A Garganta da Serpente
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Abdução

(Luiz Lyrio)

O prédio era bonito, mas pouco funcional. Como a escola em que ele lecionara dez anos antes, aquela também sofrera por algumas transformações e reformas necessárias para viabilizar seu funcionamento. Quem projetara aquele modelo de prédio, certamente só devia ter entrado numa escola para pegar seu diploma. Mas, apesar das paredes incompletas, dos buracos internos que, além de ajudarem na circulação do ar ajudavam também na circulação do barulho, da localização das quadras que tornava impraticável ao pobre professor ser ouvido e ouvir dentro das salas de aula nos horários de Educação Física ou de jogos de torneios, pelo menos uma coisa boa tinha sido feita. De certa forma, pensou-se na diretora, na secretária, na bibliotecária, na supervisora pedagógica e na orientadora educacional. Ao longo de um corredor, ficavam o gabinete da diretoria, a secretaria, a sala de multimeios, a sala da orientadora, da supervisora e a Biblioteca, todas bem isoladas da barulheira infernal que normalmente infesta qualquer escola.

De uns tempos para cá, já perto de se aposentar e afastado por laudo médico da sala de aula, o professor cinquentão dera para observar melhor o que realmente era uma escola. E sempre que refletia sobre o que observava, achava que estava numa espécie de palco do teatro do absurdo, tão em moda na sua juventude. Em toda a sua vida, o mestre nunca conheceu nada mais parecido com uma "máquina de fazer doido". Na sua cabeça, não havia dúvida: as escolas ainda virariam peças de museu num futuro muito próximo. E os professores, certamente, seriam considerados mártires dignos de admiração e pena, como hoje são considerados os escravos da época colonial. Muitos cientistas se questionariam: de onde saiu essa ideia maluca de colocar mais de mil crianças e adolescentes num prédio e onde estavam as cabeças daqueles "hominídeos primitivos" ao deixar um só adulto trabalhando numa sala com quarenta crianças e adolescentes, ou mesmo com quarenta pessoas aparentemente maduras, mas cujo comportamento não os autorizava a ser adultos? Será que ninguém enxergava esse absurdo?

O professor entrou no corredor e lembrou-se de quando começou a ficar estressado e ter pesadelos terríveis. Num deles, do qual já fazia tempo que se livrara, vinha pelo corredor da escola em direção à sala dos professores, ia ficando tonto e, de repente, uma dor fulminante no peito o jogava no chão, determinando sua queda definitiva em um abismo escuro e absolutamente silencioso (Ah, enfim o silêncio!...).



Todos os dias, ao chegar à escola, o professor, ao invés de ir para a secretaria, seu novo local de trabalho, preferia ficar um pouco na sala dos professores, usufruindo da companhia dos colegas e, principalmente, esperando a chegada da professora de geografia. O bom humor da moça lhe fazia bem, talvez até mais do que sua beleza. Afinal, o professor estava saturado de escolas, mas não de professoras e os anos que passara exercendo aquela profissão absurda haviam lhe trazido vários distúrbios, mas, para as coisas do amor, ele era um homem como qualquer outro e a única coisa que o impedia de apaixonar-se irresponsavelmente pela professora de geografia era uma coisa que ele chamava de "juízo".

O mestre inventara alguns meios de tornar sua presença na escola mais suportável e um dos seus passatempos prediletos era observar os professores e a forma como o estado de espírito deles ia murchando e como o brilho de suas almas ia se embaçando à medida que sua permanência escola se prolongava. Pena que ele não entendesse nada de medicina. Mais alguns de seus testemunhos e anotações e já teria elementos suficientes para provar sua teoria de que escola causava várias doenças, entre elas: Câncer, Depressão, Paranoia, Atrofia Cerebral, Surdez, Neuroses diversas, Enfarto do Miocárdio, Derrame Cerebral, Febre Amarela e Tifóide, Alcoolismo, Cirrose Hepática, Escorbuto, Viroses, Catarata, Labirintite, Infecção Intestinal, Doença de Chagas, Mal de Alzheimer, Artrose, Colite, Trombose, Enfisema Pulmonar, Pancreatite, Anemia, Leucemia, Catapora, infestação por piolhos, excesso de gases, Gonorreia, Aids, Cancro mole, Sinusite, Enxaqueca, Gastrite, Ulcerações diversas, Esofagite, Tuberculose, Herpes Genital e Labial, Gengivite, Desvio do Septo Nasal, Sarna, Esferocitose, Vampirismo, Lerdeza Crônica, Gripe do Frango e queda progressiva dos pelos pubianos.

Quando dava o sinal para o início da aula, só mesmo as defesas criadas ao longo de anos de trabalho evitavam que o professor se deprimisse. Era muito triste ver seus colegas indo para a sala de aula. O pior é que tinha mais pena daqueles que gostavam e, principalmente, daqueles que se gabavam de nunca terem faltado um dia sequer ao trabalho em suas vidas. Ele imaginava que algo muito ruim teria acontecido aos cérebros desses colegas para que eles conseguissem gostar de uma atividade tão nobre, mas, ao mesmo tempo, tão mal remunerada e, o pior, exercida de forma tão precária.



Uma noite dessas, nosso mestre estava só na secretaria da escola. Absorto na organização de algumas pastas de alunos, ele não percebeu que tudo estava silencioso demais. Quando caiu em si, abandonou rapidamente sua mesa de trabalho e correu para o corredor. Não encontrou vivalma e, muito menos, mortalma. Procurou pelo guarda que vigiava a escola à noite e também não o encontrou. Correu até à sala dos professores e achou muito estranho que eles tivessem levado seus objetos pessoais ao ir embora, mas que tivessem deixado sobre a mesa todos os seus materiais relacionados com o trabalho. Diários de Classe, trabalhos de alunos, livros, tudo se encontrava esparramado em cima da mesa, ao invés de estar devidamente guardado nos escaninhos dos professores. A impressão é que todos teriam saído às pressas da escola.

Haveria algum perigo iminente, incêndio, desabamento, algo que teria obrigado todos a abandonar a escola às pressas, esquecendo de avisar a ele? Pensou o mestre, que, ao vir à sua cabeça a palavra desabamento, imediatamente se dirigiu para a saída do prédio.

Não, olhou em volta o professor, não havia sinal de fumaça, cheiro de queimado e o prédio parecia intacto. Foi aí que ele olhou para o céu e viu o estranho objeto. Cheia de luzes, tal como descrita pelos ufólogos, a nave estava parada, flutuando sobre a escola. Não foi difícil para o professor concluir que todos os que trabalhavam ali no turno da noite, exceto ele, é lógico, haviam sido abduzidos, o que o levou a, imediatamente, ligar para a polícia.

Levado para uma delegacia, o professor deu seu depoimento e, durante toda a madrugada, antes de, enfim vencido pelo sono, ter tirado um longo cochilo, continuou jurando de pés juntos que os professores tinham sido abduzidos por extras terrestres que, certamente, teriam vindo libertá-los dos suplícios que toleravam nos seus cotidianos.

Na noite do dia seguinte, na escola onde o professor trabalhava, todos os professores e funcionários do turno da noite compareceram normalmente ao trabalho. Os policiais, que, por ordem dos médicos que o examinaram, optaram por deter o professor na delegacia até arranjar vaga num hospital psiquiátrico, para convencer o mestre de que ele havia se enganado, até o conduziram à escola para que ele pudesse ver os colegas. Entretanto, quando viu a professora de geografia mal humorada, sem nenhum brilho e sem o seu costumeiro avassalador poder de sedução, ele começou a desconfiar. Quando observou os outros colegas, secos e sem brilho, ai então é que o professor teve absoluta certeza: aqueles que estavam ali não eram seus colegas. Podiam ser qualquer coisa, até robôs, mas não eram seus colegas.



Hoje, o professor vive internado em uma clínica psiquiátrica. Segundo os médicos, seu caso não tem cura. Ele não é agressivo e nem oferece risco para ninguém, mas ele deve permanecer internado, já que vive sozinho porque não tem nem um parente ou amigo que aguente mais ouvi-lo contar repetidas vezes a história da abdução dos colegas e queira acolhê-lo em sua casa e, constantemente, ele entra em depressão e tenta o suicídio. Suas cartas de despedida sempre começam da mesma forma: "Já que eu sou tão velho e miserável que não sirvo nem para ser abduzido por extraterrestres, despeço-me..." e vai por aí afora.

Quando aos colegas do professor que trabalhavam no turno da noite, ocorreu um fenômeno bastante intrigante. Todos, sem exceção, foram, em datas diferentes, abandonando o trabalho. Eles sumiam, ligavam para a escola e diziam, sempre, a mesma frase:

- Não voltarei mais aí. Não fui programado para fazer este tipo de tarefa. Vocês são loucos!

Quando desligavam seus telefones eles simplesmente se desintegravam, deixando como "restos mortais" apenas um pó branco que os laboratórios da polícia conseguiram identificar apenas como uma marca vagabunda de talco. .

Outro dia, o professor viu os retratos de alguns dos seus colegas na TV, numa propaganda que dizia que "eles estavam desaparecidos, mas jamais esquecidos".

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