A Garganta da Serpente
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A reciclagem das mentes

(Juliana Valis)

O taxista lia curiosamente as letras estampadas em um grande outdoor na altura da 602 Sul, em Brasília, enquanto aguardava o semáforo abrir. Sua passageira, bastante inquieta, entregou-lhe o dinheiro da corrida, abriu a porta a seu lado e saiu rapidamente do veículo:

- Ei, você não quer que eu lhe deixe direitinho lá na Catedral ?

A moça nem deu ouvidos. Atravessou as ruas com pressa até chegar à Catedral de Brasília, ponto de saída para a Grande Marcha Brasileira pela Reciclagem das Mentes, que percorreria toda a Esplanada dos Ministérios até o Congresso Nacional. Com início marcado às onze horas daquela ensolarada manhã de quinta-feira, essa marcha atraía manifestantes de todos os cantos do Brasil, que basicamente queriam protestar contra tudo e contra todos. Para isso, havia grupos de todos os gêneros, classes sociais e faixas etárias. Havia o grupo dos ambientalistas, que protestavam contra as degradações da natureza, a poluição das águas e o desmatamento na Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. Estavam ali vários grupos iniciados pela palavra SEM: sem-terra, sem-teto, sem-emprego, sem-dinheiro, sem-sossego, sem-dignidade, enfim, os sem-qualquer-coisa. Havia também um grupo muito instigante, chamado MAP, Movimento Anti-Pizza, liderado por um senhor que prometia fazer uma grande surpresa aos membros do Congresso Nacional. E toda aquela gente era puxada por um carro de som, no qual a moça que saíra correndo do táxi já berrava ao microfone:

- Vamos reciclar a nossa mente ! Tornar a nossa vida mais prudente ! Vamos reciclar nossos valores ! Pintar o mundo com novas cores !

O carro de som, então, iniciara seu percurso pela Esplanada dos Ministérios, direcionando a caminhada de cerca de duzentos mil manifestantes, que haviam saído dos mais diversos rincões brasileiros para gritar, cada qual a seu modo, contra as múltiplas modalidades de violência, de corrupção e de lavagem cerebral. O Grupo Excluídos do Éden, por exemplo, levantava sua voz contra a grande concentração de renda no Brasil e no mundo, criticando frontalmente a lavagem cerebral feita pelo desejo egocêntrico do luxo, muitas vezes obtido à custa do sofrimento e do lixo alheios. Os membros desse grupo marchavam maltrapilhos e com os olhos vendados, querendo dizer que o luxo tende a deixar as pessoas cegas, tanto no sentido de não verem os outros quanto no sentido de não enxergarem a si mesmas. Em determinado momento daquela passeata, o líder do referido grupo Excluídos do Éden subiu ao carro de som e pediu permissão para falar ao microfone:

- Não temos que reciclar apenas o lixo, pessoal! Temos que reciclar também o luxo que envenena nossas mentes! É preciso reciclar o luxo que induz tantos a se corromperem! De que adianta alguém se render ao luxo com todo o seu corpo, enquanto sua alma se entope de lixo existencial?

Os milhares de outros manifestantes aclamavam eufóricos aquele homem maltrapilho ao microfone, enquanto em outro ponto da marcha um repórter de televisão entrevistava ao vivo, para todo o Brasil, um dos ativistas da marcha:

- Mas o que significa, em termos mais precisos, essa tal reciclagem das mentes?

- A reciclagem das mentes significa a transformação de ideias e valores que só tendem a nos fazer mal em concepções mais proveitosas de paz, harmonia e equilíbrio social. Vivemos hoje em um mundo que violenta nossas mentes de formas às vezes imperceptíveis, por meio de mensagens subliminares ou explícitas, deixando-nos vulneráveis aos paradoxos de uma sociedade na qual o ter costuma se sobrepor ao ser....

Neste momento, o repórter retirou o microfone da boca do rapaz que já havia falado muito mais do que o necessário e passou a entrevistar uma outra manifestante:

- Estou nesta marcha para protestar contra a corrupção do governo, contra a destruição da natureza e, especialmente, contra uma doença terrível chamada violência, por meio da qual meu irmão mais velho morreu, com seis tiros encravados no corpo, após uma briga estúpida em uma boate... - Falava uma jovem chamada Cristina, exibindo para a câmera de TV a foto do irmão assassinado, no auge dos seus dezoito anos de idade.

Já do outro lado da tela, a mãe de Cristina passou a chorar copiosamente, enquanto seu filho caçula a abraçava com força. A moça havia ido à Brasília sem deixar recado para sua mãe, Ana Cláudia, que estivera preocupada e furiosa até aquele momento. Depois de ouvir as palavras de Cristina pela televisão, todos os resquícios de raiva e desassossego de Ana transformaram-se em uma potente mistura de orgulho e de dor. Suas lágrimas calorosas lavavam-lhe a alma, de modo análogo aos efeitos que tênues gotas de chuva adquiriam ao caírem sobre a marcha em Brasília. Um dos manifestantes observou, enquanto caminhava pela Esplanada dos Ministérios:

- Que clima mais doido! Até agora fazia um sol de rachar e, sem mais nem menos, começa a chover...

- É até bom - interveio outro manifestante - para amenizar a secura, tanto do tempo quanto das mentes !

Após alguns minutos, os chuviscos adquiriram maior consistência, como se fossem lágrimas pesadas caindo de nuvens ácidas, lenta e paulatinamente, sobre aquela multidão de rostos pardos, brancos, negros, amarelos e vermelhos, cada vez mais próximos do Congresso Nacional.

- Ativistas de todo o Brasil, estamos finalmente chegando ao final de nossa Grande Marcha pela Reciclagem das Mentes. Peço, neste momento, que todos vocês levantem suas bandeiras...

O organizador da passeata pegou seu violão e ajeitou melhor seu microfone. Sobre o palco do carro de som, então, instalara-se uma banda de música, com bateria, teclados, guitarra e baixo. Tal banda realizava os últimos ajustes técnicos para tocar a música que houvera composto especialmente para aquele momento, enquanto o carro de som guiava milhares de pessoas rumo ao Congresso Nacional.

A chuva que caía sobre os manifestantes foi paulatinamente perdendo o fôlego até ceder lugar a um belíssimo arco-íris, que se interpôs logo atrás do Congresso. Os fotógrafos de diversos jornais passaram a brigar pelos melhores ângulos daquela excêntrica paisagem, que viera curiosamente embelezar aquela marcha já tão multifacetada. Neste momento, um grande balão com a lona em formato de cérebro rompia o azul do céu de Brasília, em um voo panorâmico, guiado por dois atletas profissionais que, de dentro do cesto daquele imenso protótipo aéreo movido por quatro cilindros de gás propano, esforçavam-se para pousá-lo no gramado em frente ao Congresso Nacional. Durante a descida desse grande balão em formato de cérebro, fogos de artifício explodiam anunciando o refrão intrínseco ao hino do protesto pela reciclagem, assim cantado efusivamente por milhares de manifestantes ao final de sua marcha:

Unidos seremos

Unidos viremos

A ter vitória

A construir nossa História

Estamos no mesmo barco

E temos que remar !

Em tal instante, três imensas canoas levadas pelos braços de ambientalistas ao longo de toda a marcha foram atiradas no espelho d'água do Congresso Nacional. Mas nem só ambientalistas ocuparam as referidas canoas. Os membros dos mais diversos grupos de ativistas foram ocupando-as e movimentando seus remos, à luz dos holofotes e das câmeras de televisão que transmitiam, ao vivo e em cores, aquele espetáculo de protesto a todos os cantos do Brasil.

- Se a canoa não virar, olê, olê, olá, eu chego lá! - Cantarolava o líder do Movimento Anti-Pizza, após ter abarrotado uma das canoas com 354 caixas de presente, todas rigorosamente idênticas e com a bandeira do Brasil na capa, cada qual com um dos nomes dos 273 deputados federais e dos 81 senadores da República.

Esse líder do Movimento Anti-Pizza era um senhor já de idade avançada e com grandes barbas brancas que lhe conferiam um status quase messiânico, localizado entre a bondade esmerada de um papai Noel dos trópicos e a obsessão profética de um Antônio Conselheiro do século XXI. Ao ser abordado por um repórter, após a travessia das águas do Congresso Nacional, o referido líder, que se identificou como Thomas Torres, fez o seguinte pronunciamento acerca do conteúdo daquelas 354 caixas:

- Eu vim do Ceará especialmente para, ao final desta Grande Marcha pela Reciclagem das Mentes, entregar a cada deputado federal e a cada senador um presente que eles irão conhecer no momento adequado. Mas já vou adiantando: não se trata de nenhum presente de grego. É um presente de brasileiro mesmo, brasileiro que pensa e que faz pensar !

Após longas discussões com seguranças do Congresso, Thomas permitiu que todas as suas 354 caixas de presente passassem por detectores de metais e por outros procedimentos investigatórios. O chefe de segurança, após ser vencido pelo cansaço, designou seus subalternos para acompanharem Thomas Torres aos gabinetes de todos os 81 senadores da República, onde deixava sempre uma das caixas de presente com a bandeira do Brasil. O mesmíssimo procedimento de entrega foi repetido, horas depois, na Câmara dos Deputados, casa na qual também todos os parlamentares haviam recebido o presente daquele bom velhinho. Ao deixar o regalo no último gabinete da Câmara, Thomas respirou profundamente aliviado, com sensação de dever cumprido. Já eram três horas da tarde e o senhor estava faminto. Além disso, seu ônibus de volta à Fortaleza partiria dentro de meia hora. Por isso, Thomas saiu da Câmara apressado, fugindo de uns dez repórteres que queriam, a todo custo, entrevistá-lo sobre os presentes tão excêntricos. Um desses jornalistas, após perceber que o senhor não responderia às suas perguntas, dirigiu-se a um dos gabinetes da Câmara para ganhar com exclusividade um furo de reportagem sobre o enigmático conteúdo das caixas. Entrou, então, no gabinete do deputado Gilson Salvatore que, por sinal, não havia trabalhado naquele dia. Apenas sua assessora estava no gabinete.

- Boa tarde - disse o jornalista à assessora - trabalho para a Revista Córtex Brasilis e gostaria de perguntar se o deputado Gilson Salvatore já teria aberto a sua caixa de presente...

- Meu avô... Desculpe, o deputado Gilson Salvatore não pôde comparecer hoje à Câmara devido a problemas... Problemas.... De saúde. O presente dele está ali sobre a mesa.

- Você teria autorização para abri-lo ?

- Teria. Mas, na verdade, eu não tenho mesmo é coragem de abrir !

- Posso abri-lo para você ?

- Pode, mas deixa primeiro eu pegar minhas coisas e sair desta sala...

- Calma, pelo peso, não parece ser uma bomba . - Constatou o repórter, ao sacudir a caixa.

Com a anuência da assessora, o repórter respirou fundo e desenrolou o belo laço verde e amarelo que amarrava a caixa com a bandeira do Brasil na capa. Impregnado por uma sensação estranha que misturava curiosidade e pânico, o repórter abriu cuidadosamente a tampa da caixa, quando gritou assustado: um boneco fixado na extremidade de uma mola que estava presa no fundo da caixa voou até seu nariz, machucando-o. O boneco da mola, que trajava roupas típicas de pizzaiolo, trazia na mão esquerda uma bandeja sobre a qual se via um minúsculo cérebro, servido entre folhas verdes e estrelas douradas. Já na mão direita, o boneco levantava uma placa com a instigadora pergunta: Sabes, porventura, de quem é este cérebro ?

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