O dia nasce nos golpes sucessivos do badalo. Um som que se entranha pelos poros
estimulando uma leve consciência. Os olhos permanecem fechados. O corpo
entorpecido pelo resto de sono. As juntas resistem a qualquer movimento. Reclamam.
Têm vozes que berram na mente um grito de socorro. Fazem muito barulho.
Os ouvidos despertam. Apuram o mundo. Sintonizam canais em busca de um som.
Reconhecem o sino do mosteiro. Que bate firme. Que bate fundo. Que bate estaca.
Crava na percepção o limiar da realidade. Anuncia o tempo em seu
ritmo imperativo. Os olhos se opõem. Reagem. Apertam as pálpebras.
Entrelaçam os cílios como uma rede de proteção.
Última linha de defesa. Pronta para impedir que nada saia, que nada entre.
Barreira do limbo. O corpo todo se esforça para reabrir o portal dos
sonhos. Submergir novamente na paz oceânica. Se entregar à sensação
do abandono pleno. Vagar no vácuo. Ignorar a vida. Mas é tarde.
Não há caminho de volta. As buzinas já avisam que o sinal
abriu. Os motores já começam a arrotar os soberbos desjejuns.
Os passos apressados surgem como ecos. Pisam com estrondo num chão que
parece metálico. Propagam o aviso do seu caminhar em ondas que se multiplicam.
Que se espalham como notícia ruim. É a horda dos aceitos que chega,
caminhando a sua indiferença. Trazem também as vozes. Não
esta. As outras, que falam de tudo. Que sorriem. Que xingam. Que cantam. Que
aumentam e diminuem. Que profanam a vida latente no útero de carpete.
Chegam disparando o sinal de alerta. Deixam o espírito em estado de vigília.
Fazem a razão se espalhar em picadas miúdas e doloridas. Surreais
como uma chuva de alfinetes. Fustigam o corpo até que vem um tremor mais
forte. Esse, provocado pelas portas do comércio subindo com seus disparos
de metralhadora. São as matracas que anunciam o ritual da purificação.
O momento da maquiagem que disfarça a cicatriz. Do curativo inútil
na ferida gangrenada. É o instante que introduz os sons da desfaçatez.
Do barulho da água lançada ao calçamento. Do chiado agudo
das vassouras esfregando o assoalho do purgatório. Compondo com o sino
do mosteiro o arranjo de uma ópera-bufa. Uma peça de paródia,
onde baianas sem máculas lavam as escadarias do templo usando cântaros
de creolina. O cheiro forte invade as narinas. Queima os pulmões. Faz
os olhos chorarem sem querer, vertendo privações. A língua
pastosa descola do céu da boca. Desperta insossa e ressecada. Incapaz
de decifrar o sal da lágrima. O estômago pesa sua inatividade.
Pondera a possibilidade do alimento. Lembra a urgência da fome. Está
tão contorcido e vazio quanto o saco plástico que ontem continha
a cola de sapateiro. A química de onde se aspira instantes de paz. Momentos
de ternura com lares, leitos e leite quente ao deitar. Tudo que não é
real. Nada que se faça tão presente como o cutucão do cabo
da vassoura. Cócegas nas costelas. Nem tão alto como o grito de
"ta na hora!". Beijo de bom dia. O primeiro pontapé é
recebido como um carinho. Confundido com o delírio do sonho. Pensa ser
a mãe que nunca existiu, chamando para a escola que nunca houve. O segundo
chute vem mais forte. Não deixa dúvidas de quem está chamando.
Nesse ponto a vassoura muda de função. Assume o papel de fórceps.
Busca uma brecha na cápsula de trapo. Vasculha o interior do casulo como
um instrumento de curetagem. E com precisão cirúrgica se transforma
num tridente. Símbolo do mal. Começa a atiçar a carne com
suas fibras de piaçaba. Provoca mais dor. É mais um motivo para
acordar. Para desinfetar dali. Para abortar a tentativa de fugir à realidade.
Para continuar sobrevivendo.
Então se dá a revelação. O mistério da vida
gerada nas ruas. O instante sagrado onde os mundos se tocam. O útero
de carpete se rompe. Dá à luz o improvável. Expulsa do
seu interior um pequeno ser. Quase humano. Que apanhou e chorou para nascer.
Como toda gente. Mas que não terá colo, nem seio, nem berço.
Nem a promessa de voltar a nascer amanhã.