Pontualmente, às sete e meia da manhã, Jorge resolvia pegar as
chaves, guardadas no jaleco de algodão, no bolso esquerdo - não
que fosse canhoto, mas não havia um bolso do lado direito. Tinha sim
um na calça, mas Jorge estranhava o volume que se formava com aquele
molho de chaves, ainda mais dentro do ônibus, e por experiência
própria. Esbarrara numa pura donzela, exatamente nos glúteos com
o volume (apenas chaves, papéis, moedas e uma infinidade de outras coisas),
e ela, suponho, não gostara muito - nem Jorge, que permaneceu longos
dias com dores no incisivo direito. Doía ao mastigar. Além do
mais, doía menos quando via Amanda, a vizinha do 714. Sempre arranjava
uma ou outra desculpa: açúcar, arroz, ameixa - daí em diante.
Jorge? Formara-se em Administração de Empresas. Achava que ganharia
dinheiro fácil, em pouco tempo. Se assistisse às aulas saberia
mais e seria contratado por aquela empresa - aquela em que gaguejava até
ao falar seu próprio nome -, esperava ser efetivado - ainda espera.
São apenas dois anos de espera. Pouco tempo para quem está na
flor da idade. Trinta e cinco anos. É; flor da idade. Para ele é.
Agora, vive num subúrbio qualquer, pagando um aluguel exorbitante por
um casebre sem alvenaria e sujo. Contente estava, pois morava sozinho. Entre
aspas: morava com o Tubérculo. Nome bonito para um cachorro vira-lata
encontrado debaixo de um caixote num dia de chuva torrencial. Acolheu-o como
um filho, alimenta-o como um cachorro. Quando têm comida.
Inscreveu-se no concurso para assistente de administração do
Ensino Fundamental. Passou. Passou por que uma outra pessoa havia feito o mesmo
número de pontos e ele, sendo mais velho, passou à frente.
Pontualmente, às sete e meia da manhã, Jorge resolvia pegar as
suas chaves, guardadas no jaleco de algodão, no bolso esquerdo e colocá-las
no bolso da calça, isto quando estava adentrando o prédio onde
trabalhava. Abria a porta e arrumava suas tralhas no armário de hum mil
novecentos e noventa e um. Trancava às sete e trinta e cinco, esperava
dois minutos e ia sentar-se na mesa onde trabalhava.
Às oito horas parava de fitar os ponteiros do relógio, abria sua
gaveta e jogava os papeis velhos e cima da mesa. Às oito e trinta deixava
de analisá-los, para iniciar o uso frenético do Carimbo. Nove
horas, os papéis acabavam e ele tinha de iniciar uma nova tarefa, como
ligar o computador ou tomar um simples café. Simples, não fosse
a copeira que, ou esquecia do açúcar, ou esquecia do café.
Bom, para isso existia o computador.
Às nove e cinquenta e cinco, clicava duas vezes em um ícone
qualquer, fechava e, em seguida, trabalhava.
Às onze horas e trinta minutos, arfava o ar, reclamando do saco que
era dar entradas e saídas em processos não-processáveis.
Um processo o indignara: Roubo de boné. Queriam duzentos reais, fora
os danos morais. Danos morais... Que se danassem eles. Duzentos reais eram a
metade do salário de Jorge. Dava-lhe os duzentos e a felicidade de um
tênis novo.
Ao meio-dia, largava sua indignação e prosseguia ao almoço.
Um almoço rápido e barato. Caro era o quilograma. Jorge comia
miseras setenta e cinco gramas e isso mantinha sua feição atraentemente
cadavérica.
Às vezes, provocava neologismos quando conversava com algum outro funcionário.
Este mal lhe dava atenção, quando existia um para ouvir.
Às treze horas corria sem motivo até o ponto de ônibus,
esperava e pegava o único coletivo em duas horas de espera.
Fazia isso por Amanda, grande paixão de sua mocidade (mocidade? Desde
os seus dez anos), que namorava, fazia-se noiva, casara, separava-se, dois filhos,
uma pensão de um rico... Homem.
Mesmo assim Jorge dispunha seu coração a ela. Nunca gostara de
nenhuma outra moça, apenas Amanda. Um pouco platônico.
Às três horas dormia. Dormia profundamente. Até que algum
tiroteio iniciava e ele acordasse, xingando os sete sóis inexistentes
dos nomes que tanto sabia.
Às seis horas, findo o tiroteio, assistia algum trecho de novela, fingia
comoção e uma hora depois preparava seu jantar.
Às nove horas dormia. Até que um tiroteio o acordava.
Sua rotina era assim; imutável e permaneceria assim até seu fim.
Dependia monstruosamente do tempo, Despertava às seis, saía ás
seis e vinte, chegava às sete e meia. Seu relógio, comprado com
o suposto suor de seu rosto e vinte especiarias paraguaias, servia de consolo.
Bastava olhá-lo e ele dizia tudo que Jorge queria ouvir. O mantinha no
tempo certo; era escravo dele. A maior invenção humana; o tempo
- fora o relógio.
Colocara o relógio para despertá-lo às seis, como sempre.
Escovou os dentes - demorava pouco mais de dois minutos. Pegou as roupas, mesmas
de todo dia, as chaves e calçava o tênis que comprara em quinze
prestações (ainda lhe restava duas e outras três de juros).
Preparava o café da manhã, ou breakfast, como balbuciava
ao praticar Inglês. Às seis e quarenta havia feito tudo que precisava
para aguentar quatro horas de trabalho e ia para o ponto de ônibus.
Vinte minutos eram suficientes para ver Amanda pegar seu ônibus e ele
o dele. Às sete e vinte retirava as chaves guardadas no bolso esquerdo...
Rumou até sua sala, subindo os dezenove andares pela escada. Pois tinha
medo de que o elevador despencasse com e ele se borrasse de medo. Feito isso,
deu de cara com as portas fechadas. O que acontecera?
Não havia ninguém no prédio, nem mesmo o porteiro. Não
vira Amanda no mesmo horário. O que aconteceu!
Seu relógio havia pifado! Ele não sabia que horas eram. Dependia
exaustivamente de seu relógio e caso este falhasse trocava de bateria.
Mas e depois, como saber que horas são?
O relógio mais próximo ficava a dois quilômetros, transpassando-se
uma favela, e ele não era tão corajoso assim...
Resolver esperar. Esperou. Esperou e nada. Só não sabia quanto
tempo, mas parecia-lhe uma eternidade. O porteiro chegou e ele foi abrir a porta.
O relógio do mesmo também havia estragado. O relógio de
sua sala também. O do computador ficou desajustado e não havia
outro meio de configurá-lo e não sabia se estava o horário
certo ou não; marcavam nove horas. O que aconteceu com os relógios?
Trabalhou, não sabia quanto, se era cedo ou tarde. Esperou, então,
que o sol desistisse de iluminar o dia e viesse a noite, isto sim era certeza.
Pareciam-lhe anos e anos de espera, e nada.
Escureceu após longa espera. Ele tinha medo de errar seu próprio
tempo. Acostumou-se com a pontualidade. Agora estava desnorteado.
Esperou no ponto de ônibus, não vira o porteiro, nem ninguém.
A noite invadia tudo ao seu redor e novas luzes surgiam. Pegou seu ônibus
e dormiu. Pegou seu coletivo e dormiu. Passou de seu ponto e não sabia
onde estava. Desceu e caminhou até qualquer lugar que conhecesse.
Um sujeito encapuzado abordou-o. Queria o tênis, o jaleco e o relógio
e em troca, poupava-lhe a vida. Acordo justo - pensou Jorge. Agora, descalço,
seminu e sem horas, vagou pela cidade.
O dia surgiu e ele dormira no porto à beira do mar. Ficara a noite inteira
fitando as ondulações e a água. Não sabia onde estava
- só que estava.
O que faria?
Não aguentava viver sem sua pontualidade, era escravo dela. Soergueu-se,
olhou novamente a água. As gotículas d'água invadiam-lhe
o corpo e proporcionavam sensação jamais vista.
Pulou.
Era incapaz de viver sem seu relógio. E este, marcava sete e vinte.