormir.
Cada um no seu canto.

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