A incerteza me traz para a beira do mar. É involuntário. Fico
à deriva pela cidade e acabo arremessado às areias da praia. Estou
aqui agora. Restos do meu naufrágio. Minha visão navega por um
oceano crispado de reflexos solares. Cacos de espelhos com imagens que eu não
gostaria aqui. Esfrego os olhos para tentar dissipa-las, mas não adianta.
As imagens não estão no mar. Estão aqui dentro. Ficam de
tocaia para me atacar na hora certa. Surgem do nada e se abrem espontâneas,
automáticas. Basta que uma apareça para que as outras acompanhem.
Conheço bem os seus gatilhos. Sei que não posso evita-los. Nem
aprendi a conviver com isso.
Hoje é diferente de sempre. Não estou apenas triste. Me sinto
cansado. Muito cansado. Estou tentando fugir de tudo. Das imagens, das vozes,
do remorso, da culpa. Só que não tem jeito. Nunca consigo ficar
sozinho.
Tenho os pés descalços. A areia fria me mantém em contato
com a realidade. Incentiva os meus passos. Caminho na direção
de um velho píer. Uma imagem do abandono. Um ponto incerto na minha visão.
Um porto seguro para aves que precisam enfrentar o mar. Ele agora é o
meu objetivo. Espero encontrar nele o que procuro. Não sei. Não
tenho certeza. Apenas ando naquela direção. Vou em frente com
uma determinação que não é minha. Sigo mergulhando
na paisagem surreal desse poente de inverno. Me integro à ela. Sou o
motivo de um quadro banal. Uma obra sem valor, pintada em tons laranjas, violetas
e vermelhos. Traços incertos. Sorrio. Debocho da pretensão do
pensamento. Cruel expectador de mim mesmo. Não há arte no meu
desespero.
Venta forte. Eu não sei se o vento me empurra ou se o píer me
puxa. A construção me atrai como uma sereia. O vento me soa como
o seu canto. Sopra a minha perdição. Lembra que as minhas lendas
sobrevivem da angústia que me causam. Alimentam-se da minha loucura.
Chego ao píer. Suas tábuas toscas rangem. Parece um lamento. Um
choro de carpideiras. Vozes em ladainha. Assustam os albatrozes. Alguns alçam
voo. Outras ficam. Talvez me reconheçam. Talvez saibam porque estou
ali. Olho para céu e eles estão lá. Meus fantasmas libertos.
Pairam na existência. Multiplicam as imagens e os sons que orbitam a minha
mente. Brincam com as aves que planam. Imitam seu bailado. Transformam o voo
dos albatrozes numa dança mágica e encantada. Coreografia para
as minhas ilusões perdidas. Quero estar lá. Quero voar com eles.
Vou até a ponta do cais. Salpico no céu lilás dezenas de
pontos brancos esvoaçantes. Aves que o meu caminhar espanta. O barulho
das asas batendo me atinge como aplausos. Seus gritos são assovios de
incentivo. O céu agora é uma imensa plateia de alucinações
fantasmagóricas. Gritando, sorrindo, pedindo para que eu não pare.
Chego ao fim da plataforma. Olho pra frente. O horizonte reto permanece. Observa-me
intocável, distante, intangível. Fronteira dos meus mundos. Abro
os braços, minhas asas. Fecho os olhos e sinto o vento. Solto o corpo.
Deixo os pés sair do chão. Voo cego.
O mar é morno no inverno. Me recebe e conforta. Me envolve na candura
das suas águas escuras. Me acalma aos poucos. Vai arrancando de mim os
sons e as imagens que não me pertencem. Saem expulsos nas borbulhas do
meu ar. Relutam, se agarram em mim. Me machucam. Fazem meu peito arder. Me sufocam.
Estremecem meu corpo com força e desaparecem. Para sempre. Um silêncio
profundo me invade. A calma me abraça. É uma sensação
de paz tão boa, que me deixo dormir.