A Garganta da Serpente
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O velório de Arnaldo

(Leo Brely)

O falatório começou no velório do pobre Arnaldo. Trabalhava como um mouro, diziam, arrecadando listas do jogo do bicho, de motocicleta. O que foi fatal para o coitado, pois sua morte se deveu ao acidente em que dois ônibus prensaram-no até virar uma pasta homogênea. Juntou uma multidão naquela manhã fatídica para apreciar a tétrica cena na avenida Cavalhada. Berenice, sua mulher, estava em casa cuidando das duas filhas que tinham, uma com paralisia parcial do cérebro que exigia atenção especial, por isso ela, Berenice, não podia trabalhar para ajudar Arnaldo, quando recebeu a triste notícia. No velório os comentários eram dos mais variados e distantes da realidade quanto se possa imaginar.

- Dizem que ela traía o marido com o próprio cunhado, a safada - sussurrava uma beata vizinha do casal.

- Mentira, era com o patrão dele - redarguiu a outra senhora desocupada. Do outro lado do caixão fechado, a viúva e sua mãe choravam tentando consolar uma à outra.

- O que será de mim agora mamãe? Como vou trabalhar, sustentar meus filhos? Nunca aprendi uma profissão. Estou perdida, não sei fazer outra coisa a não ser cuidar da casa e das crianças.

- Acalme-se querida, e cuidar da casa e das crianças, acaso é nada? Pois saiba que criei você e seus irmãos sem ajuda de ninguém, lembre-se que seu pai nos abandonou quando vocês eram bem pequenos. Fui à luta com coragem e mal ou bem vocês estão aí, gordos e sadios.

- Vou sentir falta do Arnaldo, mãe... ele sempre resolvia todos os problemas lá em casa, nem sei se deixou algum valor guardado ou algo assim. Me assusta pensar que ainda hoje de manhã ele me beijou e foi trabalhar.

- E por falar em trabalhar, essas duas vizinhas, filha, por que ficam olhando para você com aquele rizinho cínico em suas bocas enrugadas? Acaso deves alguma coisa a elas?

- Devo nada, oras, essas carolas veem a todos com como se fossem inferiores a elas. Devem estar inventando alguma fofoca a nosso respeito.

- Vou lá tirar satisfações dessas enxeridas, ora se vou!

- Vai nada, mãe, não ligue para elas, não paga a pena. Enquanto isso as senhoras continuavam a tecer comentários maldosos, agora a respeito da mãe de Berenice, dona Joana.

- A mãe dela também não é flor que se cheire, dizem que quando o Manoel a abandonou, quem a sustentava era o seu Zeca do mercadinho da esquina. Acho até que a filha mais nova é dele. Pode notar como caminha igualzinho ao pai, meio que puxando a perna direita.

- Do seu Zeca não posso atestar nada, mas que o Joaquim da farmácia frequentou a cama dela, disso tenho certeza, afinal aquelas visitas no meio da noite teriam outra finalidade? A verdade é que seu Joaquim levava remédios muitas vezes para a neta de dona Joana, pois moravam Arnaldo e Berenice com a sogra.

Dona Joana e Berenice estavam agora mais interessadas no que estariam falando as senhoras do que em velar ou chorar o defunto. Cada uma desvencilhou-se da outra discretamente e quando deram por si estavam lado a lado às costas das carolas. Dona Joana colocou o dedo na boca fazendo sinal para Berenice fazer silêncio e ficaram escutando. Não gostaram nem um pouco do que ouviram da boca das duas fofoqueiras.

- Sabe o que eu acho? Aquela filha débil mental de Berenice nasceu assim por causa de incesto.

- Incesto? O que diabos é isso? Retrucou a outra.

- Oh, Ana Paula, deixa de se fazer de ingênua. Não lembra do irmão dela, o tal de Alfredo? Não lembra de quando uns meses antes de engravidar ele passou um tempo na casa delas? E como viviam de agarra-agarra, esfrega-esfrega? Pois para mim, ali tem coisa. Nesse ponto da conversa, dona Joana e Berenice não se contiveram. Cada uma das senhoras levou um tapa na orelha que chegou a ecoar por toda a capela. Formou-se tremenda confusão, empurra-empurra, palavrões eram proferidos por todas as envolvidas, mais parecia um jogo de futebol do que um velório. A muito custo os ânimos se acalmaram, as duas carolas se puseram a chorar e rezar baixinho em um canto da capela. Dona Joana e Berenice voltaram a ficar perto do caixão do falecido. Berenice agora conversava com Arnaldo como se ele pudesse ouvir.

- Estás vendo, querido? Não respeitam nem a ti que muitas vezes fazias o jogo delas com dinheiro do teu bolso para que pagassem no fim do mês, quando recebiam a pensão de seus falecidos. Que pouca vergonha, não respeitar um pai de família exemplar como tu, um homem trabalhador, honesto, fiel...

- Fiel? O Naldinho? Tu estás brincando, viúva! A voz feminina veio detrás de Berenice e pegou-a de surpresa. Virou-se e viu uma moça de uns vinte anos muito bonita e elegante, vestindo tomara-que-caia preto.

- Naldinho? Quê Naldinho? De quem estás falando e com quem, ô franguinha de despacho?

- estou falando contigo mesma, viuvinha tapada, não sabias das aventuras de Naldinho? Pois fui amante dele durante os dois últimos anos. Anos maravilhosos, diga-se de passagem. O Naldinho não economizava em presentes para mim. Vês este vestido? Ele comprou para me levar a assistir ao "Titanic", no cinema. Aquela noite foi realmente inesquecível. Depois do cinema fomos a um motel "chique" e fizemos amor até amanhecer. Me disse que eu fazia coisas que tu nunca te atreverias a tentar, de tão pudica que és.

Os olhos de Berenice pareciam que iam saltar das órbitas, as bochechas estavam vermelhas como tomates maduros quando conseguiu dizer:

- de que raios estás falando, franguinha desavergonhada? Arnaldo nunca faria uma barbaridade dessas comigo, será que todo mundo nessa capela resolveu me infernizar justamente no dia mais triste de minha vida? Primeiro aquelas velhas diabólicas a inventar infâmias a meu respeito e de minha mãe, agora vem tua levantar este falso de meu Arnaldo? Pois não sei onde estou com a cabeça que não te enfio esses dentes para dentro dessa boca de latrina!

- Calma, queridinha, sei que é de mau tom revelar as infidelidades de um homem justamente em seu velório, mas quando disseste que ele era fiel, não me contive. Aliás, ele mantinha outros relacionamentos além de nós. Estás vendo aquela senhora vestida de tailleur rosa pink? A coitada é quem patrocinava nossos divertimentos noturnos. Cheguei mesmo a ganhar um carro popular dele, pago por ela, não é sensacional, sócia?

- Ou tu és completamente louca ou eu sou. Não consigo acreditar em nada disso, qual a razão para me torturar assim? O que te fiz? Nem te conheço!

- Meu nome é Mara Lúcia, sou estudante de direito da PUC, me formo no ano que vem. Sabe, estou bem de vida e posso te ajudar a criar as crianças. O Naldinho me contou da Julinha, pobrezinha. Me seria muito gratificante ajudá-la financeiramente. Podemos colocá-la em uma escola especial, mandá-la para fazer tratamento no exterior, enfim, muitas coisas.

- Posso saber de onde tiraste tanto dinheiro? Nasceste em berço de ouro, por acaso?

- Que berço, que nada, foi o Naldinho que me ajudou a fazer meu pé-de-meia. Digamos que ele tinha um dom para atrair, seduzir e engambelar senhoras ricas e tolas. Ele costumava dizer que seus amores eram a família, incluindo a ti de modo fraternal, e a mim de modo sexual. Ele chegou mesmo a pedir dias atrás que eu cuidasse de vocês caso ele faltasse algum dia. É claro que eu o tranquilizei. Disse-lhe que ficariam todos bem e que ele não se preocupasse com isso, afinal ele teria uma longa vida pela frente. Tadinho, agora tá aí dentro dessa caixa fria, sozinho, esperando os vermes lhe comerem a carne, e que carne apetitosa, a dele.

- Como podes falar friamente e em tom de deboche do falecido? Não gostavas dele?

- É claro que gostava, tanto gostava que pretendo cumprir com minha palavra empenhada. Gosto de ti também, se queres saber. Apesar de mal vestida, és bem atraente, o Naldinho tinha bom gosto mesmo. Escuta, depois de resolvidos os assuntos fúnebres, quero que pegues as crianças e vás morar comigo. Quanto às despesas do funeral, podes ficar tranquila que já paguei tudo.

- Olha, é coisa demais para minha cabeça. Morre meu marido, descubro que era traída, e ainda sou cantada pela amante dele. Assim acabo enlouquecendo. Sou uma mãe de família, simples, adepta de bons costumes, antiquada até. Meu mundo está virando ao avesso. Não sei se rio ou se choro.

- uma coisa de cada vez, querida. Para tudo existe um momento certo. Por hora é melhor que chores, é mais apropriado - neste instante Berenice soltou uma gargalhada histérica que fez todos os presentes olharem para ela. Continuou rindo, sentou-se no chão e o riso foi se transformando em choro, um choro baixinho, parecido com choro de criança. Era de dar dó. Mara Lúcia levantou-a com cuidado, abraçou-a e a levou a sentar-se em uma poltrona mais retirada do centro das atenções. Os recentes sucessos levaram dona Ana Paula e sua colega de vadiagem, dona Glaci a voltarem a tecer teias envolvendo agora a desconhecida com todos que podiam imaginar. Em seus delírios chegaram até perto da suposta realidade quanto a Mara Lúcia e Arnaldo. Sorte delas que dona Joana agora já não ouvia o que diziam. Estava mais interessada em saber quem era a moça de vestido preto. Neste momento um senhor de ótima aparência e bem vestido esbarrou nela.

- Perdão, senhora, a dama deve ser mãe de nosso querido Arnaldo.

- Sim, e quem és cavalheiro? Eu o conheço?

- Na verdade não tive o prazer de ser apresentado a você, sou Arlindo Gomes, ex-empregador de Arnaldo.

- Ah, então o senhor é o banqueiro de bicho do Arnaldo!

- Prefiro que se refiram a mim como empresário do ramo de loterias, se não me levar a mal.

- Bom, na verdade soa bem melhor. Sua esposa também veio dar adeus ao meu genro?

- Apesar da idade ainda não encontrei minha metade da laranja. Que piegas, pensou Joana.

- E você, bela desse jeito, deve ser casada certamente.

- Muito elegante da sua parte, mas a verdade é que o safado de meu marido me abandonou há muitos anos, nem sei por onde anda o traste.

- Ótimo! Digo, lamento saber disso. Sei que o momento é impróprio, mas se algum dia desses você estiver disponível, gostaria de jantar comigo?

- Tudo bem, deixe-me seu número de telefone que ao passar o pesar pela perda eu ligo para ti. Um partidão desses eu não deixo escapar de jeito maneira, ponderou Joana. Trocaram telefones e continuaram a conversar sob os olhos e ouvidos bem atentos de dona Glaci e dona Ana Paula.

Às seis horas Arnaldo levantou-se da cama, entrou no banheiro, acendeu um cigarro, antes apanhou o jornal no quintal e sentou-se no trono de seu suntuoso castelo. Após alguns minutos de leitura e baforadas, tomou um demorado banho de ducha quente, enxugou-se, vestiu-se e dirigiu-se à cozinha para tomar o café que Berenice já estava lhe servindo. Berenice perguntou se ele viria almoçar em casa ao que ele respondeu que não haveria tempo devido à correria do trabalho. Em uma sala de escritório na zona sul funcionava uma pequena empresa de busca e entrega de documentos. Fachada para uma banca de jogo do bicho, gerenciada por ninguém menos que Mara Lúcia. Naquela manhã, Arnaldo cumprimentou a todos no escritório, tomou seus envelopes para buscar a lista , como era chamado o rol de estabelecimentos comerciais que faziam jogo. Logo que parou em um semáforo com a luz vermelha acesa foi surpreendido por um rapaz com características físicas e idade próximas das suas próprias. O rapaz encostou uma arma em sua cabeça e mandou que descesse da motocicleta. Tomou seus documentos, lista, dinheiro, enfim todos os pertences que carregava consigo e levou a moto acelerando a toda a velocidade. Sem outra alternativa, Arnaldo voltou a pé rumo ao escritório, mas ao chegar a duas quadras do lugar, teve uma crise de hipoglicemia, pois era diabético e desmaiou. Foi levado ao pronto-socorro pela SAMU que alguém chamou quando o viu desmaiado. Enquanto isso a polícia avisava Mara Lúcia da morte de um rapaz que portava documentos de Arnaldo dos Santos e tinha o número de seu telefone na carteira. Mara Lúcia confirmou que Arnaldo trabalhava em sua empresa e garantiu que não sabia nada de seu envolvimento com o jogo do bicho quando o policial mencionou os envelopes que ele portava. Para evitar aborrecimentos desnecessários, uma vez que o corpo estava completamente dilacerado, a polícia decidiu liberá-lo para o velório sem perícia técnica. Mara Lúcia comunicou dona Cíntia, a telefonista:

- Pobre Arnaldo, faleceu. Foi prensado por dois ônibus, agora de manhã. Tu vais ao velório?

- Com certeza que vou. Aproveito para estrear meu tailleur rosa pink.

Lá pelas três horas, quando todos os petiscos e cafés já haviam sido servidos, as pessoas começaram a se retirar da capela. Ficaram apenas dona Joana, seu Arlindo, Berenice e Mara Lúcia, além, é claro, de dona Ana Paula e dona Glaci.

- Acho que vou abrir o caixão para dar o último adeus à Arnaldo - disse Berenice.

- Não faça isso, ele está desfigurado. Você não suportaria a visão - respondeu dona Joana. Nesse momento a porta da capela abriu-se e Arnaldo entrou com uma expressão de pavor no rosto. Dona Ana Paula e dona Glaci desabaram sincronizadamente no sofá mais próximo e desmaiaram de ouvidos bem abertos. Arnaldo explicou que o corpo no caixão era do ladrão, mas quando começou a pedir esclarecimentos, saíram Berenice e Mara Lúcia, dona Joana com Arlindo de mãos dadas, sem darem ouvidos a Arnaldo. As beatas resolveram não desperdiçar o velório, fosse de quem fosse e continuaram a tagarelar. Arnaldo passou dois dias caminhando a esmo pelas ruas até ficar extenuado, quando voltou para casa. Ao abrir a geladeira deu de cara com dois bilhetes:

Fui morar com Mara Lúcia, seja um bom pai e cuide das crianças.

PS.: não me procure nunca mais.

Boa sorte.

Berenice.




Fui morar com o Arlindo, não esqueça de pagar a conta do telefone, pois está atrasada.

PS.: não esqueça que além de sogra, agora sou sua patroa.

Joana.


Arnaldo catou uns trocados que tinha guardados em casa e foi ao botequim mais próximo disposto a encher a cara até cair. Estava desolado, completamente combalido. Entrou no boteco e pediu um copo de cachaça. Sentou-se à beira do balcão e ficou bebericando de cabeça baixa. Aproximou-se um daqueles bêbados tipo "prata-da-casa" e perguntou:

- O que houve, amigo, qual a causa de tanta tristeza?

- Meu velório foi um desastre - respondeu Arnaldo sem olhar para o sujeito.

- É o que sempre digo: você dá uma festa, oferece tudo do bom e do melhor e saem os convidados a falar mal de você - disse o bêbado com a voz arrastada. Arnaldo olhou bem dentro do olho do sujeito e não disse nada, apenas entornou o copo de cachaça e em seguida soltou um arroto que foi ouvido até o outro lada da rua.

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