A Garganta da Serpente
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Tem um morto em minha cama

(Lino França Jr.)

A chuva caía fraca, mas contínua naquela sexta-feira. O relógio marcou nove e quinze da noite. O telefone tocou estridente. Luisa levantou-se da poltrona na sala e caminhou até a mesinha onde ficava o aparelho.

- Alô.

- Luisa? - perguntou a voz do outro lado.

- Sim.

- Oi Lú. É o Tio Paulo. Seus pais estão em casa?

- Oi Tio. Eles não estão. Foram no casamento de uns primos da minha mãe. Aconteceu alguma coisa?

- Aconteceu sim Lú. A Vó Dalva faleceu essa noite.

- Oh meu Deus. Quando foi isso?

- Faz uma hora, mais ou menos. Os médicos me ligaram do hospital em que ela estava internada e deram a notícia.

- Entendi. Bom, pelo menos descansou, né Tio?

- É verdade, Lú. A coitada já não reconhecia mais ninguém. - disse o homem do outro lado da linha, em tom pesaroso. - Bom, faça o favor de ligar pro seu pai e avisá-lo. Como todos já contavam com isso, todo trâmite já foi adiantado, e o corpo será velado na capela do Cemitério da Anunciação.

- Tá bom, Tio. Eu vou ligar agora mesmo.

- Ok, Lú. Um beijo.

- Outro. - e a garota desligou o telefone.



Luisa era a mais velha das duas irmãs. Tinha dezenove anos e a irmã Luana, dezessete. Sua Avó Dalva, há tempos estava internada no hospital municipal. Os médicos já tinham antecipado que não havia mais solução para o caso. Tudo era questão de tempo. A avó era muito distante das netas. Sempre fora uma mulher amargurada e melancólica. Pouco tempo antes de perder a racionalidade, chegou a confidenciar a alguns parentes mais próximos que se arrependia por não ter sido amorosa com os parentes, principalmente com as duas únicas netas.

Dessa forma, as duas garotas também não nutriam amor pela avó.



Sempre que as irmãs ficavam sozinhas em casa, tinham o costume de dormirem juntas na cama de casal dos pais. O hábito vinha desde muito cedo, e mesmo depois de quase adultas, ainda mantinham a velha tradição.

Assim, Luisa foi até o quarto que dividia com a irmã para avisá-la:

- Lú, o Tio Paulo acabou de ligar. A Vó Dalva morreu.

A irmã mais nova permaneceu sentada olhando para a tela à sua frente.

- Você ouviu? - questionou Luisa.

- Sim, já ouvi. - respondeu a garota em voz alta. - O que você quer que eu diga? Quer que eu chore por alguém que sequer lembrava que eu existia?

Luisa encarou a irmã, mas não disse nada. Sabia que a caçula tinha razão. A avó era quase uma estranha para as meninas. Pôs a mão na maçaneta para fechar a porta e informou:

- Bom, eu vou ligar para o papai para avisá-lo. Depois vou me trocar e vou dar uma passada no velório. Você vem?

- Não. - respondeu secamente a irmã.



Luisa fez o que dissera. Avisou aos pais, que também não se surpreenderam com a notícia, colocou um casaco e passou novamente no quarto da irmã:

- Tô saindo. Não devo demorar. - avisou.

- Vai com Deus. - respondeu Luana.



A caçula estava cansada naquela noite. Permaneceu cerca de mais uma hora navegando da internet e então se preparou para dormir. Foi até a sala, verificou se a porta estava trancada. Tirou a chave da porta e se dirigiu ao quarto dos pais pra dormir na cama do casal. A chuva apertava lá fora, e o vento assoviava uma melodia sombria.

Ligou a TV e programou pra que o aparelho se desligasse sozinho em trinta minutos, mas antes desse tempo já estava dormindo.

Em pouco tempo começou a sonhar. No sonho, tinha a visão de um campo aberto, numa tarde ensolarada e com o céu num azul intenso. Ouviu chamar seu nome e olhou pra trás automaticamente. Na sua frente a avó que há tempos não via. A senhora vestia uma blusa de tricô e uma calça branca. Trazia um sorriso no rosto e acenava para a neta. De repente, um estrondo. Luana acordou assustada e percebeu que o barulho fora originado de um forte trovão. A chuva virara uma tempestade. A garota olhou para o rádio relógio que marcava, com suas luzes escarlates, meia-noite e vinte minutos. Os trovões continuavam a ribombar em sequência. Luisa levantou-se e foi até seu quarto, encontrou seu aparelho de mp3 e voltou para o quarto dos pais. Ligou o pequeno aparelho, colocou o fone no ouvido e em poucos minutos já dormia profundamente.

Acordou novamente com o barulho da porta abrindo-se. Olhou para o rádio relógio que agora marcava uma e meia da madrugada. "Até que a irmã não tinha demorado muito", pensou. Fechou os olhos e alguns minutos depois já percebeu que a irmã deitara ao seu lado na cama dos pais. A chuva continuava forte lá fora. A garota ajeitou-se na cama e sem querer tocou os pés na perna da irmã.

- Nossa Luisa, como você está gelada. Coloca uma calça de moletom pra dormir. - disse a garota com a voz pastosa, em meio ao sono interrompido tantas vezes.

Olhou para o relógio novamente. Os números piscavam indicando duas e dez da madrugada. Voltou a dormir.

Um dos fones do mp3 soltou-se do ouvido, e caiu e sua boca entreaberta. A garota arrancou o outro fone e o colocou na cabeceira da cama. Nesse momento, ouviu o barulho de chaves destrancando a porta da sala. "Meus pais chegaram", pensou. Ouviu passos aproximando-se do quarto e virou-se para ver os pais. A porta se abriu e surgiu uma mão apalpando a parede a procura do interruptor.

A luz se acendeu, e para surpresa de Luana não eram seus pais que chegavam, mas sim Luisa, que entrava no quarto tirando a roupa molhada.

Luana esfregou os olhos pra enxergar direito e perguntou:

- Onde você foi?

- Tá sonhando, Lú? - estranhou a irmã. - Esqueceu que fui ao velório da Vó?

- Mas então, quem estava deitada aqui do meu lado, há pouco?

- Acho que você sonhou... - disse Luisa se dirigindo ao banheiro.

Mas Luana sabia que não havia sonhado, nem mesmo imaginado alguém adentrar seu quarto e deitar ao seu lado.

A garota tentou voltar a dormir, mas não conseguiu. Passou o resto da madrugada acordada pensando na avó, que àquela altura, descansava no frio sono da morte.

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