A Garganta da Serpente
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Sete e Meia

(Luiz Claudio Fonseca)

Pontualmente, às sete e meia da manhã, Jorge resolvia pegar as chaves, guardadas no jaleco de algodão, no bolso esquerdo - não que fosse canhoto, mas não havia um bolso do lado direito. Tinha sim um na calça, mas Jorge estranhava o volume que se formava com aquele molho de chaves, ainda mais dentro do ônibus, e por experiência própria. Esbarrara numa pura donzela, exatamente nos glúteos com o volume (apenas chaves, papéis, moedas e uma infinidade de outras coisas), e ela, suponho, não gostara muito - nem Jorge, que permaneceu longos dias com dores no incisivo direito. Doía ao mastigar. Além do mais, doía menos quando via Amanda, a vizinha do 714. Sempre arranjava uma ou outra desculpa: açúcar, arroz, ameixa - daí em diante.

Jorge? Formara-se em Administração de Empresas. Achava que ganharia dinheiro fácil, em pouco tempo. Se assistisse às aulas saberia mais e seria contratado por aquela empresa - aquela em que gaguejava até ao falar seu próprio nome -, esperava ser efetivado - ainda espera.
São apenas dois anos de espera. Pouco tempo para quem está na flor da idade. Trinta e cinco anos. É; flor da idade. Para ele é.

Agora, vive num subúrbio qualquer, pagando um aluguel exorbitante por um casebre sem alvenaria e sujo. Contente estava, pois morava sozinho. Entre aspas: morava com o Tubérculo. Nome bonito para um cachorro vira-lata encontrado debaixo de um caixote num dia de chuva torrencial. Acolheu-o como um filho, alimenta-o como um cachorro. Quando têm comida.

Inscreveu-se no concurso para assistente de administração do Ensino Fundamental. Passou. Passou por que uma outra pessoa havia feito o mesmo número de pontos e ele, sendo mais velho, passou à frente.

Pontualmente, às sete e meia da manhã, Jorge resolvia pegar as suas chaves, guardadas no jaleco de algodão, no bolso esquerdo e colocá-las no bolso da calça, isto quando estava adentrando o prédio onde trabalhava. Abria a porta e arrumava suas tralhas no armário de hum mil novecentos e noventa e um. Trancava às sete e trinta e cinco, esperava dois minutos e ia sentar-se na mesa onde trabalhava.
Às oito horas parava de fitar os ponteiros do relógio, abria sua gaveta e jogava os papeis velhos e cima da mesa. Às oito e trinta deixava de analisá-los, para iniciar o uso frenético do Carimbo. Nove horas, os papéis acabavam e ele tinha de iniciar uma nova tarefa, como ligar o computador ou tomar um simples café. Simples, não fosse a copeira que, ou esquecia do açúcar, ou esquecia do café. Bom, para isso existia o computador.
Às nove e cinquenta e cinco, clicava duas vezes em um ícone qualquer, fechava e, em seguida, trabalhava.

Às onze horas e trinta minutos, arfava o ar, reclamando do saco que era dar entradas e saídas em processos não-processáveis. Um processo o indignara: Roubo de boné. Queriam duzentos reais, fora os danos morais. Danos morais... Que se danassem eles. Duzentos reais eram a metade do salário de Jorge. Dava-lhe os duzentos e a felicidade de um tênis novo.

Ao meio-dia, largava sua indignação e prosseguia ao almoço. Um almoço rápido e barato. Caro era o quilograma. Jorge comia miseras setenta e cinco gramas e isso mantinha sua feição atraentemente cadavérica.
Às vezes, provocava neologismos quando conversava com algum outro funcionário. Este mal lhe dava atenção, quando existia um para ouvir.

Às treze horas corria sem motivo até o ponto de ônibus, esperava e pegava o único coletivo em duas horas de espera.
Fazia isso por Amanda, grande paixão de sua mocidade (mocidade? Desde os seus dez anos), que namorava, fazia-se noiva, casara, separava-se, dois filhos, uma pensão de um rico... Homem.
Mesmo assim Jorge dispunha seu coração a ela. Nunca gostara de nenhuma outra moça, apenas Amanda. Um pouco platônico.

Às três horas dormia. Dormia profundamente. Até que algum tiroteio iniciava e ele acordasse, xingando os sete sóis inexistentes dos nomes que tanto sabia.
Às seis horas, findo o tiroteio, assistia algum trecho de novela, fingia comoção e uma hora depois preparava seu jantar.
Às nove horas dormia. Até que um tiroteio o acordava.

Sua rotina era assim; imutável e permaneceria assim até seu fim. Dependia monstruosamente do tempo, Despertava às seis, saía ás seis e vinte, chegava às sete e meia. Seu relógio, comprado com o suposto suor de seu rosto e vinte especiarias paraguaias, servia de consolo. Bastava olhá-lo e ele dizia tudo que Jorge queria ouvir. O mantinha no tempo certo; era escravo dele. A maior invenção humana; o tempo - fora o relógio.

Colocara o relógio para despertá-lo às seis, como sempre. Escovou os dentes - demorava pouco mais de dois minutos. Pegou as roupas, mesmas de todo dia, as chaves e calçava o tênis que comprara em quinze prestações (ainda lhe restava duas e outras três de juros).
Preparava o café da manhã, ou breakfast, como balbuciava ao praticar Inglês. Às seis e quarenta havia feito tudo que precisava para aguentar quatro horas de trabalho e ia para o ponto de ônibus. Vinte minutos eram suficientes para ver Amanda pegar seu ônibus e ele o dele. Às sete e vinte retirava as chaves guardadas no bolso esquerdo...

Rumou até sua sala, subindo os dezenove andares pela escada. Pois tinha medo de que o elevador despencasse com e ele se borrasse de medo. Feito isso, deu de cara com as portas fechadas. O que acontecera?

Não havia ninguém no prédio, nem mesmo o porteiro. Não vira Amanda no mesmo horário. O que aconteceu!
Seu relógio havia pifado! Ele não sabia que horas eram. Dependia exaustivamente de seu relógio e caso este falhasse trocava de bateria. Mas e depois, como saber que horas são?
O relógio mais próximo ficava a dois quilômetros, transpassando-se uma favela, e ele não era tão corajoso assim...
Resolver esperar. Esperou. Esperou e nada. Só não sabia quanto tempo, mas parecia-lhe uma eternidade. O porteiro chegou e ele foi abrir a porta. O relógio do mesmo também havia estragado. O relógio de sua sala também. O do computador ficou desajustado e não havia outro meio de configurá-lo e não sabia se estava o horário certo ou não; marcavam nove horas. O que aconteceu com os relógios?
Trabalhou, não sabia quanto, se era cedo ou tarde. Esperou, então, que o sol desistisse de iluminar o dia e viesse a noite, isto sim era certeza. Pareciam-lhe anos e anos de espera, e nada.

Escureceu após longa espera. Ele tinha medo de errar seu próprio tempo. Acostumou-se com a pontualidade. Agora estava desnorteado.
Esperou no ponto de ônibus, não vira o porteiro, nem ninguém. A noite invadia tudo ao seu redor e novas luzes surgiam. Pegou seu ônibus e dormiu. Pegou seu coletivo e dormiu. Passou de seu ponto e não sabia onde estava. Desceu e caminhou até qualquer lugar que conhecesse.

Um sujeito encapuzado abordou-o. Queria o tênis, o jaleco e o relógio e em troca, poupava-lhe a vida. Acordo justo - pensou Jorge. Agora, descalço, seminu e sem horas, vagou pela cidade.

O dia surgiu e ele dormira no porto à beira do mar. Ficara a noite inteira fitando as ondulações e a água. Não sabia onde estava - só que estava.
O que faria?

Não aguentava viver sem sua pontualidade, era escravo dela. Soergueu-se, olhou novamente a água. As gotículas d'água invadiam-lhe o corpo e proporcionavam sensação jamais vista.
Pulou.
Era incapaz de viver sem seu relógio. E este, marcava sete e vinte.

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