Sozinho dentro do barco, olho para a luz amarelada do pequeno lampião, 
  pendurado em um galho de árvore na frente da pequena barraca, armada 
  a pouca distância da margem do rio Pardo, no Mato Grosso.
  Estou "apoitado", ancorado a uns vinte metros da margem sob um céu 
  resplandecente de estrelas.
  As águas um pouco turvas do rio, correm por debaixo do barco, produzindo 
  um suave murmúrio, uma canção imemorial acompanhando seu 
  viajar...
  Ajeito as duas varas com carretilhas no barco, tenho a pretensão de fisgar 
  um pintado, não muito grande e prepara-lo assado num buraco no chão, 
  cheio de brasas, envolto em folhas largas.
  A floresta ainda intocada esta às margens do rio e além da barraca, 
  com todos seus habitantes, uns despertos outros dormindo, como os grandes macacos 
  nas árvores, cada um cumprindo o que lhe designou a natureza.
  Estou sentado dentro do barco, numa cadeira de lona dobrável e apoiando 
  os pés no banco em frente, ponho-me numa posição mais confortável 
  e acendo o cachimbo espalhando pelo ar o cheiro aromático e adocicado 
  do tabaco holandês.
  Estou contente... Estou onde quero estar neste momento e fazendo o que gosto 
  de fazer sozinho, mas não solitário, sobre minha cabeça 
  um céu limpo a refletir brilhantes estrelas, convida os pensamentos a 
  se libertarem e a conversarem entre si...
  Tantas estrelas... Que formas de vida abrigarão outros mundos pelo Universo?
  Que formas de consciências existirão além da minha?
  Ah, pobre planeta Terra... Pobres seres prisioneiros deste minúsculo 
  globo a girar no Cosmos...
  Acomodo-me melhor na cadeira de lona, depois de dar uns puxões nas duas 
  varas, movimentando as iscas vivas embaixo da água.
  Sobre o banco, perto de meus pés, a lanterna, a faca de caça e 
  a pistola automática carregada dentro do coldre de couro, para qualquer 
  eventualidade ou necessidade que possa ocorrer.
  Fito longamente as estrelas que brilham num céu infinito, passeio os 
  olhos pelo contorno escuro da floresta ao lado, imaginando os habitantes da 
  mata em sua busca incessante pela sobrevivência, a procura de alimentos, 
  a cruel cadeia alimentar, onde os maiores devoram os menores e se acasalam sem 
  amor, apenas por instinto, mas é também um mundo onde não 
  há crueldades ou perversidades conscientes, a onça mata cervos, 
  pacas, capivaras, porcos do mato para se alimentar não pelo prazer de 
  matar, como fazem os homens.
  Ah, os homens... Seres destinados a viverem sempre em conflito com outros homens 
  e consigo mesmo, eternamente, imutavelmente, sentindo todas as nuances e intensidades 
  que a dor possa atingir, a dor física, espiritual, moral, numa incessante 
  e triste repetição, geração após geração 
  em ciclos sempre iguais, de busca e solidão...
  Olho para a massa escura da floresta que se perde na noite estrelada...
  Amanhã passearei pela floresta, percorrerei trilhas e caminhos, descobrirei 
  belezas que outros olhos talvez não tenham visto, sentirei "presenças" 
  que não sei explicar, mas sentirei também a alegria sempre renovada, 
  de andar por entre as altas árvores, ouvindo o silêncio...
  À noite está agradável, fresca, depois do intenso calor 
  do dia.
  A correnteza do rio não é forte e o barco não se move...
  Tantas estrelas meu Deus!
  Ah, Deus... Outra ideia polêmica a dividir os homens, a fazê-los 
  matarem-se e cometerem incríveis atrocidades em nome dessa ideia... 
  Deus... Um Deus que exige ser venerado, adorado, louvado, glorificado e temido... 
  Um Deus vingativo e cruel, punitivo, exatamente feito à imagem e semelhança 
  do homem...
  Uma das varas no bote curva-se violentamente e a linha começa a deslizar 
  na fricção da carretilha, fazendo barulho.
  Agarro rapidamente a vara, dou um puxão para cima e sinto o peso de alguma 
  coisa, um peixe, puxando o anzol com força para o meio do rio... Seguro 
  com força com as duas mãos a vara de carretilha, puxo um pouco 
  para cima e tento girar a manivela, recolhendo um pouco de linha, então 
  o peso desaparece, a linha fica frouxa e eu a recolho rapidamente... O anzol 
  está limpo... Sem isca... O peixe conseguiu soltar-se... Coloco novamente 
  um peixinho vivo, tirado do balde com água perto do assento do barco 
  e lanço novamente o anzol no lugar onde estava antes... Agora, só 
  resta esperar...
  Uma pescaria desse tipo é feita de esperas... Como tanta coisa na vida... 
  Esperas e paciências... Esperar o imponderável muitas vezes, ou 
  apenas desfrutar o momento e fazer companhia a si mesmo, observando os pensamentos 
  conversando entre si...
  Fito novamente as estrelas... Tento imaginar e sentir a insignificância 
  do que represento neste momento sentado sozinho dentro de um pequeno barco, 
  num rio do Mato Grosso, num planeta belicoso e cruel, comparando minha existência 
  com todo o Cosmos, o Universo, Universos de Estrelas... É assustador...
  Tão pequena esta Terra... Tão grandes os problemas, aflições, 
  conflitos que esmagam o ser humano em sua transitória passagem por aqui...
  Mas, existe a Poesia... Ah, a Poesia... Quem a inventou?
  Essa linguagem tão especial a dar forma e vida aos sentimentos, emoções 
  mais profundas, tristezas e alegrias...
  As tantas e diferentes faces do Amor...
  Porque o Amor terá sempre que rimar com algum tipo de dor?
  Amor e Sexo... Levei tanto tempo para compreender que são coisas completamente 
  diferentes... Podem existir sozinhos e assim o é na maior parte das vezes... 
  Separados... Independentes um do outro... Cada qual com sua terrível 
  importância e cuja ausência provoca os mais intensos males, físicos 
  e emocionais...
  Mas quando o sexo é também acompanhado de amor, nas raras vezes 
  em que isso consegue acontecer, então a alma também tem seu prazer 
  muito especial...
  Mas, um dia o sexo será escasso... Ausente e até inexistente... 
  E isso será mais uma triste fonte de conflitos, frustrações 
  e imensa solidão para o bicho homem...
  O homem... Um projeto que não deu certo?
  Como conceber um tipo de Mente Cósmica, de Consciência Superior, 
  de algum Deus enfim, que possa estar inteirado de cada instante de cada existência 
  que há na Terra? E de outras existências, consciências, pelo 
  Universo afora?
  Fomos então deixados ao acaso?
  Para quem orar então? Para quem rezar, pedir, suplicar?
  Talvez no fim, o ato de rezar, orar, faça algum bem apenas ao que reza, 
  ora, mas não consegue mudar as coisas que terão de acontecer... 
  Pode ser tão assustadora a solidão, quando nos damos conta, do 
  quão sozinhos na realidade estamos...
  Ouço o suave murmúrio do rio...
  De repente, a mesma vara curva-se outra vez e eu a puxo novamente com força 
  para cima e sinto que algo foi fisgado!
  A fricção da carretilha canta e eu aperto um pouco mais, agora 
  é segurar firme a vara de fibra na mão, deixar o peixe se cansar 
  e tentar recolhê-lo!
  A linha é puxada para o meio do rio, depois em ziguezague, vem para perto 
  da margem, tenho que fazer muita força para segurar a vara!
  Começo a girar a manivela lentamente, recolhendo linha e peixe, o peso 
  é muito grande, mas pouco a pouco vem vindo!
  Esta próximo ao barco, pego a lanterna com uma das mãos e ilumino 
  a sombra escura ao lado do barco, parece ser bastante grande!
  Coloco a lanterna sobre o banco novamente para poder usar as duas mãos, 
  recolho mais linha, e o pintado põe a cabeça fora da água!
  Com uma mão seguro a linha, com a outra empunho a fisga curva e sem haste, 
  espeto-a perto de sua cauda e o recolho para dentro do barco!
  Deve pesar por volta de uns 10 quilos, o tamanho ideal para ser saboreado, estou 
  contente, como um homem primitivo, das cavernas, que conseguiu sua presa, seu 
  alimento!
  Quantas coisas atávicas nos acompanharão para sempre?
  Recolho a outra vara, não há mais necessidade de se pegar nenhum 
  outro peixe.
  Ouço um súbito barulho de alguma coisa raspando contra a corrente 
  onde esta amarrada à corda da poita, da âncora... Imagino ser algum 
  galho de árvore, alguma coisa trazida pela correnteza e que trombou na 
  corrente do barco.
  Sento-me no banco e decido dar mais umas cachimbadas antes de retirar a poita 
  e ir para o acampamento.
  Retiro o tabaco queimado do bojo do cachimbo e o encho com o tabaco aromático 
  tirado da latinha especial... Acendo-o e saboreio a fumaça suave e adocicada... 
  Olho novamente as estrelas...
  O barulho às minhas costas na corrente do barco aumenta e o barco se 
  move um pouco para a direita... Alguma coisa enroscou na corrente... Acendo 
  a lanterna, viro-me para trás e ilumino a cabeça gigantesca de 
  uma sucuri que esta subindo no barco através da corrente da poita!
  A língua bifurcada sai da boca e recolhe-se rapidamente, fazendo um reconhecimento 
  do ambiente, identificando o calor de meu corpo, calculando a distancia para 
  o bote mortal!
  Fico alguns instantes paralisado, iluminando aquela cabeça enorme, nunca 
  havia visto uma daquele tamanho, apesar de já ter visto inúmeras 
  sucuris em minhas andanças e acampamentos pelas matas.
  Rapidamente minha mão empunha a pistola, aponto para aquela cabeça 
  a pouco mais de um metro de minha própria cabeça, mas o pensamento 
  que talvez não seja necessário matar um bicho daquele tamanho 
  e que já deve ter sobrevivido a tanta coisa, impede-me de apertar o gatilho...
  Levanto-me rapidamente da cadeira, pego o pesado remo de madeira e com força 
  golpeio a cabeça e pescoço da sucuri, jogando-a na água!
  Com a luz da lanterna acompanho sua trajetória dentro da água, 
  indo em direção à margem, ao lugar onde armei a pequena 
  barraca...Vejo-a subir o pequeno barranco e desaparecer na folhagem...
  Sento-me novamente na cadeira de lona...Tomo água do galão térmico 
  de plástico... Fiquei assustado, nunca tinha visto uma sucuri daquele 
  tamanho.
  Caramba, por pouco meu filosofar com as estrelas não termina definitivamente 
  ali, dentro do barco...
  Teria sido uma morte horrível... Extremamente dolorosa e muito demorada... 
  A sucuri teria me abocanhado provavelmente pela cabeça, depois enrolado 
  seu corpo grosso e musculoso em meu corpo, a boca soltaria minha cabeça, 
  eu estaria preso, sem conseguir me mover... E ela começaria a esmagar-me 
  lentamente, com sua força contrita, a cada vez que eu expirasse o ar 
  dos pulmões, ela apertaria mais um pouco os poderosos anéis, quebrando 
  algum osso meu, apertando os laços lentamente, numa agonia que duraria 
  horas e horas, até eu perder a consciência... Depois, espalharia 
  uma baba viscosa e deslizante sobre todo meu corpo e começaria o processo 
  de engolir-me, inteiro mas com os ossos todos quebrados e isso também 
  levaria horas e horas e ninguém mais saberia de mim, teria desaparecido 
  sem deixar rastros...
  Mas, não haveria nenhuma crueldade nem perversidade consciente por parte 
  daquela imensa cobra, apenas estaria se alimentando da forma que a natureza 
  a dotou para caçar e engolir a presa...
  Caramba, considero que quando chegar a minha hora, devo merecer uma morte rápida 
  e sem dor e que assim seja...
  Percebo que as mãos tremem um pouco ao tentar acender o cachimbo, já 
  levei grandes sustos antes em minha vida e sei que a reação do 
  corpo depois que tudo passou, demora um pouco para refletir-se em tremores das 
  mãos e das pernas...
  Respiro fundo e tento me acalmar, a morte esteve tão perto... Como já 
  esteve outras vezes também...
  O silêncio parecer ser maior agora... Um silêncio que esmaga... 
  Pego a pistola e dou dois tiros para cima, para quebrar aquele silêncio 
  de morte...
  Os estampidos fortes ecoam por todo o rio e a mata.
  Imediatamente desata-se uma grande gritaria de protesto nas árvores ao 
  redor do acampamento e eu sorrio ao pensar que acordei tanta gente, macacos 
  e todos os tipos de aves que estavam dormindo...
  Recolho a poita para dentro do barco, não há necessidade de se 
  funcionar o motor de popa para um trajeto tão pequeno e a correnteza 
  não é forte.
  Vou remando até a margem, em frente à barraca, com certeza a sucuri 
  não esta por perto, deve ter ido para mais longe, atrás de outra 
  comida, que se deixe apanhar com mais facilidade.
  Retiro as coisas do barco e as levo para a pequena barraca.
  Pego o lampião do galho de árvore e o trago para a beira do rio, 
  limpo o pintado lavando-o na correnteza, faço alguns cortes com a faca 
  em seu corpo e coloco sal, nos cortes e dentro dele.
  Amanhã farei um buraco no chão e uma fogueira dentro do buraco, 
  depois, envolverei o pintado com várias camadas de folhas largas, o colocarei 
  no braseiro e fecharei parcialmente o buraco com as brasas, depois de algumas 
  horas já estará pronto e delicioso.
  Dentro da barraca deito-me na rede... O coração está acelerado, 
  a adrenalina ainda esta alta e fico pensando que se eu fosse dado a beber e 
  estivesse bêbado ou dormindo dentro do barco, iria acordar já enlaçado 
  pela sucuri e sem condições de me soltar, de me defender.
  Tão frágil o ser humano...
  Ainda bem que ouvi o barulho da sucuri subindo no barco.
  Quem maneja o "Acaso"?