A Garganta da Serpente
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A Sucuri...

(Lenine de Carvalho)

Sozinho dentro do barco, olho para a luz amarelada do pequeno lampião, pendurado em um galho de árvore na frente da pequena barraca, armada a pouca distância da margem do rio Pardo, no Mato Grosso.

Estou "apoitado", ancorado a uns vinte metros da margem sob um céu resplandecente de estrelas.

As águas um pouco turvas do rio, correm por debaixo do barco, produzindo um suave murmúrio, uma canção imemorial acompanhando seu viajar...

Ajeito as duas varas com carretilhas no barco, tenho a pretensão de fisgar um pintado, não muito grande e prepara-lo assado num buraco no chão, cheio de brasas, envolto em folhas largas.

A floresta ainda intocada esta às margens do rio e além da barraca, com todos seus habitantes, uns despertos outros dormindo, como os grandes macacos nas árvores, cada um cumprindo o que lhe designou a natureza.

Estou sentado dentro do barco, numa cadeira de lona dobrável e apoiando os pés no banco em frente, ponho-me numa posição mais confortável e acendo o cachimbo espalhando pelo ar o cheiro aromático e adocicado do tabaco holandês.

Estou contente... Estou onde quero estar neste momento e fazendo o que gosto de fazer sozinho, mas não solitário, sobre minha cabeça um céu limpo a refletir brilhantes estrelas, convida os pensamentos a se libertarem e a conversarem entre si...

Tantas estrelas... Que formas de vida abrigarão outros mundos pelo Universo?

Que formas de consciências existirão além da minha?

Ah, pobre planeta Terra... Pobres seres prisioneiros deste minúsculo globo a girar no Cosmos...

Acomodo-me melhor na cadeira de lona, depois de dar uns puxões nas duas varas, movimentando as iscas vivas embaixo da água.

Sobre o banco, perto de meus pés, a lanterna, a faca de caça e a pistola automática carregada dentro do coldre de couro, para qualquer eventualidade ou necessidade que possa ocorrer.

Fito longamente as estrelas que brilham num céu infinito, passeio os olhos pelo contorno escuro da floresta ao lado, imaginando os habitantes da mata em sua busca incessante pela sobrevivência, a procura de alimentos, a cruel cadeia alimentar, onde os maiores devoram os menores e se acasalam sem amor, apenas por instinto, mas é também um mundo onde não há crueldades ou perversidades conscientes, a onça mata cervos, pacas, capivaras, porcos do mato para se alimentar não pelo prazer de matar, como fazem os homens.

Ah, os homens... Seres destinados a viverem sempre em conflito com outros homens e consigo mesmo, eternamente, imutavelmente, sentindo todas as nuances e intensidades que a dor possa atingir, a dor física, espiritual, moral, numa incessante e triste repetição, geração após geração em ciclos sempre iguais, de busca e solidão...

Olho para a massa escura da floresta que se perde na noite estrelada...

Amanhã passearei pela floresta, percorrerei trilhas e caminhos, descobrirei belezas que outros olhos talvez não tenham visto, sentirei "presenças" que não sei explicar, mas sentirei também a alegria sempre renovada, de andar por entre as altas árvores, ouvindo o silêncio...

À noite está agradável, fresca, depois do intenso calor do dia.

A correnteza do rio não é forte e o barco não se move...

Tantas estrelas meu Deus!

Ah, Deus... Outra ideia polêmica a dividir os homens, a fazê-los matarem-se e cometerem incríveis atrocidades em nome dessa ideia... Deus... Um Deus que exige ser venerado, adorado, louvado, glorificado e temido... Um Deus vingativo e cruel, punitivo, exatamente feito à imagem e semelhança do homem...

Uma das varas no bote curva-se violentamente e a linha começa a deslizar na fricção da carretilha, fazendo barulho.

Agarro rapidamente a vara, dou um puxão para cima e sinto o peso de alguma coisa, um peixe, puxando o anzol com força para o meio do rio... Seguro com força com as duas mãos a vara de carretilha, puxo um pouco para cima e tento girar a manivela, recolhendo um pouco de linha, então o peso desaparece, a linha fica frouxa e eu a recolho rapidamente... O anzol está limpo... Sem isca... O peixe conseguiu soltar-se... Coloco novamente um peixinho vivo, tirado do balde com água perto do assento do barco e lanço novamente o anzol no lugar onde estava antes... Agora, só resta esperar...

Uma pescaria desse tipo é feita de esperas... Como tanta coisa na vida... Esperas e paciências... Esperar o imponderável muitas vezes, ou apenas desfrutar o momento e fazer companhia a si mesmo, observando os pensamentos conversando entre si...

Fito novamente as estrelas... Tento imaginar e sentir a insignificância do que represento neste momento sentado sozinho dentro de um pequeno barco, num rio do Mato Grosso, num planeta belicoso e cruel, comparando minha existência com todo o Cosmos, o Universo, Universos de Estrelas... É assustador...

Tão pequena esta Terra... Tão grandes os problemas, aflições, conflitos que esmagam o ser humano em sua transitória passagem por aqui...

Mas, existe a Poesia... Ah, a Poesia... Quem a inventou?

Essa linguagem tão especial a dar forma e vida aos sentimentos, emoções mais profundas, tristezas e alegrias...

As tantas e diferentes faces do Amor...

Porque o Amor terá sempre que rimar com algum tipo de dor?

Amor e Sexo... Levei tanto tempo para compreender que são coisas completamente diferentes... Podem existir sozinhos e assim o é na maior parte das vezes... Separados... Independentes um do outro... Cada qual com sua terrível importância e cuja ausência provoca os mais intensos males, físicos e emocionais...

Mas quando o sexo é também acompanhado de amor, nas raras vezes em que isso consegue acontecer, então a alma também tem seu prazer muito especial...

Mas, um dia o sexo será escasso... Ausente e até inexistente... E isso será mais uma triste fonte de conflitos, frustrações e imensa solidão para o bicho homem...

O homem... Um projeto que não deu certo?

Como conceber um tipo de Mente Cósmica, de Consciência Superior, de algum Deus enfim, que possa estar inteirado de cada instante de cada existência que há na Terra? E de outras existências, consciências, pelo Universo afora?

Fomos então deixados ao acaso?

Para quem orar então? Para quem rezar, pedir, suplicar?

Talvez no fim, o ato de rezar, orar, faça algum bem apenas ao que reza, ora, mas não consegue mudar as coisas que terão de acontecer... Pode ser tão assustadora a solidão, quando nos damos conta, do quão sozinhos na realidade estamos...

Ouço o suave murmúrio do rio...

De repente, a mesma vara curva-se outra vez e eu a puxo novamente com força para cima e sinto que algo foi fisgado!

A fricção da carretilha canta e eu aperto um pouco mais, agora é segurar firme a vara de fibra na mão, deixar o peixe se cansar e tentar recolhê-lo!

A linha é puxada para o meio do rio, depois em ziguezague, vem para perto da margem, tenho que fazer muita força para segurar a vara!

Começo a girar a manivela lentamente, recolhendo linha e peixe, o peso é muito grande, mas pouco a pouco vem vindo!

Esta próximo ao barco, pego a lanterna com uma das mãos e ilumino a sombra escura ao lado do barco, parece ser bastante grande!

Coloco a lanterna sobre o banco novamente para poder usar as duas mãos, recolho mais linha, e o pintado põe a cabeça fora da água!

Com uma mão seguro a linha, com a outra empunho a fisga curva e sem haste, espeto-a perto de sua cauda e o recolho para dentro do barco!

Deve pesar por volta de uns 10 quilos, o tamanho ideal para ser saboreado, estou contente, como um homem primitivo, das cavernas, que conseguiu sua presa, seu alimento!

Quantas coisas atávicas nos acompanharão para sempre?

Recolho a outra vara, não há mais necessidade de se pegar nenhum outro peixe.

Ouço um súbito barulho de alguma coisa raspando contra a corrente onde esta amarrada à corda da poita, da âncora... Imagino ser algum galho de árvore, alguma coisa trazida pela correnteza e que trombou na corrente do barco.

Sento-me no banco e decido dar mais umas cachimbadas antes de retirar a poita e ir para o acampamento.

Retiro o tabaco queimado do bojo do cachimbo e o encho com o tabaco aromático tirado da latinha especial... Acendo-o e saboreio a fumaça suave e adocicada... Olho novamente as estrelas...

O barulho às minhas costas na corrente do barco aumenta e o barco se move um pouco para a direita... Alguma coisa enroscou na corrente... Acendo a lanterna, viro-me para trás e ilumino a cabeça gigantesca de uma sucuri que esta subindo no barco através da corrente da poita!

A língua bifurcada sai da boca e recolhe-se rapidamente, fazendo um reconhecimento do ambiente, identificando o calor de meu corpo, calculando a distancia para o bote mortal!

Fico alguns instantes paralisado, iluminando aquela cabeça enorme, nunca havia visto uma daquele tamanho, apesar de já ter visto inúmeras sucuris em minhas andanças e acampamentos pelas matas.

Rapidamente minha mão empunha a pistola, aponto para aquela cabeça a pouco mais de um metro de minha própria cabeça, mas o pensamento que talvez não seja necessário matar um bicho daquele tamanho e que já deve ter sobrevivido a tanta coisa, impede-me de apertar o gatilho...

Levanto-me rapidamente da cadeira, pego o pesado remo de madeira e com força golpeio a cabeça e pescoço da sucuri, jogando-a na água!

Com a luz da lanterna acompanho sua trajetória dentro da água, indo em direção à margem, ao lugar onde armei a pequena barraca...Vejo-a subir o pequeno barranco e desaparecer na folhagem...

Sento-me novamente na cadeira de lona...Tomo água do galão térmico de plástico... Fiquei assustado, nunca tinha visto uma sucuri daquele tamanho.

Caramba, por pouco meu filosofar com as estrelas não termina definitivamente ali, dentro do barco...

Teria sido uma morte horrível... Extremamente dolorosa e muito demorada... A sucuri teria me abocanhado provavelmente pela cabeça, depois enrolado seu corpo grosso e musculoso em meu corpo, a boca soltaria minha cabeça, eu estaria preso, sem conseguir me mover... E ela começaria a esmagar-me lentamente, com sua força contrita, a cada vez que eu expirasse o ar dos pulmões, ela apertaria mais um pouco os poderosos anéis, quebrando algum osso meu, apertando os laços lentamente, numa agonia que duraria horas e horas, até eu perder a consciência... Depois, espalharia uma baba viscosa e deslizante sobre todo meu corpo e começaria o processo de engolir-me, inteiro mas com os ossos todos quebrados e isso também levaria horas e horas e ninguém mais saberia de mim, teria desaparecido sem deixar rastros...

Mas, não haveria nenhuma crueldade nem perversidade consciente por parte daquela imensa cobra, apenas estaria se alimentando da forma que a natureza a dotou para caçar e engolir a presa...

Caramba, considero que quando chegar a minha hora, devo merecer uma morte rápida e sem dor e que assim seja...

Percebo que as mãos tremem um pouco ao tentar acender o cachimbo, já levei grandes sustos antes em minha vida e sei que a reação do corpo depois que tudo passou, demora um pouco para refletir-se em tremores das mãos e das pernas...

Respiro fundo e tento me acalmar, a morte esteve tão perto... Como já esteve outras vezes também...

O silêncio parecer ser maior agora... Um silêncio que esmaga... Pego a pistola e dou dois tiros para cima, para quebrar aquele silêncio de morte...

Os estampidos fortes ecoam por todo o rio e a mata.

Imediatamente desata-se uma grande gritaria de protesto nas árvores ao redor do acampamento e eu sorrio ao pensar que acordei tanta gente, macacos e todos os tipos de aves que estavam dormindo...

Recolho a poita para dentro do barco, não há necessidade de se funcionar o motor de popa para um trajeto tão pequeno e a correnteza não é forte.

Vou remando até a margem, em frente à barraca, com certeza a sucuri não esta por perto, deve ter ido para mais longe, atrás de outra comida, que se deixe apanhar com mais facilidade.

Retiro as coisas do barco e as levo para a pequena barraca.

Pego o lampião do galho de árvore e o trago para a beira do rio, limpo o pintado lavando-o na correnteza, faço alguns cortes com a faca em seu corpo e coloco sal, nos cortes e dentro dele.

Amanhã farei um buraco no chão e uma fogueira dentro do buraco, depois, envolverei o pintado com várias camadas de folhas largas, o colocarei no braseiro e fecharei parcialmente o buraco com as brasas, depois de algumas horas já estará pronto e delicioso.

Dentro da barraca deito-me na rede... O coração está acelerado, a adrenalina ainda esta alta e fico pensando que se eu fosse dado a beber e estivesse bêbado ou dormindo dentro do barco, iria acordar já enlaçado pela sucuri e sem condições de me soltar, de me defender.

Tão frágil o ser humano...

Ainda bem que ouvi o barulho da sucuri subindo no barco.

Quem maneja o "Acaso"?

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