Fui me escrevendo. Queria me contar num romance, mas como um romance seria
muito extenso, e a minha palavra só chega até o começo
da quarta página, comecei a me escrever num conto.
Estava num espaço e num tempo, amotinado. É que me doía
estar ali, doía tanto... Era um espaço perto dela, que não
me queria assim muito perto. O que nos separava era mais ou menos um abraço,
quase um beijo; e o tempo, ele tinha já uns seis anos, apesar de que
só valia a pena contar os últimos quatro, já que nos outros
dois nem nos conhecíamos direito. Até tínhamos trocado
palavra, mas nenhuma que valha senão esta sentença, que termina
aqui.
Eu começo me escrevendo no passado, um passado específico: a noite
em que eu fui feliz. Essa noite já passou há muito tempo, só
que eu não posso esquecê-la, nem quero; ela me faz falta, um tipo
singular de saudade. Começou com nós dois ali, um perto do outro,
talvez perto demais. Havia também o resto do pessoal, os figurantes.
Falavam sobre maravilhas, e eu me importava só um pouco com elas, o suficiente
pra rir e perceber que estava vivo. Ela também ria, e olhava pra mim
de vez em quando, tempo suficiente para eu perceber que estava viva, ela também.
Começou assim...
Fomos andando, pela cidade. Estávamos todos a pé, adolescente
anda a pé mesmo. Hoje vou carro pelas ruas, e passo pelo asfalto sem
senti-lo. Deve ser isso, envelhecer: perder contato com o mundo. A gente vai
ficando velho e sabido, experiente, e então deixamos o mundo e ficamos
com as memórias. Encontramos um sentido para a vida, que, até
o momento em que nos achamos longe demais do asfalto, sequer cogitávamos.
Eu quero pisar de novo no asfalto, mas o mercado me parece tão longe...
Será que é por isso que eu vou de carro?
Era pela cidade, que eu nunca havia visto tão bonita, que a gente andava.
Havia festa religiosa naquele dia, e a procissão passava, cantando a
fé. E nós, que em nada acreditávamos, demos risada quando
um dos nossos desatou a imitar e fazer graça dos crédulos.
Eu já contei que a cidade estava bonita. É que tinha faixa por
todo o canto, e a noite estava limpa, limpinha - ou, pelo menos, assim é
que me lembro de tudo. Ah, sim, tudo estava bem, tudo estava certo. Menos ela,
que não me gostava do jeito que eu queria. Foi assim que ela me tinha
dito, mais ou menos, e era um pouco por isso que doía estar ali, embebido
naquela felicidade parcial.
Ela também estava bonita. Tinha os cabelos soltos, como era rotina, e
os olhos ainda mais soltos, perdidos no meio da gente, das risadas; às
vezes bem no meio dos meus olhos. Não sabia bem o que eles queriam ali,
talvez me dizer alguma coisa... Queria que me dissessem alguma coisa, que me
contassem uma história nova. Uma história de verdade, não
dessas que eu fico inventando no papel, para envelhecer.
Nela também caía bem aquela roupa, que de mais não tinha
nada. Era um moletom colorido e só um pouco folgado, e uma calça
de brim, justa até demais para os meus pobres hormônios (ah, o
amador, tanto na literatura quanto no amor, tem que escrever pelo menos uma
linha sobre os hormônios...).
A gente estava bebendo, mas de modo contido, exceto por um de nós que,
por não ser nem eu, nem ela, não importa mais que um parágrafo
deste conto. Era amigo meu, e andava triste, por causa de mulher. É sempre
por causa de mulher...
Foi muita conversa, muita palavra e muito riso que, lançados no ar, na
direção do círculo que desenhávamos sem querer na
nossa cabeça, se perdia pelo tempo nos relógios. Tudo foi passando,
e eu não queria que passasse assim depressa, porque então íamos
nos despedir. Também era um tanto por isso que doía estar ali...
Foi passando, e quando ficamos só nós dois, conversando pelo caminho
que tínhamos em comum, eu senti uma coisa nova, um sentimento que me
subiu a espinha e me fez florescer um riso tímido no rosto. Não
vi quando passamos da minha casa pra que eu a pudesse acompanhar até
a dela, onde enfim paramos; nem ouvi direito o que ela falou, na frente da casa
dela, sobre aquilo que seria um futuro de explosão. Pra mim restou apenas
a essência do que ela quis dizer, o movimento quase parado dos seus lábios
quando abertos naquelas pequeninas palavras. Foi de verdade, e ela quis ficar
ali, naquela noite, abraçada comigo. Aquele abraço durou tanto
tempo... Ela não chorava, não me olhava muito, nem parecia triste.
Quando a gente conhece muito uma pessoa, a gente deixa de entendê-la,
e todo o gesto seu é um mistério. Naquele abraço, eu a
conheci esse tanto, e foi a partir dele que fui entender que não havia
explicação para esses mistérios, pelo menos não
que me concernisse.
O tempo envelhecia devagar, e eu não sabia se tinha que beijá-la,
ou se bastava ficar ali, fazendo carinho no seu cabelo, sentindo o enigma no
seu abraço. Ambas as coisas me fariam feliz, e por isso não me
importava, e ia ficando ali, o pensamento projetado além do mundo, perto
demais do meu amor adolescente, que nuvem-passava pelo céu. E todo o
passado que tínhamos em comum habitava aquele abraço, estávamos
muito, muito perto um do outro.
Antes do fim, acho que nos beijamos. Foi um beijo quase de amigo, não
fosse pelo calor de que precisávamos para aquecer o espaço e o
tempo envelhecidos em nosso redor, que eu queria descrever congelados pela ideia
descabida de um sol dormido. Foi beijo doce, que começou não-sei-quando,
com os lábios se colando um no outro, distraídos. Tinha um gosto
adamascado, seja lá qual for o sabor do damasco.
Não fui feliz por causa desse beijo, que pra ser sincero nem sei mais
se aconteceu - acho que aconteceu, senão a minha história não
teria graça para o leitor apaixonado destes dias -, fui feliz só
porque estava ali, com ela, do lado do seu coração. É esquisito
sentir a dor ida embora, fica um vazio no seu lugar. As pessoas chamam isso
de epifania. Eu era isso: uma procissão que ia passando, em estado de
graça...
Nada disso passou, apesar de tudo. Dizem que depois da tempestade vem a calmaria,
mas eu já não me importo com o antes e o depois, já que
tudo fica misturado mesmo quando nas palavras de um amador. É que a gente
não sabe escrever muito bem, então o tempo acaba desfiado na nossa
prosa, fugindo das nossas páginas. E tem hora em que, porque já
não temos o que contar, passamos a escrever sobre o que se escreve, e
aí é que ninguém entende mais nada. Isso tudo tem motivo,
é que o amador coloca as palavras muito perto do coração,
tão perto que nada faz sentido para as outras pessoas, que não
conhecem o íntimo do autor fajuto, e nem o poderiam conhecer, porque
naquele enigma-abraço só cabem duas pessoas.
Quando eu contei que nada disso passou, eu não quis dizer que fui feliz
pra sempre. Isso seria mentira. É aquelas pareciam as palavras certas,
e sem elas tudo o que eu escrevi desabaria. Só que, no fundo, não
passou mesmo, ficou aqui, uma memória de papel, que a mente construiu
e, envergonhada, guardou nestas palavras de fantasia.
Não me lembro de ter me separado dela. Mesmo aqui, sozinho na terceira
página, eu ando juntinho dela, talvez mais do que naquele instante. Essa
saudade que eu sinto vai ficando um pouco aqui, contada deste jeito, como a
nuvem que no céu faz figurinhas, e vai passando branca pelo azul, e vai
ganhando novas formas. Um dia eu vou ler toda esta nuvem e dar risada, é
tão boba a sua forma! Mas no outro dia eu posso chorar, é tão
triste o céu azul escuro...
E quando eu chorar, vou sentir aquele vazio esquisito e de imediato lembrar
aquele abraço infinito que, como a rima mais rica de um soneto, eu custei
tanto a encontrar; vou ficar lembrando aquele tempo fora do tempo, aquela epifania
que nunca acabou simplesmente porque eu não contei o seu fim, embaçado
um pouco na memória resgatada, um outro pouco na esperança perdida...
Existe um lugar onde o amador pode contar suas histórias em liberdade,
e onde nada pode ofuscar a sua paupérrima grandeza. É bem no comecinho
da quarta página, no último parágrafo, o mais vulgar. E
das suas vulgaridades, das suas poucas e rasas ideias contadas de jeito
tão disperso, tão folgado, ninguém vá talvez compreender
o significado, porque é um significado que a ninguém pertence,
exceto ao amador. Mas, afinal, um pouco de poesia sem pé pra tocar chão,
nem cabeça pra pensar noutras cabeças, não faz mal a ninguém.
Exceto, mais uma vez, ao amador.