Dia desses fui raspar a careca num barbeiro em Bethnal Green. O local estava
vazio, então já fui me sentando na cadeira preta e estofada, com
uns braços meio tortos que ficavam apoiados numa base meio torta também.
Tinha umas revistas pornôs meio perto de mim e eu catei algumas e pus
no colo. Não tenho paciência pra muita coisa, então as folheei
rapidamente, do meio para o início, reparando apenas que as mulheres
europeias, assim como as americanas, também valorizam mais os peitos
que a bunda. Olhei para o lado e havia um cara altíssimo que estava de
costas, limpando os pentes com um pincel amarelo. Ele se virou e disse: Oi,
sou o Jeffrey. Que vai ser hoje? Ele era um branquelo inglês, barba espessa
com carregado sotaque cockney - típico do leste londrino, talvez o equivalente
local do bairro da Mooca em São Paulo.
Ele passou um tempo me olhando enviesado, mesmo depois de eu dizer a ele que
raspasse os lados da minha cabeça, porque em cima já não
havia quase nada. Mas segundos depois, ele, me dando por estrangeiro, perguntou
de onde eu vinha. As aulinhas de inglês que eu havia feito no Soho não
tinham ajudado em nada. Para um brasileiro há dois anos na Inglaterra,
eu ainda tinha um sotaque do caralho.
- Brazil, eu disse, tentando esconder a falta de aptidão inglesa até
para pronunciar o nome do meu país. Todavia, olhando na cara daquele
brutamontes fantasiado de cabeleireiro, percebi que ele não havia gostado
da resposta, tanto que ele deu a balançar a cabeça de um lado
para o outro, meio puto, como que em negativa à minha resposta. Ainda
passei uns maus bocados porque ele segurava em uma das mãos uma linda
navalha alemã Toro J.B.H & S. Solingen raríssima, com uns
detalhes vermelhos, dentro dum desenho medievalista ou celta, a qual supunha
eu, usá-la na minha garganta - para escanhoar a barba. Mas, no mesmo
instante, eu fechei minha cara também, pois, de uma forma estranha (eu
havia procurado informações sobre o bairro na internet), aquela
era uma zona londrina duma espécie de quartel-general da extrema direita,
que odeia imigrantes, forasteiros e todo e qualquer outro ser humano que não
faça parte do registro civil britânico.
Às vezes acho que gosto de viver aqui exatamente por esta refinada
ironia britânica, tão diferente da arrogância narcisista
dos franceses, argentinos e cariocas. Quanto ao Jeffrey, ele continuava ali
atrás de mim, navalhona na mão, sorrindo através do espelho,
com uma boca rosa escancarada cheia de dentes estragados. Fiquei mal. Eu não
gosto muito de ver dentes estragados. O irônico é que, ele de pé
daquele jeito, ficava robusto e imponente como o Big Ben. Foi aí, todo
cheio de si, que ele disse:
- Vocês imigrantes, não sei por que arrumam jeito de sair do
país. Você por exemplo, nasceu num país ensolarado, festivo,
alegre e cheio de bundas. O que veio fazer neste lugar?
Fiquei surpreso, pois, a cultura britânica é um sistema radical,
por vezes de repreensão de sensações, instintos e sentimentos;
um povo completamente individual. Aprendi um pouco com uma mulher no Bristol,
em festas de Nu Skool Breaks. Ela era realmente profissional. Quase todos os
grandes nomes da literatura inglesa - Shakespeare, Dieckens, D.H. Laurence e
até os contemporâneos como Ian McEwan e Hanif Kureishi - não
se cansam de falar das paixões não declaradas e tesões
reprimidos. Mesmo se tratando de patriotismo. A não ser no Rugby, lógico.
Completamente diferentes de nós latino-americanos nacionalistas e apolíticos.
Para nós, ódio e amor é uma moeda inflacionada.
Aquele dia do barbeiro era um domingo lindo, porém branco e com um
solzinho de inverno. Tudo meio esquálido, como uma ligeira solidão
gostosa. Naqueles domingos londrinos, haviam os festivais de inverno, superlotados,
as ruas entupindo-se de punks, rappers, fat's curdos, hare krishnas mongois,
DJ's lésbicas e etecetera. A cidade vivia um caldeirão cultural
e uma imensa diversidade étnica, e eu quase não havia reparado
na sutileza das palavras de Jeffrey. Diante do espelho, assisti calado e quieto
meus cabelos caírem como pequenas pétalas negras. Lá fora,
dentro do branco das ruas, ouço um irresistível solo de guitarra
provavelmente oriundo de algum pub colonial de paredes sujas. Aquilo é
pra mim, como as Ilhas Galápagos devem ter sido para Charles Darwin enquanto
elaborava sua teoria evolutiva; ou, as Ilhas Cayman para algum parlamentar enquanto
buscava alguns paraísos fiscais. Olhei em torno e larguei as revistas,
dizendo a ele que estava em Londres só por causa de dinheiro. Então
ele perguntou se eu fazia programas.
- Você faz programas? Não, eu disse, e concluí pra ele,
que deixei meu pai adoentado do outro lado do Atlântico e vim buscar um
emprego qualquer, e que acabei arrumando um de webdesign numa empresa pequena
do outro lado da cidade. Ele ainda me olhando com certo nojo, talvez na dúvida
que eu faria programas.
Por fim, sacudi os cabelos (que já eram pêlos) e que ficavam
coçando minha nuca e minhas orelhas, passei as mãos sobre a careca
e dei o dinheiro ao Jeffrey, que sorriu e disse que gostaria de visitar o Brasil,
e eu disse a ele: Porra, muito escroto. Então ele virou as costas e disse:
Thank U. Eu respondi: Aí man, e apontei para o pub. Atravessamos a rua
e demos nas mesas frias, com cervejas geladas e o Hot-Rock. Eu disse: Lar doce
lar. Ele riu e levantou a taça. Batemos. Depois daquele dia eu deixei
o cabelo crescer e nunca mais vi o Jeffrey.