A Garganta da Serpente
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Um Anjo no Quarto

(Luís Antônio Matias Soares)

"...O Cravo brigou com a Rosa
Debaixo de uma sa-ca-da..."

Amanda levou algum tempo tentando se desfazer da absurda sensação de continuar sonhando. Tivera outra noite agitada por uma sucessão de lembranças e imagens que ainda agora insistiam em permanecer vivas e a tecer nela uma vaga mistura de realidade e ficção...

Assim que abriu os olhos Amanda acreditou encontrar-se no mesmo quarto de hospital onde julgara ter passado os piores dias de sua vida junto à filha doente. Manteve-se imóvel observando o branco pálido das paredes e a lâmpada fluorescente que pendia no centro do quarto e lhe sugerira a imagem de um anjo barroco, um anjinho bailarino sutilmente sustentado no ar por delicados fios-de-ouro. Tudo aquilo lhe surgira, então, como um enigma...

Nos últimos dias viera despertando sempre com aquela impressão: via-se enredada em meio a uma profusão de visões das quais mal conseguia apreender corretamente o sentido e passava um bom tempo com o olhar perdido, lutando por trazer à tona qualquer lembrança que lhe devolvesse a mais leve noção de realidade...

Aos poucos ia-se percebendo não em um ambiente de hospital, onde a princípio imaginara estar. Mas, talvez - duvidava-se de si mesma por um instante - talvez em verdade se encontrasse em um antigo quarto de hotel, recordação de uma viagem sua e de Mariano meses antes de engravidar-se de Anita. Amanda se surpreendia, então, despertando enérgica, movendo cortinas e abrindo janelas diante da fotografia azul de uma praia e um mar extravagantes de luz...

Entretanto, aquela impressão que lhe demandara tanto esforço passara tão ligeira quanto as outras. Mal começara a se acostumar a ela, já se vira perdida outra vez em meio ao turbilhão de outros cenários que voltavam a se suceder: a praia já não era praia, mas um longo corredor de paredes brancas; e o confortável ambiente do hotel se transformara vertiginosamente no sofrível quarto de hospital...

No momento seguinte, ao sentir-se desperta, não encontrara a filha ao seu lado. Recordou-se então que em todas as recentes ocasiões em que regressara daquele sono recheado de sonhos, avistara apenas o marido. Mas o quarto - e essa era de fato a sua única certeza - o quarto já não lhe parecia o mesmo...

Os médicos - os mesmos médicos que a princípio diagnosticaram a pneumonia na garota - mesmo eles se tornaram logo depois tão imprecisos e vagos quanto a maior parte daqueles ambientes nos quais vinha adormecendo e despertando continuamente. Fora a partir daí que começara a tomar medicamentos para dormir...

Então, sempre que regressava do seu sono pesado, Amanda se dirigia a Mariano e perguntava-lhe qualquer coisa à respeito da filha. O marido lhe respondia isso e aquilo e contava-lhe detalhes sobre um fato qualquer que ocorrera enquanto ela estivera dormindo...

Era assim que durante algum tempo as coisas tornavam a se preencher com sentido e razão quase suficientes para que Amanda se sentisse mais calma. Depois, com a transferência de Anita para o centro de terapia intensiva, Mariano lhe parecera cada dia mais calado...

(Decerto - supunha - decerto que aquela confusão em que se via mergulhada resultava do uso dos remédios. Eles tanto a deixavam excitada num primeiro momento quanto em seguida a apagavam completamente ou diminuíam-lhe o entendimento das coisas. A partir de um

determinado ponto após tomá-los, Amanda se sentia elétrica como acontecia em criança logo depois que sua mãe lhe aplicava medicamentos nas crises de alergia. Ficava acesa tempo sem fim, com os pais acompanhando-a num passeio frenético pela casa.

Então fazia tudo em excesso: falava demais, discutia com os irmãos por qualquer motivo e cantarolava ininterruptamente os quatro primeiros versos daquela canção infantil que insistia em não lhe sair da cabeça, até apagar-se sob os efeitos do antialérgico:

"O Cravo brigou com a Rosa
Debaixo de uma sacada;
O Cravo saiu ferido
E a Rosa des-pe-ta-la-da...")

Mas - agora - fora com estranheza que Amanda se percebera repentinamente em casa, de volta ao seu quarto de dormir. Avistara a filha na borda da cama e se pusera a apreciar o divertimento da menina ajeitando suas bonecas de pano com blusas e vestidinhos estampados. Anita calçara nelas pequenos sapatos de borracha e escovava-lhes os cabelos com capricho.

O que verdadeiramente chamara a atenção de Amanda em tudo aquilo fora que a cena se desenrolara de forma muito vagarosa diante dos seus olhos, como num filme em rotação lenta e irreal...

(Anita sempre brincava ali. Muitas vezes, pela manhã, Amanda a surpreendera no canto do quarto agachada sobre as perninhas, arremedando gestos e frases que em verdade pertenciam a ela e a Mariano:

- Fernanda e Marina - dialogava a garota com alguém que supostamente devia se achar ao seu lado - é hora do lanche... estas meninas estão cada dia mais difíceis, Mariano, impossíveis!... não param um segundo sequer... parecem ter formiga no corpo...)

Parecera à mãe que as palavras da menina, revoando ligeiras e saltitando soltas pelo quarto, tinham criado vida própria, girando em redemoinhos cada vez mais extensos entre as paredes e os móveis do quarto como desleixadas serpentinas, delicadas pétalas...

Em seguida Anita surgira outra vez muito delicada e frágil e o que se afigurara mais absurdo à mulher fora que estivera há pouco sonhando com a menina e que em seu sonho ela lhe aparecera transfigurada na visão de um anjo, um anjinho barroco agitando suas asas brilhantes por toda a casa...

(...talvez Anita estivesse brincando com o pai nos jardins, entoando cantigas de roda...)

Também era possível que Amanda continuasse ainda a sonhar, mas que daí a pouco as coisas voltassem ao normal assim que a imagem de Anita começasse lentamente a se diluir e se desfazer outra vez diante dos olhos da mulher...

...mas, então - e então tudo se fazia mesmo possível - era possível que Amanda conseguisse regressar daquele sono pesado e recheado de sonhos ou que talvez caísse novamente no sono profundo que a acompanhava agora; e enquanto estivesse dormindo sempre existiria uma certa probabilidade de que permanecesse naquele sonho e que ela se pegasse de repente embalada pelas mãos de um anjo, de um delicado anjinho bailarino, iluminando todo o quarto com os dúbios reflexos que se exalavam de suas asinhas em movimento, tudo tão suavemente como há tempos não lhe acontecia sonhar daquele jeito, de uma maneira assim quase encantada e real; talvez encantadora demais - era certo!, mas quão sutilmente real, feito música de roda e de sonho, canção de ninar ou parlenda...

("...O Cravo ficou doente
A Rosa foi visitá-lo.
O Cravo teve um desmaio
A Rosa pôs-se a cho-rar...")
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