Dias de Chuva
(Luís Antônio Matias Soares)
Para estar junto não é necessário estar perto. O mistério
do amor não habita a superfície das águas, porém,
uma região mais profunda e delicada, semelhante ao leito de um rio ou
lago. Onde mais residiriam os segredos do amor, senão na intimidade de
um coração, em seus inefáveis e infindáveis sonhos
e na contínua busca do inalcançável e impossível
desejo? Acolhemos o amor em nós ainda no momento da criação
e depois, no decorrer de todos os outros dias debaixo do Sol, sustentamos o
seu peso na difícil tarefa de reencontrarmos aquele a quem nos entregamos
um dia e que nos povoou a alma de aromas e sabores variados. Algumas vezes,
entretanto, a lembrança do brilho do luar numa noite fria e recheada
de estrelas, o som da voz amada reconhecida ao longe, a deliciosa intimidade
a dois protegida pelas frias paredes de um quarto de hotel ou ainda, tão
somente, a simples recordação de um sorriso guardado na memória
e que ressurge vivo e familiar - tudo isto, que parece tão pouco! - tantas
vezes é o bastante para reaproximar dois seres.
O que dizer, então, do amor, desta maravilhosa flor que a tudo traz e
dá sentido, principalmente quando uma mulher se propõe a falar
do seu próprio amor vivido?
Inicialmente, chama-me Lara se quiseres. Sou uma mulher maravilhosa. Vou te
falar do amor, do meu bem amado, da minha Lua e estrela perdidas. Amo delicadamente.
Meu homem me ensinou egoisticamente a amá-lo de maneira lenta e caprichosa.
Instruiu-me vagarosamente no ofício de tanger seu corpo como uma harpista
dedilhando o instrumento. Mostrou-me onde tocá-lo e beijá-lo e
como desenhar belas tatuagens de amor com unhas e dentes em sua pele macia.
Reconheço todos os seus pontos sensíveis. Sei onde tocar suavemente
- como uma gata ronronando - e quando esfregar-me mais afogueadamente com a
carne quente dos meus quadris, entre suspiros. Ele me adestrou na difícil
arte de acariciar-lhe o seio sem que se sentisse incomodado com isto, de maneira
como mulher alguma jamais lhe houvera feito antes. Eu sei que às vezes
ele gosta que eu o toque gentilmente e que singelamente deslize a ponta dos
meus dedos, apalpando-o com delicadeza. Mil vezes eu o toco com os lábios,
beijando-o como se sorvesse pequenos bocados de suculento doce e deixando escapar
estalidos da boca entreaberta. Em certos momentos apenas acompanho a extremidade
do seu corpo com o hálito quente que neblina dos meus lábios.
Ele se enrubesce. Sente uma quentura macia o envolvendo, em contraste com o
frio úmido da saliva. Percebo que ele treme. Sempre o vejo suspirar.
E, todas as vezes me imobilizo por alguns segundos observando seus olhos fechados,
seu rosto atônito, crispado e tenso. Gosto de estar diante dele, percebendo
os reflexos dos meus atos em contrações de gozo e contentamento.
Suas faces são como um espelho a quem não ensinaram a mentir.
Vejo então seu rosto se contorcendo e constantemente me ponho a cismar
sozinha, admirada da imensidão do seu prazer. Noutros momentos, apreendo
em seu olhar vago um desejo mudo e faminto de estar em mim, da maneira como
um bicho espreita a companheira, vagarosamente se insinuando e se impondo. Nestas
ocasiões ele se imagina grande. Mal se apercebe que sou eu que o torno
senhor e possuo o Dom de aquietá-lo, que é em mim que ele se realiza
e se pacifica!
Pois este meu amado fez de mim um abrigo de saudades. Algumas vezes ele irrompe
como o sol das manhãs frias de inverno, entre nuvens pálidas.
Vem-me nítido, puro, claro e cristalino, como pequeninas gotas de orvalho.
Noutras circunstâncias, lembra-me os instantes finais de certas chuvas
da minha infância, tamborilando em variadas cadências de pingos
sobre telhados alheios, me conduzindo para dentro de mim mesma e me abrindo
uma infinidade de recordações. Entre as imagens que então
se sobrepõem e se cruzam ligeiras, surge, embalada por uma triste canção,
a figura de uma garotinha assustada se escondendo do vento e da chuva, cabelos
soltos, coração aflito, buscando proteção e carinho
nos braços da mãe e do pai...
"Amado:
Espero por ti, desde sempre.
Desde ontem eu já te conhecia,
Desde ontem eu te aguardava em segredo.
Desde sempre eu te esperava e concebia em espírito"
Assim, vou tocando o seu instrumento, tirando dele a melodia que quero. Reconheço
o momento preciso de beijá-lo, mordendo-lhe com força a boca e
o queixo viçoso, arranhando seu pescoço largo, branco como a folha
inicial do caderno de músicas de uma delicada aluna do primeiro ano,
onde deixo consignadas as notas do meu afeto. Percebo-lhe a ânsia crescente
e a aflição que se satisfaz e se acalma momentaneamente na pressa
de um beijo. Minha língua desliza pelas pequeninas curvas das suas orelhas
para em seguida buscar, ávida, o gosto de mel suspeitado em seus lábios.
Ele suspira. Sinto que poderia levá-lo à loucura, se quisesse,
conhecendo como conheço todas as suas manias e fraquezas. Um homem, afinal,
é apenas um homem; não é como a mulher que penetra desde
cedo em mistérios mais profundos. Sei como ele acorda nas manhãs
que se seguem a nos termos amado na noite anterior, tantas vezes sob a luz da
Lua e das estrelas, das minhas quase-eternas irmãzinhas reluzentes. Nestes
dias ele desperta calmo, suave e imponente. Pressinto também quando está
disposto a me amar nas manhãs frias e nubladas de chuva, que prometem
copioso aguaceiro durante o resto do dia. Sei com que humor ele se levanta em
cada novo alvorecer. Seus olhos me dizem muito, refletem intensamente. São
como pequeninas pedrinhas brilhantes, diminutas estrelinhas azuis fosforescendo
na noite.
Muitas vezes, nos dias de chuva, eu e meu senhor simplesmente permanecíamos
em casa, em amorosas e íntimas brincadeiras. Escondia-me atrás
de uma porta ou debaixo da mesa da sala de jantar, entre almofadas espalhadas
pelo chão do quarto ou no canto mais escuro do grande guarda-roupas de
casal, em qualquer lugar onde pudesse furtar-me a seus olhos amados. Chamava-o,
exigindo-lhe a presença. Ele se aproximava gracioso, revistando lentamente
todos os cantos da casa, até descobrir-me oculta entre floridos lençóis
e perfumados travesseiros. Às vezes sua mão me encontrava antecipadamente.
Seus dedos, palpitando, percorriam meu corpo sob a blusa fina, sentindo estremecer
na minha pele uma necessidade nervosa e urgente. Noutros momentos era ele quem
se ocultava e eu o buscava em todos os lugares, o rosto vermelho, um sorriso
gozoso pendendo nos lábios. Depois me deitava no interior da velha arca
de madeira, preciosa herança de meus pais, e punha-me na saborosa expectativa
de ser revelada. Nós nos abraçávamos, então, confundidos
em deleite e carinho, afoitos e silenciosos, suas mãos e seus lábios
tateando, trêmulos, em busca da fruta madura. Nestas horas sempre nos
amávamos. Buscávamos um motivo a mais para o amor e para recomeçar
tudo outra vez.
Sei muitas coisas sobre o meu amado, aprendi demais sobre ele. No entanto, instrui-me
unicamente no ofício de amá-lo. A maneira como eu o amo não
se aplica a nenhum outro homem. Quis me dar somente a ele e apenas a ele me
entreguei. Nisto fui sincera e egoísta. Lembro-me, anos atrás
e muito vagamente, de uma estranha voz me recriminando por só pensar
em mim mesma. Já me falaram coisas assim, tantas palavras inúteis.
Também é certo que já tive outros amores. Sei que sou maravilhosa,
que uma estrela cadente me ilumina e que uma estrela perdida reflete sua luz
cintilante no rosto de cada mulher. Uma velha cigana também me disse
isto uma vez, num tom de voz quase normal. Sei que os meus caminhos foram traçados
há tempos, que tudo em qualquer vida há de ter sido escrito Ontem
e que este último nos foi disposto ainda a maiores distâncias.
Sei, finalmente, que às vezes até o que se encontra aparentemente
perdido para sempre poderá ser reencontrado ou revivido um dia. Sinto
que tornarei a avistar o meu amado, embora tenha ele sido precipitadamente conduzido
para região remota e desconhecida. Há um ano partiu para a terra
do não-visível, do inacessível, no lar da bem-aventurança
e do esquecimento, para o país vazio do tudo ou do nada, a terra do sem-fim,
na região do lugar-nenhum. No entanto, levo comigo a esperança
e a certeza de que o verei de novo, ainda que de longe. O telescópio
da universidade, no Jardim Botânico da minha cidade, me conduzirá
ao meu bem-querer, realizará o que tanto desejo, me auxiliará
a erguer novamente a ponte de amor que um dia existiu entre nós. E o
meu rei estará lá - encantado, meigo e formoso - me aguardando
desde sempre...
Mas o que tu sabes ou imaginas saber sobre o que é estar longe ou perto
da pessoa amada? Existem mistérios e próximo está tudo
o que carregamos no peito. E quão enigmáticos são tantas
vezes os sentimentos que navegam nas águas deste lago mais profundo!
Por que o cenho franzido? Em que estás pensando nesta hora rubra em que
me escutas, em que me exponho com tamanha dor e sentimento? Acaso acreditas
que estou louca apenas por falar de coisas que tu ainda não tens condições
de abranger? Porque ficas me observando tão exageradamente de longe,
com olhares tantas vezes mórbidos, muitas vezes lânguidos, compridos
e assustados ou cheios de compaixão e dor, como se estivesses consumindo
em piedade diante de uma bela senhora solitária e triste? Já disse
que sou diferente! E tu sabes que sou maravilhosa, especial. Certamente estou
hoje um tanto aborrecida e pesarosa nesta manhã fria e nublada de chuva,
mas ainda assim sou uma mulher admirável! E penses mil vezes antes de
te aventurares a me seguir, tu que não me queres entender, que não
me podes compreender. Sequer desejes mudar-me. Muda-te a ti mesmo, se és
capaz, é só o que te posso dizer. Toda mulher tem o seu momento
de esplendor e o meu chegará em breve e há de ser doloroso e grande
como toda hora intensa que se aproxima.
No mês vindouro, no telescópio da minha cidade - e tomara Deus!
o tempo esteja limpo, firme, o céu negro e pontilhado de inúmeras
estrelinhas brilhantes, com o Cruzeiro do Sul resplandecendo altivo e as Três
Marias linearmente visíveis! - vou reencontrar o meu bem amado, o meu
frágil amor perdido nas silentes e arenosas montanhas da Lua. Pressinto
que ele estará lá à minha espera, desde sempre apaixonado.
E que tão logo me perceba, acenará com suas belas mãos
de dedos longos e macios, mãos que já me deram tanto prazer, semeadas
de anéis e semelhantes a finas cobras d'água. E sinto que quando
nos reencontrar-mos - ora, bem sei que assim será! - passearemos felizes
e calmos sobre o empoeirado tapete lunar, nos acariciando e nos amando infinitamente.
E mais tarde - quando tivermos saciado a sede da nossa saudade - planejaremos
os filhos que quisermos ter e viveremos muitos outros sonhos de amor viajando
por desconhecidas terras de gente curiosa e inocente.
Entretanto - para que tudo isso se realize - devo primeiramente procurá-lo
na superfície da Lua. Desde já imagino o que estejas pensando.
Decerto acreditas que a circunferência lunar seja, talvez, enorme demais
e que possivelmente eu gastaria todo o resto dos meus tristes dias na infrutífera
busca do meu príncipe encantado, sem que, naturalmente, consiga descobri-lo.
Afinal o nosso satélite é imenso, com milhares e milhares de quilômetros
de montanhas, vales e crateras repletas de rochas mortas e vazias e seria penoso,
senão impossível, encontrar uma pequenina alma em tão vasto
e seco território, principalmente em sendo essa alma um ser tão
frágil, sutil e translúcido. Quanto a isto, ouso apenas lembrar-te
que o planeta onde vivi o meu mais ardente amor - esta maravilhosa morada azul
a que chamais carinhosamente Terra, circundada de dia pelo brilho intenso da
nossa estrela-mãe e nas noites de luar por um magnífico céu
bordado em prata - é bem maior do que o seu satélite em extensão.
Ademais, não se faz necessário procurá-lo por toda a sua
vastidão. Basta que eu disponha a minha visão no único
ponto onde ele inevitavelmente estará me aguardando, no topo dos montes
Leibniz, próximos ao polo sul lunar. Tudo é possível!
Tudo em que se crê enche-se de força e tem o dom de tornar-se real,
de suceder no tempo e no espaço. E tu já sabes que existem segredos,
variados enigmas. Assim, se de fato refletiste em tudo o que eu acabei de dizer,
deves ter compreendido afinal que o mistério do amor não se encontra
ao lado, nem na nossa frente e ainda menos na direção oposta àquela
em que estejamos mirando o nosso olhar aéreo, mas na intimidade do coração.
Pois que perto está tudo o que carregamos no peito, o peito é
mistério e profundos mistérios sempre navegarão nas barrentas
águas deste rio mais veloz.
O que dizer, então, do amor, desta maravilhosa flor que a tudo traz e
dá sentido? Direi que estou apaixonada, fisgada como um peixe, desde
ontem possuída de cuidados. Que a partir deste momento estarei quieta
e ansiosa, silenciosa e aflita na doce expectativa do meu bem-amado. E que seguirei
sozinha, desde sempre aguardando, esperando pacientemente um momento propício
entre o pôr-do-sol e o instante em que a Lua ébria volte a bailar
no céu!...