Ao olhar pela janela do carro vê um homem metido nos couros de perneiras,
gibão e guarda-peito, trotando num lindo alazão. Andando na sua
frente, um cão magro. Com certeza está indo para a feira regional
que vai começar. Seus olhos mareiam. Fecha-os e recosta a cabeça
no banco. As imagens surgem de modo desordenado. Abre novamente seus olhos como
quem usa uma borracha para apagar o erro cometido na lição. Ainda
vê o homem que fica para trás. Vira a cabeça para tentar
ver o seu rosto, mas o veículo é mais veloz.
Deixando a cabeça cair com força sobre o encosto do banco, permite
que as lembranças tomem conta de seus pensamentos, como o sol forte e
quente que entra pela janela do automóvel. É como se pudesse ouvir
os sons, sentir os cheiros, ver as cores da nova terra onde chegara, fugindo
da seca.
Havia um grupo grande de viventes, como ele e os seus, todos padeciam da mesma
sina, fome e falta de trabalho. O povo daquelas terras já tinha aquilo
como natural; sua mãe colocou a trouxa que levava na cabeça no
chão, achegou-se ao marido e acolheu os meninos entre seus braços.
Medo, era o que sentia, sua vista nunca vira coisa igual. O aperto no coração
não era só dela, estava em todos. O novo, o desconhecido, um mundo
que só agora se torna real. Era uma cidade, não um povoado.
O olhar das pessoas que passavam era de indiferença, como se vissem através
de seus pais e irmão, eles não existiam. As lágrimas caem
na medida em que as lembranças avançam em sequência,
como um filme já editado. O gato, conhecido atravessador da mão-de-obra
rural aproximou-se feito uma ave medonha, pronta para arrancar os olhos da vítima,
dilacerar a carne, e comer as entranhas. Com sua conversa, levou-os para junto
dos outros. Misturaram-se crianças, homens, mulheres e velhos para embarcar
no pau-de-arara. Iriam trabalhar em um canavial em troca de comida. Foi isso
que entende da conversa do gato com seus pais.
Seus olhos cruzaram com um outro, que não viam através, mas viam
o que viam. Ele sorriu e os olhos sorriram para ele, caminharam em sua direção
e pararam um pouco distante de sua mãe. A mulher era diferente de sinhá
Vitória, tinha o corpo cheio, o rosto corado e os cabelos penteados,
que brilhavam debaixo dos raios do sol. Ela ficou imóvel olhando a família
de Fabiano, quando foi acordada do transe pelo gato.
"A senhora quer servir-se de algum deles, para seu uso?"
"O quê ?"
"Tô perguntando se a senhora, tá precisada de levar alguns
desses para ajudar nas tarefas da casa. Eles são fortes, comem pouco
e trabalham do nascer ao pôr do sol. Aproveita, pois não sei quando
deve chegar um outro lote."
"Não, obrigada. Para onde eles vão?"
"Vão ficar nas plantações de cana."
"Todos, até mesmo as crianças ?"
"Claro! E porque, deveria de ser diferente, elas não têm dois
braços, duas pernas e uma boca para comer ? Ou elas não precisam
de comida ?..."
"Mas, são crianças..."
"Escuta aqui Dona, vai levar um desses ou não ? Crianças...
Arre !"
Que tanta conversa era aquela entre a mulher e o homem? Seria sobre eles?
O menino virou-se para a mãe, que revirava a trouxa à procura
de um pouco de fumo para o cachimbo, tocou-lhe no braço e apontou para
mulher e para o gato que caminhavam agora em direção a eles. Sinhá
Vitória puxa a manga da camisa de Fabiano, que já havia percebido
há tempo a prosa dos dois. O que será agora ? Colocou-se à
frente da família. Levou a mão devagar ao cabo do facão,
firmou bem os pés feridos no chão e esperou.
Ao se aproximar, o gato estranhou a postura de Fabiano.
"O que é isso homem, que jeitos são esses", reagiu,
olhando dentro de seus olhos. Fabiano, ainda o encarou por alguns segundos,
mas desarmou-se aos gritos do homem que falava em voz alta, aos berros.
"Essa cambada de inúteis, mortos de fome, corja de vagabundos. Não
se pode querer ajudar esses infelizes porque logo agem como cães, que
mordem a mão de quem os alimenta..."
"Não é precisado de gritar não..."
"Como não é preciso, infeliz, você estava pronto pra
meter a mão no facão para me furar".
"Não senhor, eu só coloquei a mão para o caso de precisar
defender minha família..."
"Viu! Praga dos infernos...."
"Por favor, será que o senhor poderia deixar eu falar como eles."
"Claro! Mas vou ficar aqui próximo à senhora, caso precise..."
"Não tem necessidade. Obrigada!"
O gato afastou-se, com a mão no gatilho da espingarda, encarando Fabiano.
"Bom dia! Meu nome é Andaluzia."
Fabiano estranhou. Nunca tinham falado com ele como gente.
"Bom dia. A senhora tá precisada de alguma coisa ?"
Andaluzia olhou para Fabiano e para mulher, postada ao lado do marido. Sorriu
com um carinho quase maternal para o menino mais novo ao vê-lo enfiar
a cabeça entre o pai e a mãe. Sinhá Vitória lhe
deu um cascudo, resmungando algo que ela não entendeu. Voltou os olhos
para o casal e perguntou o que eles sabiam fazer. Dirigiu a pergunta ao vaqueiro.
A mulher ajudaria na cozinha e nos trabalhos da casa, mas, e ele?
"Bem, bem, eu sei cuidar de animais. Isso mesmo, Dona! Eu cuido e amanso
bichos."
Ela olha o brilho dos seus olhos azuis ao dizer tais palavras.
"Mas, senhor... Como é mesmo seu nome ?"
"Fabiano, Dona"
"Pois, Seu Fabiano, aqui não tem bichos para serem amansados ou
cuidados. Não há vacas, cabras ou bodes".
"Não?"
"Infelizmente, não!"
Ela parou, ficou pensando enquanto os olhos enormes do menino não desgrudavam
de seu rosto. Só tinha uma saída, levá-los todos para casa
e colocar Fabiano para cuidar do jardim, das plantas e da conservação
da casa. Seria bom ter novamente crianças correndo e brincando pela casa
depois da morte do seu marido e do filho.
Andaluzia registrou os meninos, assim como Fabiano e sinhá Vitória.
Matriculou as crianças na escola pública e achava engraçado
sinhá Vitória falar que a cama não era de varas e que tinha
drumido feito um anjo no céu.
Porém, passou a observar Fabiano, que andava triste. Já não
falava mais as palavras aprendidas com o filho mais novo, que o estava alfabetizando.
Fabiano veio a cair de cama. Não havia jeito dele melhorar. Levaram-no
para o hospital, mas três dias depois ele morreu. "Foi de saudade",
assim diagnosticou o médico. Contou que Fabiano, em momentos de delírio,
pensava estar domando algum animal. Nestes momentos era preciso de quatro a
cinco enfermeiros para segurá-lo na cama. O vaqueiro era muito forte.
Com a morte de Fabiano, o filho mais velho ganhou o mundo. Nunca mais tiveram
notícias dele. Sinhá Vitória não viu o filho mais
novo se tornar Doutor; morreu deitada sobre uma cama sem varas e com um colchão
de molas. Segurando suas mãos estava seu menino mais novo. Assim como
foi o marido de Andaluzia, também o menino não saía de
dentro da sala dos livros que havia na casa. Lia todos os livros de Direito.
Hoje, no dia de sua posse como Procurador da República, cumpriria a promessa
que fez à mãe enquanto segurava suas mãos no leito de morte:
fazer da nossa terra um lugar mais justo!
"Chegamos Doutor!".
Abre os olhos e seca as lágrimas. Salta do carro e começa a andar
devagar, caminhando como homem, pesado, cambaio, importante, como se tivesse
esporas tilintando.