A Garganta da Serpente
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A greve das minhocas

(Kinho Vaz)

Estava aberta mais uma seção do Sindicato dos Criadores de Minhocas de Vale Hapena, uma pequena cidade com vocação agrícola, situada ao norte do Rio de Janeiro. A entidade foi criada pela iniciativa dos obstinados criadores, que sonhavam levar a minhoca a uma posição de destaque no mercado rural brasileiro.

Para chegar até aquele dia eles tiveram que enfrentar muitas dificuldades, como acontece a todo empreendedor. Nem tanto pelo reconhecimento da importância da minhoca na lavoura, que isso todo mundo aprende na escola. Mas pela cabeça dura dos grandes fazendeiros, que custaram a entender que apoiar a iniciativa era uma maneira de impulsionar o desenvolvimento da região.

O motivo daquela seção extraordinária era resolver o impasse provocado pelo aumento de preço que os criadores de minhoca pretendiam. Há alguns meses vinham tentando o reajuste, mas sempre esbarravam na intransigência dos fazendeiros, que achavam o reajuste fora de propósito.

Instruídos pela direção do sindicato, convidaram os fazendeiros para uma negociação aberta, mediada pelo padre da comunidade.

Os trabalhos foram abertos com a palavra do presidente do sindicato:

- Compadres criadores de minhoca, senhores fazendeiros, santíssimo padre. A gente veio ter aqui hoje, pra poder resolver essa questão do preço das nossas minhocas. Pode parecer um serviço fácil, mas não é não. Quem bota lá a mão no estrume da vaca pra alimentar as bichas, sabe que não é fácil levar a coisa pra frente. Tem gente que diz que isso é bobagem, que minhoca dá em tudo que é lugar. Mas vocês já viram o tamanho das nossas minhocas? Aqui em Vale Hapena a gente não enfia qualquer minhoca na propriedade de vocês não. São umas baitas minhocas gordonas, parrudas mesmo. E não é pra falar bem não, mas as nossas minhocas são trabalhadeiras, não ficam se enfiando em qualquer buraco, nem são de fazer corpo mole, mesmo tendo corpo de minhoca. Por isso a gente acha justo um aumento de 20% no custo, entregando a minhoca na casa dos senhores. Ou 15% com os senhores indo pegar a minhoca na casa da gente. É isso.

O representante dos fazendeiros pediu a palavra:

- Uma boa noite a todo mundo aqui, aos parceiros das minhocas, aos amigos fazendeiros e ao caríssimo padre. É bom deixar claro que nenhum de nós, fazendeiros, está fazendo pouco caso da minhoca de ninguém. A gente até reconhece que é um trabalho difícil, esse de ficar pegando em minhoca o dia todo. Todo mundo sabe que minhoca gosta de estrume de vaca e que vocês vivem com a mão na bosta, por força do seu ofício. Mas a nossa vida também não é fácil e tem seus desprazeres. Duvido que alguém aqui goste de enfiar o braço nas coisas da vaca pra virar bezerro enviesado. Quantos de nós, fazendeiros, já não levou aquele pum fedido pelas fuças, que às vezes vem até molhado, espirrando tudo nos olhos da gente. Uma porqueira só. É ruim, mas é próprio da nossa obrigação. Então, pegar na bosta da vaca pra dar de comer às minhocas, não pode ser desculpa pra aumentar o preço. Olha, eu vou falar por mim. Tenho até que admitir que quando o negócio da minhoca começou, eu não fiz caso. Depois eu vi a minhoca crescendo, crescendo e percebi que estava enganado. A minhoca da nossa região é mesmo uma senhora minhoca. Mas esse reajuste vai deixar o seu custo muito alto. A gente aqui, e eu falo dos fazendeiros, se juntou pra fazer uma proposta que parece justa pra todo mundo: nós oferecemos 10% de aumento, com a minhoca chegando na casa da gente já lavada, pronta pra enterrar. Sim, porque hoje vocês chegam lá com a minhoca toda suja. Dá até nojo de mexer. Então, a nossa proposta é essa: 10% de aumento com a minhoca lavada.

O ambiente ficou agitado e algumas vozes mais exaltadas começaram a se fazer ouvir. Um dos criadores que estava na plateia, levantou e começou a falar em tom mais duro:

- Olha aqui minha gente, isso de lavar minhoca é balela. Onde já se viu um descalabro desses? Vai lavar pra sujar depois? O amigo fazendeiro fala de um jeito, que parece que vai levar as minhocas pra cama e não pra terra.

A gargalhada foi geral e o fazendeiro se aborreceu.

- O senhor me respeite que eu não lhe dou confiança pra esse tipo de arroubo. Trate-me como um homem que honra as calças, que é nessa condição que eu vim aqui falar com vocês. Querer a minhoca limpa é um direito nosso. Mais que isso, é uma condição pra se ter acordo.

- Falta de respeito é o senhor fazer uma exigência dessas. Onde já se viu minhoca limpa? Não tem condição. Isso tá me cheirando a desculpa pra dificultar as coisas e desvalorizar a nossa minhoca. Eu não aceito. Eu não vou lavar a minhoca de ninguém. Onde já se viu...

- Então o senhor fique com a sua minhoca suja e procure outro lugar pra enterrar. Na minha propriedade só entra minhoca limpa.

Então o padre resolveu assumir o papel de mediador

- Meus filhos, vamos continuar na paz e Deus. Vamos nos entender. Pra tudo tem um jeito. Nem os fazendeiros podem largar as minhocas, nem os criadores podem deixar os fazendeiros sem elas. Vamos chegar a um preço justo e você aí, meu filho, se eles querem a minhoca limpa, não custa lavar.

- Seu padre já pegou numa minhoca?

- Não, meu filho, nunca.

- Então, meu santo homem, quando pegar vai entender que isso é uma besteira. Não dá pra lavar, não tem jeito.

Não tinha jeito. Os criadores não queriam assumir a responsabilidade e os fazendeiros não abriam mão dela. Isso criou um impasse que travou o debate, fazendo a discussão dar voltas como um cachorro atrás do rabo. Até que alguém mais afoito gritou no meio do tumulto.

- Vamos fazer greve!

Quando alguém grita uma palavra de ordem no meio de uma discussão, ninguém discorda. Se o grito, ao invés de invocar a greve, sugerisse o acordo, todos iriam atrás. A psicologia social explica isso de forma científica. E por mais extravagante que possa parecer, todos gritaram pela greve das minhocas irritando os fazendeiros que foram deixando o recinto, debaixo de um grande berreiro:

- Sem minhoca o fazendeiro, não consegue mais dinheiro...

O presidente do sindicato conseguiu acalmar o ambiente, ponderando que era preciso organizar o movimento. Sugeriu que, antes da greve, fosse feito uma passeata de protesto para tentar sensibilizar a sociedade. Tinham uma grande chance de sucesso, pois estavam na época do plantio e os fazendeiros ficariam em apuros sem as minhocas.

- Temos que fazer barulho nessa manifestação. Temos que chamar a atenção para o nosso problema.

- Vamos juntar o povo na rua principal de Vale Hapena!

- Não, companheiro, tem que ser algo grande. Temos que causar impacto. Vamos protestar na Avenida Rio Branco, no coração do Rio de Janeiro. Todo mundo vai ver.

- E pode?

- Claro! Todo mundo faz. Se a gente fizer direitinho, vai sair até na televisão.

Foi um alvoroço. Aquela seria a primeira grande demonstração de força do sindicato. Todos puseram mãos à obra nos preparativos do grande dia. Espalharam cartazes pela cidade, anunciaram na rádio local e até contrataram os serviços de um locutor aposentado, que passeava de bicicleta pela cidade, fazendo propaganda com o seu megafone.

Tudo parecia perfeito e os dois caminhões lotados de criadores e caixas com minhocas, saíram de Vale Hapena com destino à Candelária, no centro do Rio. O que eles não sabiam é que a Rio Branco, naquele mesmo dia, estaria sendo palco de uma imensa manifestação dos bancários, pedindo aumento de salário. O local estava preparado, com trânsito interrompido e diversos carros de som tocando música e divulgando palavras de ordem. Quando os criadores de minhoca lá chegaram, ficaram impressionados com tanta gente. Como eles haviam conseguido aquela façanha? Não podiam imaginar que houvesse tanta gente simpatizando com a sua causa. As faixas estendidas pela multidão não deixavam dúvidas, era apoio sim! Algumas traziam palavras que deixavam isso bem claro: "CHEGA DE MOLEZAS" e "VAMOS ACABAR COM OS FUROS" e ainda "FORA OS VERMES".

O presidente do sindicato das minhocas viu ali a sua consagração. Seus olhos brilhavam e vislumbraram um caminho aberto para a sua candidatura à prefeitura de Vale Hapena. Que sucesso!

É bem verdade que os bancários estranharam aquele pequeno e bem unido grupo, carregando caixas de minhocas e cartazes sem nexo. Mas, na luta, toda adesão é sempre bem-vinda. O importante era protestar e quanto mais barulho, melhor.

A turma da minhoca estava se sentindo em casa. Num descuido da organização, o presidente do sindicato conseguiu subir no carro de som e começou a discursar para a multidão. Quem conseguia ouvir, nada entendia daquele discurso que falava de terras e arados e minhocas em greve. Um bancário, militante de esquerda, jurou que aquele homem estranho com o microfone na mão era um líder do Movimento dos Sem Terra.

- Ele está falando por metáforas. As minhocas representam o nosso povo camponês, que vive nos subterrâneos da sociedade rural brasileira. É isso companheiros, vamos apoiar!

E todos começaram a gritar o mesmo jargão que o grupo das minhocas: "SEM MINHOCA O FAZENDEIRO NÃO CONSEGUE MAIS DINHEIRO". Foi um barulho danado. Soaram aplausos, gritos e assovios a cada nova proposta prometendo a tal greve das minhocas.

Uma greve que jamais aconteceria, porque não fazia o menor sentido. Isso pode ser constatado pelos criadores ao regressar a Vale Hapena. Esperavam uma recepção calorosa da cidade, após aquela vitoriosa manifestação no Rio de Janeiro. Mas o lugar estava como sempre, vazio, maturando a sua bucólica pasmaceira. Ali pouco se via televisão e menos ainda importava as notícias da cidade grande. A vida acontecia no espaço entre o nascer e o pôr do sol, onde as pessoas seguiam a sua rotina de viventes, como os bichos e como as plantas. Que diferença faria em suas vidas se as minhocas entrassem em greve ou não? Até porque eles nem sabiam direito o que significava sindicato ou greve. Portanto, quando os criadores entraram pela rua principal da cidade, o único barulho que ouviram vinha do escapamento dos caminhões.

No dia seguinte, receberam os fazendeiros para uma nova reunião. O presidente do sindicato, inebriado pelo dia anterior, falou com certa arrogância:

- Amigos fazendeiros. Certamente viram os noticiários. Devem ter percebido o tamanho do apoio popular que a nossa greve recebeu. Portanto, vamos definir logo esse preço pois "sem minhoca, o fazendeiro, não consegue mais dinheiro"...

Todos começaram a gritar novamente o jargão, enlouquecendo os fazendeiros que não estavam entendendo nada.

- Chega! Vamos parar com essa palhaçada. Que apoio, que manifestação que nada! E vamos logo encurtando a prosa que o dia é de trabalho. Enquanto vocês ficavam aí com essa conversa descabida de greve de minhoca, a gente resolveu diferente. Agora ninguém mais quer a minhoca de vocês. Nem suja, nem limpa.

- Como assim? Vão fazer o que com as suas lavouras?

- Nós decidimos juntar o dinheiro e comprar umas máquinas. Sai mais barato e não dá tanta dor de cabeça. Então, vocês podem tratar de procurar outros compradores. Pra nós, chega de minhoca!

Aquela notícia foi um tiro na alegria de antes. Os criadores ficaram perdidos, sem reação e foram saindo de mansinho, imaginando como fariam para viver. Não podiam mais vender suas minhocas e agora?

Sem minhoca, o sindicato acabou e levou junto as pretensões políticas do seu presidente. Ele ainda tentou reorganizar o pessoal, propondo uma saída. Falou que poderiam recomeçar vendendo o húmus produzido pelas minhocas, um excelente adubo natural. Mas ninguém queria se aventurar novamente, depois da grande decepção.

Preferiam voltar a fazer parte do grupo dos viventes, marcando os dias pelo rastro do sol.

O ex-presidente, do ex-sindicato, não conseguia entender o que aconteceu. Mas Ficou muito revoltado quando leu no jornal que o sindicato dos bancários conseguiu um bom acordo com os patrões. Pensou:

- A gente leva aquele mundaréu de gente pra rua, faz uma grande manifestação e perde tudo. Aí vem um sindicatozinho desses... é muito injustiça. Muita injustiça...

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