A Garganta da Serpente
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Ruas Desertas

(Kirisoré)

Embora, mais uma vez, aquela parte do mundo tivesse sido infectada por zumbis devoradores de carne humana, William Del Rey era o único sobrevivente que parecia não se importar com tão catastrófica e mórbida situação. Ele até parecia achá-la conveniente. Pois só mesmo assim, em uma cidade abandonada por seus cidadãos, ele podia dirigir seu carro sem se preocupar com trânsitos, infrações e acidentes.

O Fusca cinza cruzava a W3 Norte em direção ao Setor Comercial, mas virou à direita na altura da quadra 706.

Não havia sinal deles.

Talvez estivessem escondidos, amontoados em alguma garagem, ou em algum lugar infecto. À espera da noite e de uma nova temporada de caça ao único humano naquelas paragens. William engatou uma quinta e ajudou o sol a queimar o asfalto que ladeava o Autódromo. Ainda pensava neles, mas sabia que era difícil esquecer aqueles corpos esqueléticos, aquela pele cinzenta e suja, e aqueles olhos injetados e amarelados.

Ligou o rádio. O mesmo chiado ondulatório. A mesma falta de esperança a preencher, mais uma vez, o diminuto espaço do veículo. Devia ter se apossado daquele Fiat azul com tocador de CD. Pelo menos espantaria um pouco da solidão. Mas era tarde demais: o Fiat estava em uma zona perigosa demais para que William tivesse o luxo de realizar aquele sonho de consumo. Talvez voltasse lá um dia. Talvez. Sempre talvez. Em um lugar regido pela fome de mortos-vivos, "talvez" era como um cobertor numa noite particularmente fria.

Finalmente, o Fusca adentrou o Eixo Monumental em direção à Rodo-ferroviária. O silêncio não incomodava William, mas o lixo e o entulho ainda o faziam ficar em alerta. Eles o atrasavam, faziam com que tivesse de redobrar a atenção. Ainda assim, o carro não demonstrava problemas com os obstáculos da estrada. Deslizava a estáveis 60 quilômetros horários sob o escaldante astro-rei e emitia seu peculiar ronco traseiro.

Mesmo acostumado com a situação, a paisagem ainda mexia com seus nervos.

Uma paisagem que balançava entre a natureza silenciosa e a total destruição da civilização. Postes e semáforos retorcidos e transformados em ninhos de pássaros; ônibus enferrujados e depredados, ora batidos em árvores, ora abandonados no meio da pista ou com nítidas marcas de incêndio. E em volta de todo esse caos, milhares de cadáveres, em avançado estado de decomposição ou na forma de esqueletos carcomidos pelas aves de rapina, salpicados pela grama e pelo asfalto. Fétidos e disformes, com suas bocas abertas como se quisessem lembrar aos sobreviventes os seus derradeiros fritos de terror e seus espasmos de desespero quando não havia mais como se livrar das garras da Morte.

William Del Rey desacelerou para, mais uma vez, observar os pobres diabos deitados no chão. A máscara da Morte era mesmo feia. Olhos entreabertos voltados para o azul do céu ou para algum detalhe invisível do gramado ou da estrada. Arcadas dentárias superiores à mostra, como se quisessem sorrir para alguma situação melhor. Membros rígidos que transformavam homens, mulheres e crianças em instalações artísticas.

Às vezes, Del Rey chegava a concluir que aqueles não eram seres humanos como ele. Toda aquela fétida e impressionante deformidade não podia ter sido , no passado, um humano. Até os malditos zumbis pareciam mais humanos que aqueles mortos espalhados pelo chão.

Se ao menos ele tivesse dado sorte com o tal tocador de CD ou com o rádio, ele certamente não estaria pensando tanto sobre os mortos que o cercavam. Ele não encheria sua mente com aquelas imagens de horror e a constante ameaça de um ataque por parte dos mortos-vivos. Muito pelo contrário: a música e, talvez, alguma voz humana distante o acalmariam e o transporiam para uma época passada, em que ele não tinha de se preocupar com nada que fosse ligado àquela destruição. Sim, a música o deixaria mais relaxado. Atento, sem dúvida, mas relaxado.

O Setor Militar Urbano aproximou-se, e William Del Rey pegou a sua direita para adentrar o que outrora tinha sido uma avenida para desfile militares ou algo do gênero. Era uma larga avenida de pista dupla, com a mesma quantidade de entulho e de veículos abandonados que as demais.

Apesar de estar a 40 quilômetros por hora, Del Rey só se deu conta do que estava acontecendo quando os escrotos já arranhavam uma das pequenas janelas laterais traseiras.c "Filhos de uma puta," berrou. "Me deixem em paz, ouviram?!"

Deviam ser uns cinco ou dez. Todos com as roupas em frangalhos, os olhos arregalados e os corpos emaciados. Balbuciavam algo incompreensível e gesticulavam feito desesperados famintos e sedentos. Mas o que realmente queriam era capturar e devorar carne humana. Nada mais simples que isso.

Um deles, aparentando uns cinquenta anos e vestindo apenas uma cueca, tentou pular para cima do capô, mas não conseguiu e caiu, permanecendo imóvel no asfalto quente.

Sem um pingo de remorso ou medo em seu coração - àquela altura do campeonato, só sentia raiva -, William Del Rey acelerou e fez com que o ponteiro do altímetro atingisse a marca dos 80. o motor tremeu e Del Rey passou a quinta. O besouro cinzento riscou a avenida, deixando os zumbis para trás, desnorteados. Em seguida, tomou novamente a direita e envergou novamente na direção da W3 Norte.

Estava mesmo na hora de tentar a sorte com aquele tocador de CD.

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