"...O Cravo brigou com a Rosa
Debaixo de uma sa-ca-da..."
Amanda levou algum tempo tentando se desfazer da absurda sensação
de continuar sonhando. Tivera outra noite agitada por uma sucessão de
lembranças e imagens que ainda agora insistiam em permanecer vivas e
a tecer nela uma vaga mistura de realidade e ficção...
Assim que abriu os olhos Amanda acreditou encontrar-se no mesmo quarto de hospital
onde julgara ter passado os piores dias de sua vida junto à filha doente.
Manteve-se imóvel observando o branco pálido das paredes e a lâmpada
fluorescente que pendia no centro do quarto e lhe sugerira a imagem de um anjo
barroco, um anjinho bailarino sutilmente sustentado no ar por delicados fios-de-ouro.
Tudo aquilo lhe surgira, então, como um enigma...
Nos últimos dias viera despertando sempre com aquela impressão:
via-se enredada em meio a uma profusão de visões das quais mal
conseguia apreender corretamente o sentido e passava um bom tempo com o olhar
perdido, lutando por trazer à tona qualquer lembrança que lhe
devolvesse a mais leve noção de realidade...
Aos poucos ia-se percebendo não em um ambiente de hospital, onde a princípio
imaginara estar. Mas, talvez - duvidava-se de si mesma por um instante - talvez
em verdade se encontrasse em um antigo quarto de hotel, recordação
de uma viagem sua e de Mariano meses antes de engravidar-se de Anita. Amanda
se surpreendia, então, despertando enérgica, movendo cortinas
e abrindo janelas diante da fotografia azul de uma praia e um mar extravagantes
de luz...
Entretanto, aquela impressão que lhe demandara tanto esforço passara
tão ligeira quanto as outras. Mal começara a se acostumar a ela,
já se vira perdida outra vez em meio ao turbilhão de outros cenários
que voltavam a se suceder: a praia já não era praia, mas um longo
corredor de paredes brancas; e o confortável ambiente do hotel se transformara
vertiginosamente no sofrível quarto de hospital...
No momento seguinte, ao sentir-se desperta, não encontrara a filha ao
seu lado. Recordou-se então que em todas as recentes ocasiões
em que regressara daquele sono recheado de sonhos, avistara apenas o marido.
Mas o quarto - e essa era de fato a sua única certeza - o quarto já
não lhe parecia o mesmo...
Os médicos - os mesmos médicos que a princípio diagnosticaram
a pneumonia na garota - mesmo eles se tornaram logo depois tão imprecisos
e vagos quanto a maior parte daqueles ambientes nos quais vinha adormecendo
e despertando continuamente. Fora a partir daí que começara a
tomar medicamentos para dormir...
Então, sempre que regressava do seu sono pesado, Amanda se dirigia a
Mariano e perguntava-lhe qualquer coisa à respeito da filha. O marido
lhe respondia isso e aquilo e contava-lhe detalhes sobre um fato qualquer que
ocorrera enquanto ela estivera dormindo...
Era assim que durante algum tempo as coisas tornavam a se preencher com sentido
e razão quase suficientes para que Amanda se sentisse mais calma. Depois,
com a transferência de Anita para o centro de terapia intensiva, Mariano
lhe parecera cada dia mais calado...
(Decerto - supunha - decerto que aquela confusão em que se via mergulhada
resultava do uso dos remédios. Eles tanto a deixavam excitada num primeiro
momento quanto em seguida a apagavam completamente ou diminuíam-lhe o
entendimento das coisas. A partir de um
determinado ponto após tomá-los, Amanda se sentia elétrica
como acontecia em criança logo depois que sua mãe lhe aplicava
medicamentos nas crises de alergia. Ficava acesa tempo sem fim, com os pais
acompanhando-a num passeio frenético pela casa.
Então fazia tudo em excesso: falava demais, discutia com os irmãos
por qualquer motivo e cantarolava ininterruptamente os quatro primeiros versos
daquela canção infantil que insistia em não lhe sair da
cabeça, até apagar-se sob os efeitos do antialérgico:
"O Cravo brigou com a Rosa
Debaixo de uma sacada;
O Cravo saiu ferido
E a Rosa des-pe-ta-la-da...")
Mas - agora - fora com estranheza que Amanda se percebera repentinamente em
casa, de volta ao seu quarto de dormir. Avistara a filha na borda da cama e
se pusera a apreciar o divertimento da menina ajeitando suas bonecas de pano
com blusas e vestidinhos estampados. Anita calçara nelas pequenos sapatos
de borracha e escovava-lhes os cabelos com capricho.
O que verdadeiramente chamara a atenção de Amanda em tudo aquilo
fora que a cena se desenrolara de forma muito vagarosa diante dos seus olhos,
como num filme em rotação lenta e irreal...
(Anita sempre brincava ali. Muitas vezes, pela manhã, Amanda a surpreendera
no canto do quarto agachada sobre as perninhas, arremedando gestos e frases
que em verdade pertenciam a ela e a Mariano:
- Fernanda e Marina - dialogava a garota com alguém que supostamente
devia se achar ao seu lado - é hora do lanche... estas meninas estão
cada dia mais difíceis, Mariano, impossíveis!... não param
um segundo sequer... parecem ter formiga no corpo...)
Parecera à mãe que as palavras da menina, revoando ligeiras e
saltitando soltas pelo quarto, tinham criado vida própria, girando em
redemoinhos cada vez mais extensos entre as paredes e os móveis do quarto
como desleixadas serpentinas, delicadas pétalas...
Em seguida Anita surgira outra vez muito delicada e frágil e o que se
afigurara mais absurdo à mulher fora que estivera há pouco sonhando
com a menina e que em seu sonho ela lhe aparecera transfigurada na visão
de um anjo, um anjinho barroco agitando suas asas brilhantes por toda a casa...
(...talvez Anita estivesse brincando com o pai nos jardins, entoando cantigas
de roda...)
Também era possível que Amanda continuasse ainda a sonhar, mas
que daí a pouco as coisas voltassem ao normal assim que a imagem de Anita
começasse lentamente a se diluir e se desfazer outra vez diante dos olhos
da mulher...
...mas, então - e então tudo se fazia mesmo possível -
era possível que Amanda conseguisse regressar daquele sono pesado e recheado
de sonhos ou que talvez caísse novamente no sono profundo que a acompanhava
agora; e enquanto estivesse dormindo sempre existiria uma certa probabilidade
de que permanecesse naquele sonho e que ela se pegasse de repente embalada pelas
mãos de um anjo, de um delicado anjinho bailarino, iluminando todo o
quarto com os dúbios reflexos que se exalavam de suas asinhas em movimento,
tudo tão suavemente como há tempos não lhe acontecia sonhar
daquele jeito, de uma maneira assim quase encantada e real; talvez encantadora
demais - era certo!, mas quão sutilmente real, feito música de
roda e de sonho, canção de ninar ou parlenda...
("...O Cravo ficou doente
A Rosa foi visitá-lo.
O Cravo teve um desmaio
A Rosa pôs-se a cho-rar...")