Matilde ajeitou de novo o cabelo. Olhou a penteadeira e conferiu com a ponta
dos dedos se tudo estava no lugar. Precisava daquilo - colocar a mão
nos objetos cheirosos de sua vida - porque sua memória falava em Braille,
embora enxergasse tudo e muito bem com os olhos redondos. Sorriu bochechuda
para o espelho, passou o batom rosa na boca miúda e espremeu os olhos
contra as olheiras. Tomada do orgulho domingueiro, colocou o relógio
delicado, todo de ouro e de lembranças. Ah, meu pai, quisera fazer 15
anos de novo!
Com a bolsa e a Bíblia embaixo do braço, foi para a cozinha, na
hora exata de evitar o próximo pingo da torneira da pia. Homens fazem
falta, às vezes. Muito às vezes, pensou desmentindo as noites
enormes e lembrando-se dos sermões de padre Quintino. Já na porta,
pronta para sair, viu a xícara suja de café sobre a mesa. Metódica,
preparou-se para lavá-la e ali, na espuma asséptica do seu sabão
em barra, ficou apenas aquele corpo de senhora, enquanto lá longe, o
pensamento corria ligeiro com os sonhos de moça recatada. Nem viu quando
terminou, pegou novamente suas coisas e saiu.
Acordou na rua, o dia amanhecendo e ela caminhando para o ponto de ônibus,
preocupada se tinha trancado a porta direito. Domingo, missa. Seu dia de festa
e abandono aos prazeres da alma, cantarolando baixinho louvores ao Senhor. Ela
amanhecendo e muitos ainda por dormir.
Chegou ao ponto de ônibus ainda dentro daquela hora que parece que está
anoitecendo. Bando de perdidos, esses aí, jogados nos bares, nas casas
noturnas canibais, nos copos cheios de dúvidas e tristezas. Pediu em
voz alta por aqueles insanos arremedos de gente, insegura quanto ao destino
da reza e sem certeza se clamava por quem precisava. Não, esse aí
deve estar indo trabalhar... Aquele lá, com certeza, está bêbado...
Essa aí dormiu na rua... não, tá com o filho no colo, deve
ter saído de casa agora... Ah, três Ave Marias, para evitar injustiça!
Foi nessa escolha, nessa apuração de carências, que ela
viu aquela mulher. Era a visão de um mosaico, um vitral colorido - que
Deus perdoe a comparação - um punhado de cacos, pedaços
de mulheres costurados numa só. A visão de algo sujo, transfigurado,
um monstro das noites vendidas. Ficou arrepiada, sem lugar, torcendo pela chegada
do seu ônibus, enquanto a prostituta encostava do seu lado, rebolando
curvas no vestido colado e transpirando suor etílico. Olhou de novo,
sem querer olhar, mas, teimosa, a menina dos seus olhos queria conhecer a mulher
dos olhos da outra. Com a maquiagem já fora de foco, o rosto da moça
permitia uma imagem dupla de olhos e boca, como uma máscara um pouco
deslocada para baixo, rímel amanhecido carimbando tristezas.
Mangabeiras, Santo Antonio, Pampulha. Vinte ônibus fazendo um longo risco
na avenida e nenhum que servisse para ela ou para aquela mulher.
A Bíblia apertada no peito, a bolsa no braço, o ponto de ônibus
praticamente vazio. A vida fácil ali, agora andando de lá para
cá, com aquele jeito agressivo, sandálias nas mãos, fumando
antes das 6 horas da manhã. Olhou de novo e a outra, talvez percebendo
o interesse apavorado da mulher de vestidinho floral, riu debochada, desfilando
toda a imoralidade que só um corpo jovem tem.
Finalmente o ônibus de Matilde chegou. Ela correu para ele, correu para
a porta que se abria prometendo um abraço, correu para o calor do coletivo,
do comunitário, do apinhado de iguais. Foi quando, já se preparando
para passar na roleta, foi brutalmente empurrada, abatida por cotovelos fortes
e pouco gentis. Era a tal mulher, a vagabunda insone que abria caminho com o
corpo. Matilde sentiu nojo daqueles pedaços de carne forçando
passagem contra seu corpo, a vulgaridade fazendo-a cambalear. Seus olhos se
encontraram. Foi um duelo de cartas marcadas - ponto para a falta de nobreza
de olhar fixo, enquanto Matilde desviava os olhos para o piso.
Na roleta, na hora de pagar, Matilde sentiu falta do seu relógio de pulso.
O relógio-presente, o relógio-herança, o come-gerações
de ouro e delicadeza. Olhou para a ordinária com seu caminhar gelatinoso
rumo a um banco vazio e flashes do esbarrão pipocaram à sua frente,
ainda sentindo o solavanco no braço. Como ela podia ter ousado roubar
um pedaço da sua vida, levar num safanão mais de 50 anos de sua
família e sua memória e os beijos paternos e as festas com licor
e mamãe doente e Tia Alzira embrulhando as louças e a casa com
cheiro de forno quente? Foi como se tivesse sido picada por uma cobra venenosa,
fulminante, o tampo da cabeça sendo arrancado do lugar pela falta de
medo. Pela primeira vez na vida, era falta de medo aquilo. O relógio,
não! De Matilde generosa a Matilde agredida, de curativo a flecha, de
bombeira a incendiária. Perdera o liso do rosto guardando aquele relógio,
contando minutos através de meio século naquela parceria tiquetaqueante.
Ele era seu diário cíclico, seu atlas, mapa de navegação
onde deixou marcado tudo o que o tempo pudesse cronometrar. Não tinha
festa sem hora, velório sem fim, quarto sem parede. Não tinha
Matilde sem relógio. Não tinha irmão sem briga, vizinho
sem amoreira, namoro sem namorado. Não tinha relógio sem Matilde.
Uma bola de fogo queimava seu peito e ela abriu a bolsa. Tirou a escova de cabelo,
empunhou firme o cabo de madeira escondido debaixo do braço e caminhou
pelo corredor do ônibus, olhar fixo na nuca da maldita cretina/desalmada/sequestradora
de almas inocentes. Sentou com força ao seu lado, enquanto a outra, escondida
na impunidade do sono acumulado, olhava pela janela. Com uma disposição
que seu corpo frágil nunca teve, cutucou-a decidida, usando o cabo da
escova contra suas costelas, protegendo o ato com a bolsa, sempre olhando para
frente, falando entre os dentes:
- Fica quietinha, sua vagabunda ordinária. Não fala nada e passa
o relógio, passa o relógio! E não olha para cá,
senão eu acabo com você, vigarista safada. Põe o relógio
dentro da bolsa, agora! Anda depressa, anda! Me dá o relógio!!
Foi tudo muito rápido. Quem olhasse, não veria... ou no máximo,
veria uma senhora virginal e uma mulher tonta, uma senhora de olhar reto e uma
mulher perdida, uma senhora frágil e uma mulher da rua. O quindim e a
sobra do almoço.
Matilde não acreditou quando sentiu o peso do relógio sendo jogado
dentro da sua bolsa, a respiração ofegante da outra, o desconforto
do medo. Aquela coisa estava com medo e Matilde tinha prazer nisso. O ódio
se alimenta mesmo de pequenas vinganças.
- E agora, desce, sem olhar para trás, desce e some, senão eu
te estouro!
Matilde ainda a viu olhando da calçada, enigmática, o ônibus
passando e ela ficando parada, com uma sombra nos olhos, cansaço nos
olhos, borrões nos olhos.
O chão abriu-se numa fenda cheia de farpas, pernas bambas, de valente
a ameba, de ferro a algodão. Colocou a escova de volta na bolsa, dura,
sem olhar para o que estava fazendo, com coisas latejantes tentando sair de
dentro dela, ataque movimentoso de tremedeira e muito barulho do sangue bombeando
coragem, Matilde, coragem. Não tinha mais corpo, toda ela era de espuma
e fel, raiva derretida em suores internos. Não sabia como tivera aquele
surto, tomar o seu relógio de volta, não acreditava, aquilo era
loucura, oh, Deus... Podia ter levado um tiro, uma surra, imagina se a outra
reagisse? E se ela sabia onde era sua casa? "Não sentir medo era
mais suicídico do que valentesco", vivia dizendo seu humilde e sábio
primo Gotardo.
Deixou o ônibus dar uma volta completa e desceu no mesmo ponto em que
havia subido, ainda com medo de ter sido seguida. Corria, rezava, pedia calma
para enfrentar o pavor de estar sozinha naquelas ruas, queria chegar logo em
casa, fechar a porta, trancar tudo. E principalmente, tomar um banho, arrancar
aquele cheiro de perfume barato do nariz.
Entrou em casa ainda de veias expostas, coração aos pulos e pensando
na mãe, no pai, na saudade que sentia deles nessas horas. Respirou fundo,
lutou contra a vontade de vomitar e guardou a Bíblia na mesinha do telefone
- lá não era o lugar dela, mas naquele dia podia se dar ao luxo
de fazer qualquer coisa. Só aí se sentiu segura. Foi para a cozinha
tentar beber um pouco d'água com açúcar e colocou a bolsa
sobre a mesa de jantar. Quando se virou para pegar a água no filtro,
foi como se alguma coisa estilhaçasse dentro da sua cabeça, um
raio percorrendo sua espinha e Matilde lá, interrompida. Na beirada da
pia, perto do escorredor de louças, inocentemente descansava o seu relógio.
Tudo voltou à sua memória, como se acendesse a luz: na hora de
lavar a xícara, a retirada rápida do relógio, sabão,
espuma, pensamento longe, bolsa, Bíblia, rua!
Em câmara lenta, como num mergulho noturno em águas profundas,
desligada dos sons externos e só um corpo com pancadas cardíacas,
Matilde flutuou rumo à sua bolsa. A bolsa na mesa. A mesa na sala. A
sala na penumbra.
Suas mãos queimavam.
Da bolsa, retirou um enorme relógio de pulso, metálico, com pulseira
de um couro gasto e fedido. Suor etílico.
(A LADRA faz parte do livro CONTOS DO VIGÁRIO)