A fama do doutor Gedeão não cessava de crescer.
Não havia dia em que os jornais não dessem noticia de mais uma
proeza por ele feita, dentro ou fora da medicina. Em tal dia, um jornal dizia:
"O doutor Gedeão, esse maravilhoso clínico e excelente goal-keeper,
acaba de receber um honroso convite do Libertad Foot-ball Club, de São
José de Costa Rica, para tomar parte na sua partida anual com o Airoca
Foot-ball Club, de Guatemala. Todo o mundo sabe a importância que
tem esse desafio internacional e o convite ao nosso patrício representa
uma alta homenagem à ciência brasileira e ao foot-ball nacional.
O doutor Gedeão, porém, não pôde aceitar o convite,
pois a sua atividade mental anda agora norteada para a descoberta da composição
da Pomada Vienense, específico muito conhecido para a cura dos calos."
O doutor Gedeão vivia mais citado nos jornais que o próprio presidente
da república e o seu nome era encontrado em todas as seções
dos cotidianos. A seção elegante de O Conservador, logo ao dia
seguinte da noticia acima, ocupou-se do doutor Gedeão da seguinte maneira:
"O doutor Gedeão Cavalcanti apareceu ontem no Lírico inteiramente
fashionable. O milagroso clínico saltou do seu coupé
completamente nu. Não se descreve o interesse das senhoras e o maior
ainda de muitos homens. Eu fiquei babado de gozo.
A fama do doutor corria assim desmedidamente. Deixou em instantes de ser médico
do bairro ou da esquina, como dizia Mlle. Lespinasse, para ser o médico
da cidade toda, o lente sábio, o literato ilegível à João
de Barros, o herói do foot-ball, o obrigado papa-banquetes diários,
o Cícero das enfermarias, o mágico dos salões, o poeta
dos acrósticos, o dançador dos bailes de bom-tom, etc., etc.
O seu consultório vivia tão cheio que nem a avenida em dia de
carnaval, e havia quem dissesse que muitos rapazes preferiam-no, para as proezas
de que os cinematógrafos são o teatro habitual.
Era procurado sobretudo pelas senhoras ricas, remediadas e pobres, e todas elas
tinham garbo, orgulho, satisfação, emoção na voz
quando diziam: - Estou me tratando com o doutor Gedeão.
Moças pobres sacrificavam os orçamentos domésticos para
irem ao doutor Gedeão e muitas houve que deixavam de comprar o sapato
ou o chapéu da moda para pagar a consulta do famoso doutor. De uma, eu
sei que lá foi com enormes sacrifícios para curar-se de um defluxo;
e curou-se, embora o doutor Gedeão não lhe tivesse receitado um
xarope qualquer, mas um específico de nome arrevesado, grego ou copta,
Anakati Tokotuta.
Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e
medicamentos vulgares; ele era original na botica que empregava.
O seu consultório ficava em uma rua central, bem perto da avenida, ocupando
todo um primeiro andar. As antessalas eram mobiliadas com gosto e tinham mesmo
pela parede quadros e mapas de coisas da arte de curar.
Havia mesmo, no corredor, algumas gravuras de combate ao alcoolismo e era de
admirar que estivessem no consultório de um médico, cuja glória
o obrigava a ser conviva de banquetes diários, bem e fartamente regados.
Para se ter a felicidade de sofrer um exame de minutos do milagroso clínico,
era preciso que se adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com
antecedência, às vezes de dias. O preço era alto, para evitar
que os viciosos do doutor Gedeão não atrapalhassem os que verdadeiramente
necessitavam das luzes do célebre clínico.
Custava a consulta cinquenta mil-réis; mas, apesar de tão
alto preço, o escritório da celebridade médica era objeto
de uma verdadeira romaria e toda a cidade o tinha como uma espécie de
Aparecida médica.
José Antunes Bulhões, sócio principal da firma Antunes
Bulhões & Cia., estabelecido com armazém de secos e molhados,
lá pelas bandas do Campo dos Cardosos, em Cascadura, andava sofrendo
de umas dores no estômago que não o deixavam comer com toda liberdade
o seu bom cozido, rico de couves e nabos, farto de toucinho e abóbora
vermelho, nem mesmo saborear, a seu contento, o caldo que tantas saudades lhe
dava da sua aldeia minhota.
Consultou mezinheiros, curandeiros, espíritas, médicos locais
e não havia meio de lhe passar de todo aquela insuportável dorzinha
que não o permitia comer o cozido, com satisfação e abundância,
e tirava-lhe de qualquer modo o sabor do caldo que tanto amava e apreciava.
Era ir para a mesa, lá lhe aparecia a dor e o cozido com os seus pertences,
muito cheiroso, rico de couves, farto de toucinho e abóbora, olhava-o,
namorava-o e ele namorava o cozido sem animo de mastigá-lo, de devorá-lo,
de engoli-lo com aquele ardor que a sua robustez e o seu desejo exigiam.
Antunes era solteiro e quase casto.
Na sua ambição de pequeno comerciante, de humilde aldeão
tangido pela vida e pela sociedade para a riqueza e para a fortuna, tinha recalcado
todas as satisfações da vida, o amor fecundo ou infecundo, o vestuário,
os passeios, a sociabilidade, os divertimentos, para só pensar nos contos
de réis que lhe dariam a forra mais tarde do seu quase ascetismo atual,
no balcão de uma venda dos subúrbios.
À mesa, porém, ele sacrificava um pouco do seu ideal de opulência
e gastava sem pena na carne, nas verduras, nos legumes, no peixe, nas batatas,
no bacalhau que, depois de cozido, era o seu prato predileto.
Desta forma, aquela dorzita no estômago o fazia sofrer extraordinariamente.
Ele se privava do amor; mas que importava se, daqui a anos, ele pagaria para
seu gozo, em dinheiro, em joia, em carruagem, em casamento até,
corpos macios, veludosos, cuidados, perfumados, os mais caros que houvesse,
aqui ou na Europa; ele se privava de teatros, de roupas finas, mas que importava
se, dentro de alguns anos, ele poderia ir aos primeiros teatros daqui ou da
Europa, com as mais caras mulheres que escolhesse; mas deixar de comer - isto
não! Era preciso que o corpo estivesse sempre bem nutrido para aquela
faina de quatorze ou quinze horas, a servir o balcão, a ralhar com os
caixeiros, a suportar desaforos dos fregueses e a ter cuidado com os calotes.
Certo dia, ele leu nos jornais a notícia que o doutor Gedeão Cavalcanti
tinha tido permissão do governo para dar alguns tiros com os grandes
canhões do "Minas Gerais".
Leu a notícia toda e feriu-lhe o fato da informação dizer:
"esse maravilhoso clínico e, certamente, um exímio artilheiro...
"
Clínico maravilhoso! Com muito esforço de memória, pôde
conseguir recordar-se de que aquele nome já por ele fora lido em qualquer
parte. Maravilhoso clínico! Quem sabe se ele o não curaria daquela
dorzita ali, no estômago? Meditava assim, quando lhe entra pela venda
adentro o Senhor Albano, empregado na Central, funcionário público,
homem sério e pontual no pagamento.
Antunes foi-lhe logo perguntando:
- Senhor Albano, o senhor conhece o doutor Gedeão Cavalcanti?
- Gedeão - emendou o outro.
- Isto mesmo. Conhece-o, Senhor Albano?
- Conheço.
- E bom médico?
- Milagroso. Monta a cavalo, joga xadrez, escreve muito bem, é um excelente
orador, grande poeta, músico, pintor, goal-keeper dos primeiros...
- Então é um bom médico, não é, Senhor Albano?
- E. Foi quem salvou a Santinha, minha mulher. Custou-me caro... Duas consultas...
Cinquenta mil-réis cada uma... Some.
Antunes guardou a informação, mas não se resolveu imediatamente
a ir consultar o famoso taumaturgo urbano. Cinquenta mil-réis! E
se não ficasse curado com uma única consulta? Mais cinquenta...
Viu na mesa o cozido, olente, fumegante, farto de nabos e couves, rico de toucinho
e abóbora vermelha, a namorá-lo e ele a namorar o prato sem poder
amá-lo com o ardor e a paixão que o seu desejo pedia. Pensou dias
e afinal decidiu-se a descer até à cidade, para ouvir a opinião
do doutor Gedeão Cavalcanti sobre a sua dor no estômago, que lhe
aparecia de onde em onde.
Vestiu-se o melhor que pôde, dispôs-se a suportar o suplício
das botas, pôs o colete, o relógio, a corrente e o medalhão
de ouro com a estrela de brilhantes, que parece ser o distintivo dos pequenos
e grandes negociantes; e encaminhou-se para a estação da estrada
de ferro.
Ei-lo no centro da cidade
Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do continuo
do consultório, despedindo-se dos seus cinquenta mil-réis
com a dor do pai que leva um filho ao cemitério. Ainda se o doutor fosse
seu freguês... Mas qual! Aqueles não voltariam mais...
Sentou-se entre cavalheiros bem vestidos e damas perfumadas. Evitou encarar
os cavalheiros e teve medo das damas. Sentia bem o seu opróbrio, não
de ser taberneiro, mas de só possuir de economias duas miseráveis
dezenas de contos... Se tivesse algumas centenas-então, sim! -ele poderia
olhar aquela gente com toda a segurança da fortuna, do dinheiro, que
havia de alcançar certamente, dentro de anos, o mais breve possível.
Um a um, iam eles entrando para o interior do consultório; e pouco se
demoravam. Antunes começou a ficar desconfiado... Diabo! Assim tão
depressa?
Teriam todos pago cinquenta mil-réis?
Boa profissão, a de médico! Ah! Se o pai tivesse sabido disso...
Mas qual!
Pobre pai! Ele mal podia com o peso da mulher e dos filhos, como havia ele de
pagar-lhe mestres? Cada um enriquece como pode...
Foi, por fim, à presença do doutor. Antunes gostou do homem. Tinha
um olhar doce, os cabelos já grisalhos, apesar de sua fisionomia moça,
umas mãos alvas, polidas...
Perguntou-lhe o médico com muita macieza de voz:
- Que sente o senhor?
Antunes foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago de que
vinha sofrendo, há tanto tempo, mal que desaparecia e aparecia mas que
não o deixava nunca. O doutor Gedeão Cavalcanti fê-lo tirar
o paletó, o colete, auscultou-o bem, examinou-o demoradamente, tanto
de pé como deitado, sentou-se depois, enquanto o negociante recompunha
a sua modesta toilette.
Antunes sentou-se também, e esperou que o médico saísse
de sua meditação.
Foi rápida. Dentro de um segundo, o famoso clínico dizia com toda
segurança:
- O senhor não tem nada.
Antunes ergueu-se de um salto da cadeira e exclamou indignado:
- Então, senhor doutor, eu pago cinquenta mil-réis e não
tenho nada! Esta é boa! Noutra não caio eu!
E saiu furioso do consultório que merecia, da cidade, uma romaria semelhante
à da milagrosa Lourdes.
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