A Garganta da Serpente
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Sombras do destino

(Luciana Fátima)

Era uma noite chuvosa. Os raios cortavam o céu escuro e os trovões ecoavam por todas as partes, como se a natureza gritasse revoltada com o que acontecia dentro do antigo casarão.

A morte acabava de passar por ali e ceifar aquela vida, que mal começara. Era quase uma menina quando se casaram. Iriam completar um ano de união quando ela começara a tossir. Os melhores médicos foram chamados mas não havia muito o que fazer. Recomendaram apenas que fossem para as montanhas, pois o clima poderia fazer-lhe algum bem.

Aquele antigo casarão da família no alto da colina, abandonado há muitos anos, parecera o lugar perfeito, mas ninguém poderia imaginar que os ares das montanhas, ao contrário do que disseram os médicos, só piorariam seu estado. A tuberculose acabara com seus dias risonhos em muito menos tempo do que o esperado.

Naquele quarto, que seria perpetuado como um leito de morte, com as mãos entrelaçadas, tendo por testemunha apenas a tempestade, ele jurou jamais esquecê-la. E assim ela se foi... no meio de um horrível acesso de tosse, em que seus delicados pulmões não aguentaram.

Houve muito sofrimento no dia do sepultamento e ele decidiu voltar para a cidade o quanto antes, para tentar esquecer os últimos acontecimentos tão tristes. Procurou em vão lembrar-se dos momentos felizes que tiveram na mesma casa onde moraram, até que a solidão insuportável, o fez mudar-se para outra casa, com uma decoração que não lhe dilacerasse tanto o coração. A vida tinha que continuar, já que o destino decidira pôr fim aquela união que tinha tudo para ser eterna.

Levou, durante muito tempo, uma vida solitária que o afastou do convívio social, mas preferia assim. Passava os dias trabalhando sem parar e as noites trancado com seus livros, que eram sua única companhia.

Mesmo depois de vários anos, ele sempre voltava ao castelo para visitar o túmulo de sua amada e levar-lhe flores. Já estava conformado com sua sina, mas não a esquecia. Acendia uma vela e deixava uma rosa vermelha sobre a lápide nos aniversários de sua morte. Era uma maneira de cumprir seu juramento e dizer-lhe que não a havia esquecido.

Por ser um homem atraente, outras mulheres até tentaram aproximar-se dele, mas sem nenhum sucesso. Seu coração estava trancado para um novo amor. Não que quisesse continuar assim, mas não conseguia encontrar nenhuma pessoa capaz de preencher o vazio que a finada esposa deixara.

Um dia, enquanto caminhava soturno para o trabalho, sem perceber, ele esbarrou em uma pessoa na calçada. O choque, um tanto quanto forte, fez com que vários livros que a pessoa carregava, fossem derrubados. Tentou, todo atrapalhado desculpar-se, enquanto pegava os livros do chão. Um deles lhe chamou a atenção, por ser o que mais gostava de ler. Conteve-se para não comentar o fato, já que era apenas uma pessoa totalmente desconhecida.

Ao devolver-lhe os livros, seus olhos se cruzaram. Qual não foi sua surpresa ao perceber que a pessoa não era tão estranha assim. Eles haviam estudado juntos quando jovens e ela também o reconheceu. Depois de uma rápida conversa e várias desculpas, ele próprio estranhou, quando sem pensar, convidou-a para tomarem um sorvete, para apagar aquela estranha sensação de culpa por ter derrubado os livros.

Relembraram os velhos tempos, riram bastante e descobriram muitas coisas em comum. Ela contou-lhe como tinha sido sua vida desde que terminara o colégio, disse-lhe que morava apenas com sua empregada, depois da morte dos pais e que decidira não se casar por acreditar que não conseguiria se submeter a um marido que não compartilhasse de suas manias e, principalmente, do seu gosto pela leitura, o que era raro naqueles tempos. Ele falou-lhe da trágica e precoce morte de sua esposa e do quão difícil lhe era arrastar aquela existência sombria.

Despediram-se com a promessa de verem-se novamente e ela ficou surpresa quando uma semana depois ele batia à sua porta convidando-a para um almoço, mas aceitou feliz, por ter a oportunidade de conversar com uma pessoa tão inteligente. Começava ali, uma admiração mútua que caminhava lentamente para um sentimento mais nobre.

Algum tempo se passou e um frequentava assiduamente a casa do outro, já que eram adultos, e não se preocupavam com o que as pessoas poderiam falar. Discutiam muito sobre os mais diversos assuntos, saíam juntos e divertiam-se a trocar livros, já que tinham um gosto pela leitura bastante parecido. Estavam apaixonados e felizes mas ainda havia uma barreira que os distanciava.

Um dia, numa dessas visitas, conversavam animadamente sobre o casamento de uma amiga dos tempos de colégio. Ela, que já tinha intimidade suficiente, perguntou distraidamente se ele não pensava em casar-se novamente. Ele parou de sorrir, sua expressão mudou completamente e, com um olhar distante, respondeu friamente que não. Sem entender o que havia acontecido, ela tentou disfarçar e pediu algo para beber. Precisava de tempo para pensar no que poderia ter feito para deixá-lo tão taciturno.

Quando ele foi até a cozinha buscar algo, ela perambulando pela casa, não percebeu quando entrou no seu recinto sagrado, onde não tinha estado até então, a biblioteca. Tremendo foi o choque, que ela quase caiu ao ver espalhado por todos os lados, retratos da falecida esposa.

Não a encontrando na sala, ele correu para a biblioteca e lá viu-a pálida, sentada em sua poltrona predileta, que ficava bem em frente a um enorme retrato a óleo da finada, na porta de entrada. Por mais que tentasse, não conseguiu explicar-se nem encontrou nenhum motivo plausível para manter guardados tantos retratos de alguém que já tinha se ido há tanto tempo.

Apesar de conversarem bastante a respeito, ela nunca mais conseguiu esquecer aquela cena, mas também nunca questionou se ele havia mudado algo na biblioteca. Respeitando seus sentimentos, ela decidiu deixá-lo com a resolução de manter ou não os retratos e mesmo muito tempo depois, jamais tocaram novamente no assunto.

O sentimento existente entre eles aumentava a cada dia, até que não aguentando mais aquela situação, ela resolveu questioná-lo se não se casariam nunca e ele respondeu que a amava muito, mas que não conseguiria jamais casar-se novamente e pediu, em prantos, para que ela não insistisse.

Ela sentiu-se abalada com aquela reação, mas não quis transparecer sua decepção para não forçá-lo a uma decisão que ele não queria tomar. Ela foi embora naquela noite sentindo-se a última das mulheres.

Por que ele, amando-a tão profundamente como dizia, não conseguia se desligar de um fantasma? Provavelmente a outra teria sido muito mais digna de carregar o nome que ela não merecia... Por que ele não queria dividir sua vida com ela? O que teria de errado com ela? Chorou muito naquela noite, abraçada a uma camisola de núpcias que ela mantinha guardada há vários anos, pensando que jamais a usaria. Dilacerava-lhe a alma sentir-se tão apaixonada por um homem que jamais seria seu por inteiro e que jamais dividiria sua cama na noites frias e solitárias. Apesar de tudo, adorava-o e estava disposta a tudo por seu amor.

Depois daquela noite fatídica, ainda se viram muito, mas ela nunca mais foi a mesma pessoa. Aquele brilho apaixonado no olhar havia sido substituído por um olhar melancólico, porém ele nem percebera, tão acostumado que já estava com aquela presença constante em sua vida.

Estranhando que ela não dava notícias há dois dias, ele resolveu ir até sua casa. A empregada viajara para visitar uns parentes e ela poderia ter adoecido e sem querer preocupá-lo não o avisou. Era típico dela essa espécie de autossuficiência.

Como tinha a chave, entrou, procurando-a por todos os lados, sem encontrá-la. Já estava ficando preocupado quando resolveu procurar no único lugar que ainda não tinha ido.

Um grito de horror escapou de seus lábios ao ver, enquanto aproximava-se lentamente, o corpo exangue dentro da banheira, vestido com uma camisola que ele não conhecia e que já não era branca, mas totalmente manchada pelo sangue que esvaíra dos pulsos cortados...

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