A primeira fase das provas havia chegado ao fim. Verifiquei o gabarito, somei
os pontos e deixei o resto nas mãos do Destino e longe das hediondas
garras de Tulsa Doom. Tinha três emanas para descansar e pensar em tudo,
exceto em provas ou estudos. Nada de Hobsbawn, nada de Milton Santos ou de Vaïsse.
Nada de Brasil Colônia ou das origens do mercantilismo.
O descanso ainda era o molho picante da labuta.
Para minha surpresa, não soube o que fazer no primeiro dia livre. Me
sentia perdido, à mercê de algum remorso monstruoso e mortífero,
capaz de me reduzir a pó em questão de segundos. Sabia que não
precisava tocar em livro ou caderno algum, sabia que não era obrigado
a transcrever fitas de História Mundial para o caderno. Mesmo assim,
uma certa insegurança quanto aos atos daquele dia tomava conta da minha
lista de prioridades e impedia que eu me liberasse de tarefas caras à
minha rotina de estudos. Como que desnorteado, permaneci deitado na cama mais
que o normal, escutei um pouco de música, preparei o almoço como
costumava fazer, escutei o noticiário na rádio e tomai um chá
prato quando escureceu. Mas, afora isso, nada tinha realmente mudado, como dizem,
da noite para o dia. Fui dormir com a sensação de que havia perdido
a prática em certos assuntos e afazeres, e com medo de não mais
saber recuperá-los.
O segundo dia, contudo, foi melhor. Acordei cedo, me sentindo preguiçoso
e inútil em princípio, mas recuperei o fôlego ao longo da
manhã. Escrevi algumas páginas, mexi no computador, lavei a louça,
arrumei os livros e os papéis do caos no meu quarto, e ainda reforcei
os parafusos da cabeceira do sofá-cama, frouxos havia meses. Era uma
hora da manhã, e eu já estava deitado e com a luz apagada, quando
concluí que ainda faltava algo para que aquele período de descanso
fosse oficializado de modo mais peculiar; diferentemente daquela velha mania
que as pessoas tinham de viajar, de se isolar de todos, de se enterrar em algum
mosteiro no alto de uma montanha qualquer. Definitivamente, era preciso providenciar
algo fora do comum; algo que as pessoas vissem e dissessem "desta vez,
você realmente passou dos limites, cara", antes de considerá-lo
um maluco ou um débil mental.
Quando você é como eu, um sujeito cuja vida parece ser, em parte,
regida por rock, quadrinhos e filmes de terror e de ficção científica,
fica difícil não cair na tentação de produzir algo
único, chocante ou não. Nem precisa ter vida longa ou cair na
boca do povo: a única condição é você gostar
daquilo que está fazendo e esquecer, por algumas horas, as regras e os
modismos da sociedade na qual se vive. O mundo pode estar desabando, e mesmo
assim você estará certo de que optou pela melhor alternativa. Diabos,
eu tinha três semanas pela frente! Isso, por si só, já era
uma boa desculpa para cometer uma pequena loucura.
Na manhã seguinte, apanhei o caderno de rascunhos e comecei a rabiscar
alguns protótipos de frase. Precisava de algo forte o bastante para chamar
a atenção do público-alvo certo, sem cair no erro de atrair
o tipo de gente errada, que só responderia por curiosidade infantil ou
por pura necessidade de contar vantagens. Achar um equilíbrio entre as
frases certas e a ordem das mesmas não era nada fácil, mas finalmente,
após uma hora de esforço e três xícaras de café
goela abaixo, tive a impressão de atingir o resultado almejado.
"VAGABUNDO PROFISSIONAL PROCURA VOCALISTA MAGRO E BAIXISTA ALTO PARA
FORMAR COVER DO DANZIG TEMPORÁRIA. EXPERIÊNCIA NÃO EXIGIDA,
SÓ EQUIPAMENTO E CERVEJA. TELEFONE TAL. TRATAR COM SENHOR K."
Nada mau para um primeiro anúncio de classificado. Frases objetivas,
não menos certeiras que mísseis Tomahawk. Ordem impecável,
não exatamente seguindo uma ordem decrescente de prioridade. Em suma,
daria conta do serviço.
Convenhamos: uma banda cover do Danzig era a melhor escolha. Por mais
que as pessoas não gostassem dos últimos discos de Glenn Danzig,
a história e a trajetória, tanto da banda quanto do próprio
vocalista marombado, falavam por si sós. Os três primeiros discos
da banda haviam feito algum sucesso. Glenn Danzig era uma figura pitoresca,
que se desdobrava em seis com suas ideias maluquetes e seu modus vivendi
calcado em magia negra e música alta. Mas o melhor era a caricatura
de tudo isso: as apresentações da banda ao vivo, os gritos típicos
de Danzig, os clipes cheios de mulheres que o transformavam em um semideus
vestido de preto. Quando talento e teatralidade se unem, não tem como
errar: o público assimila o nome do artista e, apesar de altos e baixos,
sempre forma um público cativo. Os fãs.
Eu tinha todos os discos da banda e algumas revistas em quadrinhos publicadas
por Glenn Danzig. Havia namorado uma menina que era apaixonada pelo sujeito:
adorava se vestir de preto, e coisa e tal. O ex-vocalista dos Misfists tinha
lá seu carisma; não por ser um Conan de cabelos negros ou um especialista
de pacotilha na arte do oculto. O malandro tinha uma ginga no palco, mesmo quando
perdia a voz após um grito - fato que não raro ocorria. Era uma
mistura de Johnny Cash, Elvis Presley, Anton La Vey, Roy Orbinson e Lobo (o
personagem dos quadrinhos criado pelo desenhista britânico Simon Bisley,
amigo, aliás, de Danzig).
Eu podia ter escolhido montar uma banda cover do AC/DC, mas não
ia ter a mesma graça, a mesma diversão. Na certa, iria chiar assim
que o primeiro energúmeno errasse uma nota ou a letra da canção.
Iria acusar todos de blasfêmia por não saberem, de cor e salteado,
cada acorde e melodia da discografia da melhor banda do mundo.
Liguei para os classificados, ditei o texto e paguei com o cartão de
crédito dos meus pais. Depois, esperei.
Durante os quatro dias seguintes, retomei uma certa rotina. Continuei meus textos,
arrumei a casa, saí para tomar umas cervejas com meu advogado e preparei
almoços para minha esposa. Tentei dar uma de sujeito normal que fazia
coisas normais e dizia coisas normais. O Rei do Politicamente Correto.
Mas na manhã do quinto dia, o telefone tocou. A voz do outro lado da
linha não transmitia estabilidade. Parecia estar com medo de algo. Beirava
um sussurro.
"Sim?"
"...Ah, sim. Eu gostaria de falar com a pessoa que...colocou o anúncio
no..."
"É. Sou eu mesmo. Tá interessado?"
"Sim. É que...eu...gosto de Danzig e...eu sou vocalista e..."
"Sério?"
"É."
Se, de acordo com a Bíblia, no começo era o Caos e depois o Verbo,
Este último deve ter surgido mais ou menos como aquela conversa ao telefone:
aos poucos, devagar, quase parando. No entanto, aquilo tudo era promissor. Não
sabia ao certo por que razão. Acho que era por que eu estava a ponto
de soltar uma de minhas maiores gargalhadas. Mas não o fiz: vai que o
sujeito era sensível a ponto de cometer suicídio após ser
ridicularizado por um desconhecido. Além disso, era eu quem havia tido
a ideia do anúncio. E era eu quem iria até o fim com aquela
história toda. Custasse o que custasse.
"E então...eu conheço esse...colega de sala de aula. Ele...toca
baixo...aqui do lado...e...ele é alto e...acho que...ele gosta de rock...de
algumas músicas...e...ele se veste de preto..."
"Mmmm. Legal."
"E...ele..."
Incapaz de desligar meus ataques de imaginação, eu já me
via envolvido com menores de idade viciados em crack ou em ópio. Ou em
ambos. Acho que foi isso que me fez tomar uma atitude mais enérgica.
"Olha só: por que é que a gente não marca de se encontrar
no estúdio? Tem um amigo meu que trabalha lá. O dono tá
de férias. Eu chamo meu irmão, que é guitarrista, e a gente
pode tocar alguma coisa. Só pra ver como fica..."
"...Tá...acho que...vou ligar pro...cara que toca baixo...e..."
"Legal, legal. Fica no subsolo da 505 Sul. Não tem como errar. Sete
da noite tá bom?"
"É...sete..."
"Ótimo. A gente se vê lá, então."
Para ser sincero, eu não sabia para onde tudo aquilo estava me levando.
Se bobeasse, era bem possível que eu mesmo estivesse levando menores
de 18 anos para o chamado "mau caminho" - pouco importava se esse
caminho era "Starway to Heaven" ou "Highway to Hell"...).
assim mesmo, ao final da tarde, apanhei minhas baquetas e meus pratos Paiste,
coloquei o todo nos respectivos protetores e entrei no Demônio Azulado.
Quando cheguei ao estúdio, Hamilton Le Bon, esperava na porta e fumava
o que parecia ser seu quadragésimo sexto Marlboro Light. "Le Bon"
não era o verdadeiro sobrenome de Hamilton. Mas o fato é que o
sujeito tinha um certo histórico de bandas ao longo dos anos 80; bandas
que ciscavam, aqui e ali, no mesmo terreiro de um Duran Duran, de um Tears for
Fears ou de um Adam Ant. quando os anos 90 chegaram e as bandas grunge
de Seattle se apossaram do trono, Hamilton resolveu se casar, trabalhar em algum
escritório de advocacia e prestigiar os almoços em família
aos domingos. Veio o novo milênio e Hamilton voltou a mexer com música.
Tocava violão no coral da igreja e ajudava um amigo seu a cuidar de um
estúdio especializado na gravação de discos evangélicos.
Foi exatamente por essa última razão que eu mesmo resolvi dar
a notícia antes que o ensaio começasse.
"É o seguinte, Le Bon: hoje a coisa vai ser meio pesada, viu?"
"Vai tocar AC/DC na bateria, meu amigo?"
"Na verdade vai ser Danzig...," respondi em voz baixa.
"Dance?"
"DANZIG, pó!"
Hamilton pensou, pensou, olhou para o céu e, finalmente, arregalou os
olhos, com cara de poucos amigos.
"Porra, imbecil. Fez questão de escolher a dedo, foi? Isso aqui
é um estúdio de respeito. Até o pastor lá do Rio
veio gravar uma mensagem em um dos discos. E agora você quer tocar música
daquele maluco adorador do demônio?! Tá bêbado, é?"
"Que que há, Hamilton? Não tem nada de mais. O DFC já
tocou aqui e o próprio dono deixou..."
Hamilton acendeu o quadragésimo sétimo cigarro.
"Mas ali era diferente. Eles 'tavam gravando uma das músicas e tinha
dado problema com o equipamento do outro estúdio. Não foi nada
proposital, meu irmão. E DFC é engraçado. O teu irmão,
o Túlio, o Leo...é comédia."
"Então espera até ver o vocalista que eu arranjei..."
Dez minutos mais tarde, o susto foi impar. Um Passat verde limão caindo
aos pedaços estacionou na nossa frente. De dentro, surgiram três
figuras nada convencionais, todas vestidas de preto e vermelho-sangue. O mais
alto carregava o que parecia ser o baixo; o sujeito tinha um moicano pintado
de verde e lápis preto nos olhos. Vestia uma camisa preta com babados,
como se fosse um Pepeu Gomes punk. Calça preta, coturno preto, cinto
preto com tachinhas pontiagudas e alguns anéis de alumínio facilmente
adquiridos em alguma feira hippie.
Ao seu lado, abraçada tal qual filhote de coala à mãe,
estava uma menina com todo o visual gótico a que tinha direito: maquiagem,
Doc Martens cor cereja, camiseta do Cradle of Filth - confesso, caro leitor,
que podia ser pior: podia ser uma camiseta do Renaissance ou do Evanescence
ou algo que o valha. Parecia uma Siouxie Sioux com mais peso e mais charme.
Comível.
A pièce de résistance, no entanto, era mesmo o rapaz magro.
Responsável por calafrios que, até a presente data, me atormentam,
o cara tinha a anatomia de um flagelado de Biafra, a cor de pele de um zumbi
e as roupas de um estagiário do McDonald's. não desgrudava os
olhos do chão e parecia resmungar algo. Se havia algum rejeitado pelo
Inferno, era ele: o Glenn Danzig de Bangladesh, o Senhor das Trevas da Somália,
o Robert Smith versão esquelética. E ainda carregava as cervejas.
Hamilton permanecia boquiaberto, na certa imaginando que as portas do Inferno
definitivamente precisavam de fechaduras mais resistentes. Eu estava surpreso,
curioso ante figuras do folclore rock'n'roll brasiliense; nunca havia tido relação
alguma com tão obscura fauna e, logo no primeiro contato, me deparara
com três espécimes bem distintos; três inocentes aberrações
que havia escolhido aquele estúdio como ponto de partida para alguma
prévia do Apocalipse. Estava eu arriscando minha alva pele? Tinha certeza
de que, em caso de ataque súbito por parte daqueles filhotes degenerados
de Brian Molko, jogaria Hamilton na frente e correria o mais rápido que
pudesse. Mas ainda era cedo para julgá-los. Então simplesmente
fiz que qualquer connaisseur de rock faria.
"Ei, tô vendo que trouxe a cervejinha, hein?"
"É...algumas...acho que...vai...ser pouco..."
Acho que ele sorriu. Ou algo assim.
Os dois minutos seguintes serviram para as apresentações. O grandão
era apelidado de Papão, sua namorada se chamava Lina. Quanto ao vocalista,
bem, foi um caso à parte.
"Edgar...mas pode...me chamar de...Tição..."
"Certo...," resmungou Hamilton.
"...É como...carvão...só que...mais...quente,"
completou.
O estúdio de gravação era pequeno, porém razoável.
Uma das vantagens de se tocar em lugares que pertenciam a grandes grupos religiosos
era a certeza de que o equipamento não seria dos piores. A bateria, por
exemplo, era uma Sonor antiga, com peles novas e um bumbo decente. Possuía
um ximbau limpinho, uma caixa, um tom-tom e um surdo: simples e prático.
A mesa de som era moderna e continha o necessário para a gravação
de um CD, mas, por alguma razão desconhecida, o dono resolvera preservar
a tecnologia necessária para gravações em fita cassete,
e era exatamente isso que nós utilizaríamos durante as quatro
horas seguintes: quatro ou cinco fitas virgens e toscas que se tornariam o único
testemunho de uma pequena loucura musical.
Meu irmão foi o último a chegar - como sempre - mas não
pareceu surpreso com a presença dos três súditos de Bela
Lugosi. Na verdade, ele já havia namorado uma menina cujo irmão
conhecia outra menina que trabalhara com uma prima de Lina em alguma loja especializada
em roupas para metaleiros no Conic. Totalmente plausível. Além
disso, tanto Papão quanto Tição conheciam o trabalho do
DFC - a banda hardcore do meu irmão - e já haviam ido a
alguns shows da banda. Não era o mesmo estilo de música, mas era
tão divertido quanto.
Enquanto Lina falava ao celular ao lado da mesa de som e de um preocupado Hamilton,
o resto montava o equipamento e abria as primeiras cervejas. Papão tinha
um belo baixo Fender preto e branco de contornos clássicos e decorado
com adesivos sóbrios do PiL, do Dictators, do Specials, do Rancid e até
do Crescente Vermelho (por que não? Você podia ser um punk, escutar
hard rock e, ainda assim, ser um humanista...). Eu montei os pratos nos
pedestais e ajustei o ximbau para que ele me oferecesse um som similar ao obtido
em discos do AC/DC no quais o baterista fosse Phil Rudd ou Simon Wright (sempre
achei o ximbau do Chris Slade muito limpinho, mesmo adorando o álbum
"Razor's Edge" e a música "Big Gun"). Sabia o que
era um baterista do Danzig: basicamente um animal vomitado de alguma era antropológica
e rebatizado de Chuck Biscuits. O fato é que eu não tinha o mesmo
estilo, não tocava com a mesma força, curvado, horas a fio, sobre
a pobre bateria. Eu podia aguentar o tranco, contanto que manerasse na
força.
Em um dos cantos do estúdio, Tição bebericava sua cerveja
e testava o microfone Shure.
"Um...dois...um...testando...É...um...testando..."
"Acho que tá bom, acho que tá bom," assegurou Hamilton
pelo sistema de viva-voz. "Meu deus, meu deus..."
Quando a parte técnica ficou pronta, passamos a decidir qual canção
tocaríamos primeiro.
"Vamos só fazer um teste," disse Hamilton. "Algo calmo,
se possível..."
"E então," perguntei. "Alguém quer escolher?"
"Pô, podia ser 'Dirty Black Summer', né?" disse Papão.
"É...podia...é...tocar...aquela...'Twist of Caos'."
"'Twist of Cain'," corrigiu meu irmão.
"É...isso...Twist...of...Caos...é..."
Decidi ajudar. Um pouco.
"Tá. Então vamos começar com a 'Twist of'...Hamilton,
quando quiser, pode apertar o play..."
"Já tá gravando há uns três minutos...quer que
volte?"
"Não, deixa, deixa...Vamo lá."
Os primeiros acordes de guitarra vieram sem surpresas. Lânguido, sem pressa
alguma, mas certo de que desencadearia uma sucessão de espasmos raivosos
e de epidermes arrepiadas à medida que fosse acompanhada pelos demais
integrantes. A verdadeira surpresa, no entanto, só tomou o estúdio
de assalto assim que Tição abriu a boca e proferiu os primeiros
urros referentes à letra da canção.
"Iieeei....Eeeeei.....Heeeeeeeeeeeeiiii!!!!!!!"
O sujeito havia sido possuído. Não só dava a impressão
de estar espremendo o microfone, como também fazia cara de mau e abria
uma bocarra a cada grito. Mesmo com aquele aspecto físico esquálido,
Tição dava a impressão de crescer, de tornar-se mais imponente.
Ele estufava o tórax - o que, confesso, era meio ridículo -, afastava
um dos braços e cerrava o punho. A conclusão parecia óbvia:
Tição realmente acreditava ser Glenn Danzig. Ou, pelo menos, um
primo distante e menos alimentado.
Aquilo tudo estava começando a dar certo. As canções simplesmente
fluíam como se estivessem sendo gravadas pela primeira vez; como se estivessem
sendo ensaiadas por alguma banda que, como o Danzig original, queria apenas
se divertir ao som de rock'n'roll e sob o efeito da algumas latas de cerveja.
Quatro caras, alguns instrumentos, um estúdio fora do comum e nenhum
projeto específico. Certamente não era nada que sobreviveria mais
de uma semana; se tanto. Mas com certeza era um ensaio que permaneceria nas
nossas mentes pelo resto de nossa vida. Tudo bem, isso soou meio gay para uma
banda cover do Danzig, mas foi de coração...Esquece.
Após "Twist of Cain", tocamos "Dirty Black Summer",
"Heart of the Devil" e "Left Hand Black". Foi pavoroso e
maravilhoso ao mesmo tempo. Como se aquilo fosse apenas um hobby, Tição
encadeou gritos, torções de tórax e batidas de cabeça
no ar refrigerado do estúdio.
"Eu acho que ele não precisa gritar tanto," disse Hamilton.
"É como se..."
"Que é isso, velho," interrompeu Lina. "isso é
ducaralho. Tição tá nessa pelo rock'n'roll, velho. Não
quer saber de grana, não. Não que saber de mulher perseguindo
ele. Só quer cantar rock e tocar o terror pela cidade. Não é
que nem essas bichinhas que cantam merda por aí, não. Essa é
a real, sacou?"
Naquele exato momento, Hamilton concluiu que precisava de um tradutor. Ou talvez
de alguém que tivesse a feliz ideia de publicar um dicionário
"Gente Maluca-Gente Normal". De qualquer modo, Lina continuou falando.
"É, cara. O Tição e o Papão são ducaralho.
Não têm medo de nada. Só tocam rock'n'roll e botam pra fudê.
Essa é que é a real. O resto é coisa de viado que não
entende a parada, sabe, velho? Ai, esse meu celular não pára quieto...Alô?"
Hamilton olhava fixamente para os botões da mesa de som, na esperança
de surgir uma oportunidade que o tirasse daquele lugar e deixasse tudo ao deus-dará.
Mas a única coisa que surgia era mais música. Cada vez mais alta,
cada vez mais amedrontadora, cada vez mais certeira.
Para alguns, aquilo certamente não passava de uma brincadeira, uma palhaçada
orquestrada por quatro vagabundos sem trabalho fixo ou reputação
nos meios "sérios" da cidade. Talvez fosse o caso. Mas talvez
quiséssemos ligar o "foda-se" por algumas horas, mandar tudo
às favas e alcançar uma felicidade que poucos alcançavam,
mesmo nadando em grana.
Aquele momento era nosso.