Acordara com a certeza de que, em meio àquele frio de 17 graus, não
teria como escapar dos afazeres que havia prometido no dia anterior: tomar um
ônibus até o Setor Sudoeste e tentar configurar a secretária
eletrônica de última geração do consultório
odontológico da minha cunhada.
Já dentro do ônibus, a sensação era de insegurança
e falta de paciência. O motorista não era um daqueles psicopatas
cariocas que queimam o asfalto de bairros calmos carregando 40 passageiros atônitos.
Mas também não era nenhum Steve McQueen do Distrito Federal. Foram
curvas e mais curvas, freadas bruscas e xingamentos originais, até o
momento em que eu puxei a cordinha para que o candidato a Speed Racer candango
parasse e eu saltasse.
Ainda nem tinha passado das dez, mas resolvi me refazer do susto automotivo
adentrando a mais famosa pizzaria da cidade. Pedi uma "dupla" e um
copo de chá-mate gelado. Havia uma pequena TV ligada em algum canal que
exibia um desses programas matutinos que misturam todo e qualquer assunto e
te deixam com a impressão de que TV aberta, por mais divertida que seja,
é uma colossal merda alienante. No tal programa, duas meninas mostravam
aos apresentadores como haviam domado e "educado" um daqueles minipôneis.
O equino, todo emperiquitado com miniestribos, minissela, minienfeites,
ajoelhava quando mandavam para que ele ajoelhasse; se fingia de morto quando
lhe pediam para se fingir de morto; balançava a cabeça quando
lhe perguntava se ele havia gostado da atuação da seleção
brasileira de futebol durante a Copa da Alemanha. Devia ter sido tão
maltratado que a menor possibilidade de desobediência lhe trazia lembranças
nada agradáveis.
Foi durante a apresentação televisiva do pônei que, provavelmente
vindo de alguma academia próxima, surgiu um daqueles jovens musculosos,
praticantes de artes marciais e veneradores de açaí com acerola
e xarope de guaraná. Já chegou falando pelos cotovelos, pedindo
um salgadinho e um refrigerante light.
"Pó, aí: esse cavalo sabe mesmo obedecer, hein?!"
Foi a deixa para que eu engolisse a pizza e o chá, e pagasse a conta.
Tivesse eu ficado mais alguns minutos, na certa teria de ouvir algum monólogo
acerca da crise de segurança em alguma metrópole ou a atuação
do governo.
O programa com o pônei amestrado me fez lembrar de outro programa não
menos curioso ou engraçado. Um documentário sobre a Legião
Estrangeira, exibido por algum canal de língua francesa.
Todo anos, dezenas de homens, oriundos das mais diversas regiões do planeta
e talvez fugindo de algo monstruoso, se alistavam na Legião. Compravam
suas passagens para a África do Norte e iniciavam um treinamento infernal
sob o comando de um coronel magro e com duas ou três cicatrizes no corpo
e na alma. Aprendiam a usar uma arma - muito provavelmente já soubessem
-, a se comportar em situação de combate, a matar e a aniquilar
sem deixar rastro. Um inferno sob os auspícios da República Francesa.
Cães de Guerra levados para o passeio matinal por uma Marianne junkie,
desdentada e cujo cabelo havia sido gloriosamente raspado com máquina
zero.
A parte engraçada, no entanto, se dava logo no começo do treinamento,
em algum galpão gigantesco cheirando a querosene e mijo.
Era a aula de alfabetização em Francês, já que muitos
dos "alunos" nunca havia falado a língua de Molière.
O coronel escolhia um dos candidatos e o colocava na frente do resto da turma.
Em seguida, ele apontava para cada parte de seu corpo e gritava a palavra correspondente.
"NARIIIIIZ!"
"JOEEEELHO!"
"OOOOOOLHO!"
E assim por diante, durante algumas horas por semana. Então, ao final
de cada lição, ele escolhia dois alunos, os colocava novamente
diante do resto da turma e fazia com que o primeiro apontasse para a parte do
corpo correspondente ao seu comando.
"JOEEEELHO!"
E o aluno apontava para o nariz.
"BOOOOOCA!"
E o aluno apontava para o joelho.
"MÃÃÃÃÃO!"
E o aluno apontava para a barriga.
Demorava, mas eles acabavam aprendendo, de um jeito ou de outro.
Lembrei das cenas quando comecei a caminhar em direção ao consultório
da minha cunhada. Era preciso andar uns 500 metros em uma calçada estreita
e ascendente para se chegar ao local. Percebi que a preguiça não
era uma opção tão agradável quanto parecia: podia
ter ido de carro, mas resolvera deixá-lo na garagem e tomar um ônibus.
Se não gostava do fato de caminhar meio quilômetro, isso era apenas
resultado de minha própria preguiça, de minha própria escolha.
Uma escolha errada. Na verdade, queria ter ficado em casa, mesmo tendo de aguentar
um vizinho chato que teimava em se equiparar a John Coltrane desde as oito da
manhã. Preferia o late-late dos poodles e vira-latas a caminhar aqueles
500 metros. Preferia a chamada "Gangue das Nove Crianças",
com suas discussões acerca de super-heróis e meninas sacanas a
caminhar tanto. Preferia as probabilidades de um acidente de trânsito
capaz de parar parte da cidade a ter de enfrentar aqueles 500 metros sob um
clima seco e imóvel brasiliense.
O que você faz quando anda 500 metros na seca?
Muita coisa. Você pensa em muita coisa e abstrai a caminhada. Eu pensava
em qual podia ser a melhor maneira de terminar certos textos. Me perguntava
se havia deixado a janela da cozinha aberta e se alguma mosca iria entrar por
ela. Pensava no cardápio para o almoço em algum botequim no meio
do caminho de volta pra casa, ou nos filmes de terror que alugaria da próxima
vez que minha esposa viajasse com as amigas para alguma cidade do interior.
Listava afazeres há muito deixados de lado, músicas que baixaria
no computador, revistas que recortaria assim que as comprasse. Qual era a melhor
maneira de se livrar de alguma pessoa indesejada? Que arquivos de recortes de
jornais tiraria do armário para guardar na garagem? Quais as roupas que
doaria para a empregada? De quanta coragem precisaria para mandar dezenas de
instituições de caridade para o inferno? (essa última era
bem difícil...)
Era tanta coisa que, não raro, me confundia.
Mas o fato é que os tais 500 metros doíam menos.