A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O índio

(Lenine de Carvalho)

O velho jipe alugado sacolejava na estrada de terra, deixando para trás uma nuvem de poeira amarelada.

Dos dois lados da estrada, a magnífica floresta ainda misteriosa e intocada no território de Rondônia.

Havia resolvido conhecer e explorar o lugarejo, perto de Vilhena, saber de sua história, conversar com os moradores mais antigos, ouvir estórias, ressuscitar antigos sonhos, realizados ou não, guardar na memória tudo o que ouvisse e talvez mais tarde, um dia....dar-lhes novamente vida, escrevendo sobre eles.

Na verdade, o seu destino era o rio Madeira e deste, entrar no rio Abunã, sozinho como sempre, dentro de um pequeno barco motorizado e embrenhar-se nas selvas da Bolívia, acampar na floresta onde supunha que não houvesse ninguém e esperar por algo que não sabia o que pudesse ser, aguardar, que a floresta, os Verdes Espíritos, ou seu próprio Eu interior lhe trouxesse respostas para perguntas que não sabia fazer....

O velho jipe, de volante duro, continuava a vencer areais e cascalhos na estrada primitiva ainda....A região estava sendo descoberta por gaúchos, paranaenses, catarinenses, que atraídos pelo baixo custo das terras, começavam a abrir fazendas de gado, soja e trigo, trazendo técnicas, conhecimentos, ritmos de trabalho desconhecidos na região.

Aquelas pessoas altas, fortes, louras em sua maioria, geralmente com olhos claros, descendentes de alemães muitos deles, formavam um contraste muito grande com o povo da região, moreno, pele escura, muitos descendentes de índios, cabelos negros e lisos...

Ainda havia algumas aldeias indígenas na região que viviam precariamente, sobrevivendo com mísera ajuda do governo federal, ainda caçavam e pescavam, vendiam artesanato na beira da estrada, embriagavam-se, prostituíam-se para o invasor....

A estrada transformou-se numa rua....a única rua que atravessava o povoado, dos dois lados, algumas casas de moradia, outras com pequenos comércios, no final da rua o único posto de gasolina.

Precisava abastecer o velho jipe.

Parou junto a bomba, desceu, ajeitou o cinturão cheio de balas, com a pistola automática no coldre do lado direito do quadril e espreguiçou-se longamente...

Junto a camioneta cheia de ferramentas agrícolas, dois homens altos e louros, um jovem e outro bem mais velho esperavam que o tanque fosse abastecido.

O jovem tinha um revólver 38 atravessado na cinta, sem coldre e o homem mais velho levava uma carabina Winchester 44 pendurada no ombro.

Então o índio apareceu....

Magro, alto, a pele muito escura, os cabelos negros e compridos, vestia uma velha calça rasgada, estava descalço e não tinha camisa.

Nas mãos, um magnífico arco e cinco flechas muito bem feitas, com a colorida plumagem perfeita em cada extremidade. O arco e as flechas deveriam ter tomado dias e dias de um paciente e meticuloso trabalho para terem sido feitos.

O índio aproximou-se da camioneta, estendeu o arco e as flechas para os dois homens e disse: " --- Compra! Compra!! "

O mais jovem perguntou desdenhosamente : "--- Quanto índio?? "...

"....Trinta ! Trinta ! "....respondeu o índio...

Então o homem jovem com um sorriso de deboche no rosto pegou o arco e as flechas e entregou para o índio uma nota de um cruzeiro, virou-se para o homem que havia descido do jipe e com uma grande risada vangloriou-se: ---" Enganei o índio..."....

O índio com uma expressão de ingênua alegria no rosto, começava a afastar-se com a nota de um cruzeiro na mão, quando a voz do homem do jipe chamou-o : " Índio, venha aqui!!"

Voltando-se para o jovem louro, disse-lhe com uma voz perigosamente baixa e calma : "--- Pague o resto do dinheiro para o índio...".

"__Mas, o que é isso? Índio é índio, não valem nada.

"__Pague o índio amigo....."....a voz calma voltou a repetir.

O índio continuava parado, sem saber o que estava acontecendo e já com medo que fossem lhe tomar o dinheiro, a nota de um cruzeiro...

"__Não vou pagar nada, se ele é tonto o problema é dele!".

"__Amigo....a voz calma tornou a dizer....pague o índio ou se achar que a sua vida e talvez a minha não valem vinte e nove cruzeiros, saque o revólver que está em sua cintura e atire...."...

O jovem louro ficou pálido, depois vermelho e retesou todo o corpo, olhando para o homem do jipe que tinha as pernas afastadas, acariciava tranquilamente o próprio queixo, olhava-o fixamente com os olhos escuros e tinha uma pistola num coldre baixo, no quadril direito...

Nisto, o homem louro mais velho que estava pagando o abastecimento para o funcionário do posto, percebeu o que estava acontecendo, aproximou-se, olhou para o homem do jipe e sua experiência de vida farejou a morte no ar....coisa que o jovem não tinha conseguido perceber...

Então com voz ríspida e autoritária disse ao jovem: "--- Pague logo o índio e vamos embora ! "...

O jovem louro enfiou a mão no bolso pegou o resto do dinheiro e deu-o ao índio, que continuava sem compreender o que estava acontecendo, mas recebeu as outras cédulas e afastou-se rapidamente, sem saber porque lhe haviam dado mais dinheiro.

O homem do jipe olhou para o homem louro mais velho, inclinou levemente a cabeça e uma compreensão muda, aconteceu entre eles.

Longe, na floresta um nhambú guaçú piou doloridamente, anunciando que a noite ia acordar....

Dentro do jipe, respirou fundo.....então a garganta apertou-se e súbita lágrima deslizou por seu rosto....

"__Que bom que não acabou tudo aqui....ainda quero tanto ver as águas verdes do Abunã....".....

Acelerou o jipe e partiu.....

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br