A Garganta da Serpente
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De volta ao presente

(Luiz Lyrio)

"Eu vou voltar aos velhos tempos de mim.
Vestir de novo o meu casaco marrom
".(M. Valle)

- Fala pro Zé da Bicicleta pra vim buscá a lavagem. Minha lata tá cheia.- É o recado esdrúxulo que encontro na minha secretária eletrônica. Estamos agora em 1999 e acabo de voltar do Congresso da UBES, realizado em Goiânia, onde fui, como expositor, divulgar meu primeiro livro.

No primeiro momento, ignoro o recado. Não sei quem é o Zé da Bicicleta. Nem tampouco sei quem se interessaria pela lata de lavagem da senhora que ligou aflita. Depois, começo a viajar. E se for uma mensagem em código? Talvez, o Zé da Bicicleta seja o vizinho dos fundos, que sempre sai de bicicleta de manhã. E, como ficaria muito desconfortável e inadequado carregar uma lata de lavagem na bicicleta, talvez a lavagem seja droga. A mulher poderia estar com muita droga, correndo perigo, ou, "minha lata tá cheia" significasse "a droga chegou".

Caio na real, Que bobagem! Que fantasia besta! Volto ao passado e lembro que, em 68, usamos alguns códigos. "Manoel" e "Luzia", por exemplo, tinham um código específico para suas cartas, quando queriam comunicar alguma coisa que fosse perigoso que chegasse ao conhecimento da repressão. Assim, o agente federal ou estadual que dava plantão nos correios para ler as cartas alheias deve ter encontrado algumas frases sem sentido entre as juras de amor do casal apaixonado. Se tentou decifrá-las, não teve sucesso. Nosso código era perfeito, apesar de constituído por poucos vocábulos, e acredito que ele, provavelmente, pensou que aquelas frases não passavam de delírios decorrentes do estado febril que acomete as pessoas apaixonadas.

Pisando de novo no chão duro e incerto de 1999, como já disse no início dessa crônica, acabo de voltar do Congresso da UBES em Goiânia.

Não. Se o leitor acha que fui em busca do passado, tentando resgatar o horizonte perdido, enganou-se redondamente. O Congresso do qual participei, como expositor, teve poucos pontos comuns com os da época da Ditadura. Primeiro, fomos em vários ônibus especiais, com faixas nas laterais dos mesmos e bandeiras do PC do B, PT, PSTU, e outros Ps desfraldadas nas janelas, coisa inimaginável nos idos de 68. Naquela época, clandestinos, viajávamos (ao contrário dos barulhentos e alegres secundaristas de hoje) macambúzios, sorumbáticos e tensos, com o coração disparando toda vez que o ônibus parava numa barreira. Quando entravam os policiais ou os soldados do exército no ônibus, nos sentíamos perdidos, apesar de procurarmos manter a calma, para não chamarmos a atenção daqueles que identificavam os passageiros considerados suspeitos.

Os congressos de hoje, orgulhosamente considero isto conquista da

minha geração, são uma festa constante, com os jovens gritando slogans, palavras de ordem, dançando e batucando, num gostoso carnaval político-ideológico. Nos anos 60, não usávamos microfones e nos manifestávamos e conversávamos baixinho, para não produzir sons que pudessem chamar a atenção da repressão. Isto sem falar que, hoje, os congressos se dão em locais próprios para esse tipo de evento, cedidos pelos governos municipais ou estaduais, ou pelo próprio governo federal. Coisa inimaginável em 68, onde se usava salões paroquiais, conventos de padres, salões de festas, ou até sítios.

No alojamento em que fiquei, junto com os meninos, uma escola pública de Goiânia, a mesma saudável baderna acontecia. Numa

das manhãs, um maluco nos acordou tocando um tambor. Na noite seguinte, teve festa até alta madrugada. Em 68, não podíamos fazer barulho nos alojamentos. Não porque não quiséssemos. Nossa preocupação não era a de não incomodar os companheiros. Era a de não acordar a polícia.

Mas, especificidades próprias de um lapso de trinta e um anos à parte, o fervor e a responsabilidade dos jovens me emocionou. E me fez lembrar dos idos de 68.

E a emoção aflorou ainda mais forte, quando conheci um senhor um pouco mais velho que eu. Ele apareceu no terceiro dia do Congresso. Desenvolto, recebia os cumprimentos dos jovens e não-jovens que frequentavam o Centro de Convenções de Goiânia. Logo percebi que ele tinha aquela aura que identifica as pessoas especiais e, principalmente, os velhos que têm um passado. Ele dirigiu-se à minha mesa, folheou um livro e puxou conversa. Começamos a conversar e ele logo se identificou. No meio do barulho do microfone, do carnaval político-ideológico e da "guerra" entre tendências políticas, fiquei sabendo que ele foi um sobrevivente da Guerrilha do Araguaia. E, apesar de ter tentado repetir várias vezes, não consegui ouvir com nitidez o seu nome. Por isso, para mim, ele ficou sendo, como o chamavam os secundaristas de 99, o "seu Zé do Araguaia".

Trocamos algumas histórias (ou alguma História). Mas, de tudo que ele me contou, o que mais me (nos) emocionou foi a história do Idalísio, irmão de um grande companheiro meu de 68. Segundo ele, Idalísio saiu com alguns companheiros e se perdeu na mata. Sozinho, acoitou-se na casa de um camponês e foi denunciado. Cercado pelo exército, resistiu até acabar sua munição. Ai, o exército invadiu a casa e o matou. Morreu como herói, assegurou-me o "Zé do Araguaia".

Contei-lhe então que só soube da morte do Idalísio em 84, quando li seu nome na lista de mortos e desaparecidos, no livro "Brasil Nunca Mais".

- Levei mais de dez anos para saber da morte do meu amigo. E mais quinze para saber como ele morreu. A Ditadura nos tirou até esse direito: o de chorar no tempo certo a morte dos nossos companheiros. - Comentei com ele.

Nesse momento, enquanto tentava, com o indicador, remover uma lágrima teimosa do canto do meu olho esquerdo, notei que "seu Zé do Araguaia" também se emocionara. Vi isso nos seus olhos.

Ficamos ali os dois, no meio daquela juventude alegre, barulhenta e politizada, fitando um o sentimento do outro, até que alguém o abraçou e o levou para o meio da plenária.

A partir daí, minha imaginação fez uma viagem tardia, uma viagem que deveria ter sido feita há alguns anos. Imaginei o Idalísio naquela casa,

cercado. Seu coração teria batido forte e ele teria tido a certeza de que chegara a sua hora? O que ele sentiu? O que sente alguém que sabe que vai morrer dentro de alguns minutos? Medo, pavor, ou não dá tempo para sentir nada? Atirando, resistindo, ele sabia qual seria o seu destino. Quem conhecia o ódio aos comunistas, o despreparo, o descontrole emocional que tomava conta dos que, seja do exército, da polícia ou da marinha, não importa, participavam de ações contra nós, sabia que, se resistisse, principalmente armado, iria morrer. E eu não tenho dúvidas: Idalísio soube que ia morrer. Não ia ver a Revolução triunfando. Não ia mais participar de um governo revolucionário que iria acabar com a fome e a miséria no país. Será que ele pensou nisto? Ou só atirava, atirava, sem pensar? E quando acabou a munição e eles entraram arrombando, gritando, atirando, as balas penetrando em seu corpo, a dor e o sangue escorrendo? O que sentiu?

De quem se lembrou? Dos companheiros? Da família? Do Deus capitalista e vingativo? Ou do Deus que se posicionava ao lado dos pobres e oprimidos, no qual, talvez, secretamente cria, influenciado pelo irmão padre, membro da ala mais avançada da Igreja e limitado fisicamente numa cadeira de rodas?...

- Quanto custa?

- Ahn?

A jovem e bela secundarista interrompeu minha viagem.

- Quanto custa, o livrinho?

Voltei à tona e respondi à moça, que, provavelmente, se assustou. Não com o preço do livro. Mas com minha expressão transtornada.

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