A Garganta da Serpente
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O Jantar

(Luiz Carlos Sá)

Da janela do luxuoso apartamento no Recreio, nova área nobre da cidade para onde todos os novos e velhos ricos têm migrado, entre uma baforada e outra de seu cigarro, olha fixo para o mar à sua frente, até que os gritos dos meninos de rua que ficam em frente ao sinal fazendo malabarismo chamam sua atenção. Eles brigam por algumas moedas jogadas pela loira do carro importado preto, que não espera o sinal abrir para arrancar com sua possante máquina.

Volta à sua realidade e percebe que já está na hora de preparar o jantar; dirige-se para a cozinha, mas antes coloca um CD de jazz, ritmo que ela adora. Olha para a rua e vê que o sol começa a se pôr atrás do lindo mar, deixando tudo avermelhado. Os meninos já partiram. Os camelôs começam a chegar e montam suas bancas; alguns usam carros velhos como barracas.

Já na cozinha muito bem decorada e organizada, onde cada coisa tem seu lugar e cada lugar tem sua coisa, ele suspira com saudades de sua esposa. Tudo ali traz lembranças dela. Ele a vê em cada detalhe, desde o pano de prato colorido ao mais sofisticado aparelho elétrico. É uma excelente decoradora, poderia até viver disso.

Por que o deixou? Tinha de tudo, inclusive o seu amor. Ele não cansava de repetir o quanto era apaixonado por ela. Abre uma garrafa de vinho branco e enche sua taça. Começa lavando muito bem os legumes; sua esposa sempre dizia: "lave bem tudo quando você for preparar a comida, principalmente os legumes". As lágrimas brotam e molham os legumes da salada que vai acompanhar o guisado, sua especialidade que será servida no jantar.

Um sorriso surge delicadamente em seus lábios. Embora não quisesse ser pernóstico, acreditava que seu guisado era algo transcendental. Foi o que ela falou quando começaram a namorar, três meses antes de ele se formar, quatro meses antes de se casarem e um ano após ele ter sido contratado como cirurgião plástico da clínica em que é sócio majoritário há seis anos.

Toma mais um gole de vinho enquanto os legumes cozinham. Lava o arroz que irá à panela logo que a água da chaleira começar a ferver. Ele sabe que ela gosta do arroz bem branquinho e solto como arroz de pensão. Solta uma gargalhada ao lembrar como ela sorri quando diz isso. O feijão que foi escolhido à moda de João Cabral, ficando as pedras no fundo da vasilha com água, já está cozido. Parece chocolate quente.

O cheiro do alho e da cebola que caem na panela com azeite quente, à espera do feijão e do louro, exalam um perfume caseiro, e quando todos eles se juntam trazem a lembrança da cena do casal se amando sobre a mesa da cozinha. É o mesmo cheiro de tempero caseiro que parecia sair de cada parte do corpo dela.

A chaleira apita avisando a hora de fazer o arroz que é colocado na panela. Logo em seguida é despejada a água e acrescentado o sal. Ele pega a colher de pau e leva-a a boca para saber se está bem temperado, lembrando-se de como era sensual vê-la fazer esse movimento. Isto o faz achar o sabor amargo feito fel, desistindo de prová-lo. Entorna de vez, garganta abaixo, o vinho da taça, para logo em seguida tornar a enchê-la.

Na sala, nota que as luzes da praia e da rua já estão acesas; acende a da sala, aumenta um pouco mais o som, olha ao redor e fiscaliza para ver se tudo está em ordem. Retorna para a cozinha e lava o que já sujou. Ela o ensinou a manter sempre tudo em ordem.

Escolhe as facas com a experiência de cirurgião, bem afiadas e próprias para começar a cortar a carne para o guisado. Primeiro pega uma faca menor para tirar a pele e separar a camada de gordura da carne. Nota que existe pouca gordura: é uma carne saudável; magra. Fica feliz com a escolha que fez, não só pelo aspecto, mas também porque irá proporcionar um excelente guisado, realmente transcendental.

Com a faca maior começa a cortar em pedaços nem muito grandes nem pequenos demais, na medida certa para pegarem o tempero feito com ervas finas, sal , cebola e alho. É tirado desse transe pelo barulho do interfone.

Lava as mãos sujas de sangue e, secando-as no avental, atende ao porteiro, seu Francisco.

- Doutor, são as flores que o senhor encomendou.

- Tá, pode mandar subir. Obrigado, Seu Francisco.

Já com a porta aberta ouvindo o barulho do elevador, recebe as sete dúzias de cravos brancos que pediu, despede-se do entregador dando-lhe uma gorjeta e fechando-a logo em seguida.

Coloca os cravos em vasos de cristal. Sentindo o seu perfume, não entende porque a mulher adora essas flores, com tantas mais belas, pelo menos para ele. Mas gosto é gosto... . Vai recordando como ela gostava de arrumar as flores nos jarros e espalhá-los pela casa; toca carinhosamente em um deles como se tocasse no rosto da esposa e o beija suavemente.

Pega os potes com as ervas finas, o alho bem amassado e a cebola bem picada, coloca tudo em uma vasilha e vai misturando, enquanto acrescenta o sal. O aroma é algo divino que realmente está à altura de sua convidada. Coloca a panela no fogo, adiciona duas colheres de manteiga, deixa dissolver e logo em seguida despeja a carne picada, deixando ficar cozinhando no fogo baixo.

Enquanto arruma a mesa, escolhe uma toalha de renda branca italiana, comprada nas últimas férias passadas na Europa. Ele ainda tem gravado na memória o seu sorriso, quando entrou numa loja em Milão e ficou encantada com aquela toalha. Coloca os castiçais e os dois jarros com os cravos sobre a mesa. Pega os pratos de porcelana e os talheres de prata, guardanapos de linho branquíssimos e taças de cristal.

A carne já bem cozida, começa tomar a forma do seu guisado. Ele abaixa um pouco a chama do fogão. Corta os tomates, os pimentões verdes, amarelos e vermelhos e um pouco de salsa. Coloca os ingredientes para fazer o molho; seu aspecto é apetitoso. Tampa a panela e escolhe o vinho tinto. Na dúvida entre o francês e o português, opta pelo português. Afinal, os franceses foram expulsos pelos portugueses. Leva a garrafa e a deposita sobre a mesa.

O aroma que toma conta do apartamento tem algo de mágico; ele parece não acreditar que fez tudo aquilo. Coloca as porções nas vasilhas que irão à mesa, por último a que contém o guisado. Olha para a cozinha, que está impecavelmente limpa. Repousam sobre a mesa os pedaços do corpo de sua esposa, cortados e embalados para irem para o freezer. Diminui a luz da sala e acende as velas. Abre a garrafa de vinho, sente o seu aroma e despeja-o em sua taça. Coloca duas colheres de arroz em seu prato, um pouco de feijão ao lado, além de alguns pedaços de legumes. Coloca uma porção bastante generosa do guisado sobre o arroz. Enquanto leva o garfo de prata a boca, pensa o que poderá preparar para o jantar da noite seguinte.

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