A Garganta da Serpente
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Noturno

(Kinho Vaz)

A noite é igual. Sem sono. Os flashes azulados da TV piscam em mim. Fixo e não vejo. Apuro e não ouço. Apenas as imagens se repetem em sequência alucinante. O dedo cravado no controle remoto aperta e muda. Altera os canais de forma contínua. Disparo a esmo. Um franco atirador sem objetivo fixo. Transformo a tela da TV num mosaico abstrato, vivo, mutante. Nada me presta agora. Nada que me faça parar de apertar controle. O dedo começa a doer. O corpo reclama. A impaciência vem em espasmos. Incomoda. Mudo de posição. Não basta. Levanto e estico as pernas, os braços, o pescoço. Alongo meu desconforto. Largo o controle remoto. O dedo resiste. Permanece retraído. Estalo seus ossos. Vou para a varanda e recebo a noite na cara. Um tapa frio do nada. Me abraço. Me encontro só.

Lá fora repete o aqui dentro: vazio de tudo. Penso em comer algo. A boca saliva. A mente pondera a ausência de fome. É bom comer. Mas não precisa. Só um pouquinho. Vou engordar. Comi pouco hoje, não vai fazer diferença. Controle-se. Só uma coisinha pra dar gosto. Melhor não. Preciso mastigar algo, dane-se!

A razão cede vencida. No caminho até a cozinha, olho de relance para a TV. Um corpo nu de mulher se oferece exposto. Vende sedução. A libido interfere. Pede uma chance. Eu atendo. Me entrego por alguns segundos aos apelos da sereia eletrônica. Procuro me excitar. Entrar no clima. Quero aproveitar a visita despida. Penetrar no seu imaginário. Retribuir a oferta de amor fingido. Tento vestir a solidão com a fantasia desse erotismo encenado. Enfio a mão no bolso da calça. Tento despertar meu interesse. Procuro ordenhar um pouco de ânimo. Nada. A resposta é chocha. Percebo que não estou naquele script e desisto. Largo mão da libido.

Volto a pensar em comida. Retomo o caminho até a cozinha. Abro a geladeira e vasculho com os olhos. Procuro algo que apeteça. Doce ou salgado? Não, só vou beber algo. Escolho o refrigerante. Bebo goles fartos direto no gargalo. Devolvo a garrafa e fecho a porta, mas não consigo me afastar da geladeira. Não adianta. Já disparei o gatilho. Despertei a língua insossa. Vem uma forte vontade de comer algo salgado. Vá com calma. Só um pouquinho. Controle-se. É só um pedacinho e pronto. Não precisa. Que se dane! Abro a geladeira outra vez. Espreito, predador. Um pedaço de pizza ressecada. É isso. Uma mordida. Duas. Três. Mais goles de refrigerante no gargalo. Agora chega! Só um docinho. Chega! Um tiquinho de nada, não vai fazer diferença. É melhor deitar, procurar o sono. Já vou, depois do doce. Depois desse pedaço de torta. Agora um gole de refrigerante e pronto, basta. Começo a fechar a porta e vejo um pedaço de queijo. A boca enche d'água, pede sal. Adoro queijo. Não, já chega. Puta merda, que vontade! Vai deitar! Só mais isso. Venço o controle mais uma vez. Levo o queijo até a mesa. A porta da geladeira permanece aberta atrás de mim. Sinal de desistência. Já não há mais conflitos. A razão fecha os olhos para o destino. Uma fatia de queijo. Duas. A terceira é acompanhada por um resto de pão dormido. Mais um pouco de refrigerante para ajudar a descer. Fatias de salame com biscoito. Goiabada com mostarda. Torradas com manteiga e açúcar. Mais refrigerante. Uma última lasquinha de torta. Outra mais. Mais refrigerante. Pronto. Fecho a geladeira. Saio da cozinha. Volto ao sofá. Trago um pacote de amendoim. A TV agora está vestida. É clássica. Executa Noturno de Chopin. O dedo nervoso cumpre a sua sina. Tortura o controle. Acelera a alternância de opções. Cento e trinta canais mudados de um fôlego só. O mastigar frenético marca o ritmo. A miscelânea de imagens me enjoa. Largo o pacote amendoins. Quase vazio. Continuo com a roleta russa de canais até voltar ao ponto de partida: Chopin. Permito que os acordes permaneçam aqui. Eles vêm acompanhados pela angústia. A depressão me toca. Meu sentimento de culpa cresce com o andamento da música. O remorso aparece marcante, executando o seu solo. Meus olhos ardem, pesam. A visão se embota. Uma lágrima trilha meu rosto. Salga meus lábios. É Noturno em mim. A consciência pesa cada vez mais. O estômago segue seus passos. Estou empanturrado. Farto. Cheio de tudo. Isso não é vida. É morte consentida. Meus pensamentos viram pasta. Ficam pegajosos. Pioram o meu estômago. Por que fui comer tanto? Melhor tirar isso de mim. Melhor me livrar de tudo.

Vou até o banheiro. Levanto a tampa do vaso. Me ajoelho diante da privada, trono de nossas podridões. Sou um servo submisso ao vício do regalo. Enfio o dedo na garganta e forço o vômito. Ele vem farto, misturando na minha boca todos os gostos da minha volúpia. Repito o autoflagelo. Forço mais vômitos. Olho para os restos que saem de mim. Tudo aos pedaços. Mal mastigados. Mal digeridos. Me vejo ali. Eu me expulsando de mim. Em pedacinhos. Eu posto para fora à força, em lufadas de vômito. Expelido nos jorros de minhas misérias doces e salgadas.

Nesse momento a privada é o meu juiz. A compulsão, o meu crime. A bulimia, a minha pena. A consciência do castigo me deixa submisso à dor das contrações. Me torna cativo dos demônios que dançam nas minhas entranhas em chamas. Me faz sentir o fel do arrependimento. E segue me sacudindo em convulsões, até que o travo amargo na garganta anuncie o instante da bili. A última coisa que consigo tirar de mim. É o sinal do fim. Me largo exausto e humilhado sobre as minhas imundices. Volto a perceber o mundo ao redor. Chopin me chega de mansinho. Seus acordes invadem meu corpo vazio. Noturno compõe o fundo musical da minha tragédia. Estou mais calmo. Depois de tudo, sempre me acalmo. Como se a comida vomitada fosse a minha tentativa de remissão.

Levanto e me olho no espelho. A lividez me assusta. Sinto vergonha. Preciso parar com isso. Vou acabar morrendo. Molho o rosto. Lavo da boca o sabor do desgosto. Olho para o fundo da privada e vejo o que sobra de mim. Pressiono a descarga. A espiral de água limpa faz tudo girar. Me seguro na parede. Fico ansioso, apertando a descarga com força. Uma, duas, três vezes. Quero me livrar logo daquilo. Fico observando o turbilhão de água cumprir o seu papel até o fim. Preciso ter a certeza de que as minhas fraquezas, misturadas ali, estão sendo arrastadas para o esgoto.

Prometo que isso não vai se repetir. Nunca mais.

Volto ao sofá. Chopin se foi. Pego o controle remoto e começo a procurar algo pra ver. Vou mudando os canais com calma, a princípio. Mas logo me impaciento. Nada que preste! O controle sofre a pressão. Mudo os canais cada vez mais rápido. Sem espaço entre eles. Ajeito corpo irritado. Esbarro no pacote com a sobra dos amendoins. Fixo nele um olhar doente e a minha boca começa a salivar outra vez.

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