Dava-se o crepúsculo. Como era de costume eu estava só em meu
pequeno e escuro apartamento, iluminado apenas pela chama de velas negras e
já derretidas, espalhadas pelos aposentos. A sala onde me encontrava
era espaçosa, com uma bela decoração de cores sóbrias.
O vento que batia nas janelas de vidro me fazia passar frio, mas eu já
não me importava. Até achava normal.
Mas uma coisa em incomodava: minha imaginação trazia à
tona imagens de um mundo simples, limpo, com campos verdes e pessoas alegres.
Mas o que meus olhos viam era justamente o contrário: monstros de concreto,
construções inacabadas, corroídas pelo tempo e pelo homem;
seres decadentes, degredados de um antigo mundo, circulavam por entre as ruas
sujas, respiravam o ar denso e poluído.
Minha mente divagava tentando não acreditar no que via, naquelas paisagens
infernais, retratos da natureza humana. Fechava os olhos, murmurava antigas
canções, tudo a fim de evitar aquela loucura doentia que caia
sobre a cidade. Até o momento em que... não!
Vestido em negro, levantei da poltrona em direção à porta.
A realidade pesava em meu peito.
As ruas pareciam mais imundas do que nunca. O caminho que percorria esboçava
a demência em que aquela cidade se encontrava. A melancolia e o desespero
estavam presentes em todos os rostos e cantos para os quais eu olhava. Gritos
de horror e morte pairavam no ar. A população, ratos de um esgoto
desconhecido, com suas mentes e ideias iguais à sua origem, completavam
aquela cena de depressão: vivendo como animais, dormiam embriagados em
um lugar qualquer que encontrassem.
Conforme eu caminhava aumentava minha loucura. A visão sufocante daquela
realidade frágil e covarde me fazia caminhar se rumo, como que guiado
por meu próprio desespero, ou pior... como que guiado pela mesma sombra
repugnante que tomava toda a cidade.
Em dado instante deparei-me com o ápice de toda a podridão existente
naquela cidade. Dirigi-me até a maior e mais decadente construção
de toda a cidade: um prédio alto, cheio de janelas agora já quebradas,
garrafas vazias na calçada, antenas desmontadas e cartazes de propaganda
comercial no topo.
Ao chegar lá percebi o quão longe a destruição humana
poderia chegar. Adentrei aquele local, hoje habitado apenas pela sujeira e ossadas
de pequenos animais, um dia famintos. Cada andar mostrava-me um retrato cada
vez mais próximo do pior inferno imaginado.
No último andar o horror era completo. As ossadas eram numerosas e maiores
que as de alguns andares abaixo. O odor sepulcral e as paredes gastas pelo tempo
faziam da cena reprodução fiel da desgraça.
Continue caminhando até chegar ao telhado. Minha psique me atormentava
a ponto de tomar-me meu resto de consciência. Egos, superegos, id...
diversas personalidades... eu, tu, eles... NÓS!
À minha frente encontrei a figura de um homem velho, também dominado
pelas cidade. Aproximei-me lentamente dele, com medo de afastá-lo ainda
mais da "realidade" em que se encontrava, e perguntei:
- Quem és tu e o que fazes aqui, em meio ao nada?
O velho fitou-me vagarosamente e parou a me olhar diretamente nos olhos:
- Sou você, amanhã. Estou aqui para que vejas do que eles são
capazes.
Virei-me então e caminhei até o parapeito do telhado em frente
ao velho. Subi nele. Daquela posição pude observar a imagem mais
bela: a depredação total; uma visão geral de uma cidadela
de sangue. Mesmo estando completamente destruída sua imagem foi a mais
bela que pude ver antes de meu voo final.
Chovia forte. O que antes era apenas uma suave garoa de inverno tornara-se agora
uma forte tempestade. Lancei-me ao vento. Quando a tormenta cinza cobriu toda
a cidade, meu corpo já repousava no asfalto escuro.