A Garganta da Serpente
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Menino

(Luiz Carlos Sá)

Ao olhar pela janela do carro vê um homem metido nos couros de perneiras, gibão e guarda-peito, trotando num lindo alazão. Andando na sua frente, um cão magro. Com certeza está indo para a feira regional que vai começar. Seus olhos mareiam. Fecha-os e recosta a cabeça no banco. As imagens surgem de modo desordenado. Abre novamente seus olhos como quem usa uma borracha para apagar o erro cometido na lição. Ainda vê o homem que fica para trás. Vira a cabeça para tentar ver o seu rosto, mas o veículo é mais veloz.

Deixando a cabeça cair com força sobre o encosto do banco, permite que as lembranças tomem conta de seus pensamentos, como o sol forte e quente que entra pela janela do automóvel. É como se pudesse ouvir os sons, sentir os cheiros, ver as cores da nova terra onde chegara, fugindo da seca.

Havia um grupo grande de viventes, como ele e os seus, todos padeciam da mesma sina, fome e falta de trabalho. O povo daquelas terras já tinha aquilo como natural; sua mãe colocou a trouxa que levava na cabeça no chão, achegou-se ao marido e acolheu os meninos entre seus braços. Medo, era o que sentia, sua vista nunca vira coisa igual. O aperto no coração não era só dela, estava em todos. O novo, o desconhecido, um mundo que só agora se torna real. Era uma cidade, não um povoado.

O olhar das pessoas que passavam era de indiferença, como se vissem através de seus pais e irmão, eles não existiam. As lágrimas caem na medida em que as lembranças avançam em sequência, como um filme já editado. O gato, conhecido atravessador da mão-de-obra rural aproximou-se feito uma ave medonha, pronta para arrancar os olhos da vítima, dilacerar a carne, e comer as entranhas. Com sua conversa, levou-os para junto dos outros. Misturaram-se crianças, homens, mulheres e velhos para embarcar no pau-de-arara. Iriam trabalhar em um canavial em troca de comida. Foi isso que entende da conversa do gato com seus pais.

Seus olhos cruzaram com um outro, que não viam através, mas viam o que viam. Ele sorriu e os olhos sorriram para ele, caminharam em sua direção e pararam um pouco distante de sua mãe. A mulher era diferente de sinhá Vitória, tinha o corpo cheio, o rosto corado e os cabelos penteados, que brilhavam debaixo dos raios do sol. Ela ficou imóvel olhando a família de Fabiano, quando foi acordada do transe pelo gato.

"A senhora quer servir-se de algum deles, para seu uso?"

"O quê ?"

"Tô perguntando se a senhora, tá precisada de levar alguns desses para ajudar nas tarefas da casa. Eles são fortes, comem pouco e trabalham do nascer ao pôr do sol. Aproveita, pois não sei quando deve chegar um outro lote."

"Não, obrigada. Para onde eles vão?"

"Vão ficar nas plantações de cana."

"Todos, até mesmo as crianças ?"

"Claro! E porque, deveria de ser diferente, elas não têm dois braços, duas pernas e uma boca para comer ? Ou elas não precisam de comida ?..."

"Mas, são crianças..."

"Escuta aqui Dona, vai levar um desses ou não ? Crianças... Arre !"

Que tanta conversa era aquela entre a mulher e o homem? Seria sobre eles?

O menino virou-se para a mãe, que revirava a trouxa à procura de um pouco de fumo para o cachimbo, tocou-lhe no braço e apontou para mulher e para o gato que caminhavam agora em direção a eles. Sinhá Vitória puxa a manga da camisa de Fabiano, que já havia percebido há tempo a prosa dos dois. O que será agora ? Colocou-se à frente da família. Levou a mão devagar ao cabo do facão, firmou bem os pés feridos no chão e esperou.

Ao se aproximar, o gato estranhou a postura de Fabiano.

"O que é isso homem, que jeitos são esses", reagiu, olhando dentro de seus olhos. Fabiano, ainda o encarou por alguns segundos, mas desarmou-se aos gritos do homem que falava em voz alta, aos berros.

"Essa cambada de inúteis, mortos de fome, corja de vagabundos. Não se pode querer ajudar esses infelizes porque logo agem como cães, que mordem a mão de quem os alimenta..."

"Não é precisado de gritar não..."

"Como não é preciso, infeliz, você estava pronto pra meter a mão no facão para me furar".

"Não senhor, eu só coloquei a mão para o caso de precisar defender minha família..."

"Viu! Praga dos infernos...."

"Por favor, será que o senhor poderia deixar eu falar como eles."

"Claro! Mas vou ficar aqui próximo à senhora, caso precise..."

"Não tem necessidade. Obrigada!"

O gato afastou-se, com a mão no gatilho da espingarda, encarando Fabiano.

"Bom dia! Meu nome é Andaluzia."

Fabiano estranhou. Nunca tinham falado com ele como gente.

"Bom dia. A senhora tá precisada de alguma coisa ?"

Andaluzia olhou para Fabiano e para mulher, postada ao lado do marido. Sorriu com um carinho quase maternal para o menino mais novo ao vê-lo enfiar a cabeça entre o pai e a mãe. Sinhá Vitória lhe deu um cascudo, resmungando algo que ela não entendeu. Voltou os olhos para o casal e perguntou o que eles sabiam fazer. Dirigiu a pergunta ao vaqueiro. A mulher ajudaria na cozinha e nos trabalhos da casa, mas, e ele?

"Bem, bem, eu sei cuidar de animais. Isso mesmo, Dona! Eu cuido e amanso bichos."

Ela olha o brilho dos seus olhos azuis ao dizer tais palavras.

"Mas, senhor... Como é mesmo seu nome ?"

"Fabiano, Dona"

"Pois, Seu Fabiano, aqui não tem bichos para serem amansados ou cuidados. Não há vacas, cabras ou bodes".

"Não?"

"Infelizmente, não!"

Ela parou, ficou pensando enquanto os olhos enormes do menino não desgrudavam de seu rosto. Só tinha uma saída, levá-los todos para casa e colocar Fabiano para cuidar do jardim, das plantas e da conservação da casa. Seria bom ter novamente crianças correndo e brincando pela casa depois da morte do seu marido e do filho.

Andaluzia registrou os meninos, assim como Fabiano e sinhá Vitória. Matriculou as crianças na escola pública e achava engraçado sinhá Vitória falar que a cama não era de varas e que tinha drumido feito um anjo no céu.

Porém, passou a observar Fabiano, que andava triste. Já não falava mais as palavras aprendidas com o filho mais novo, que o estava alfabetizando. Fabiano veio a cair de cama. Não havia jeito dele melhorar. Levaram-no para o hospital, mas três dias depois ele morreu. "Foi de saudade", assim diagnosticou o médico. Contou que Fabiano, em momentos de delírio, pensava estar domando algum animal. Nestes momentos era preciso de quatro a cinco enfermeiros para segurá-lo na cama. O vaqueiro era muito forte.

Com a morte de Fabiano, o filho mais velho ganhou o mundo. Nunca mais tiveram notícias dele. Sinhá Vitória não viu o filho mais novo se tornar Doutor; morreu deitada sobre uma cama sem varas e com um colchão de molas. Segurando suas mãos estava seu menino mais novo. Assim como foi o marido de Andaluzia, também o menino não saía de dentro da sala dos livros que havia na casa. Lia todos os livros de Direito.

Hoje, no dia de sua posse como Procurador da República, cumpriria a promessa que fez à mãe enquanto segurava suas mãos no leito de morte: fazer da nossa terra um lugar mais justo!

"Chegamos Doutor!".

Abre os olhos e seca as lágrimas. Salta do carro e começa a andar devagar, caminhando como homem, pesado, cambaio, importante, como se tivesse esporas tilintando.

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